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03/01/2024

ANNO HOMINIS (AH) OU ANNO MUNDI (AM) ?

 6 dias ou milhões de anos?

A questão da origem e idade do universo tem ocupado o ser humano desde sempre, começando com os antigos mitos, passando pelos filósofos, às teorias científicas. Hoje, diríamos que há dois grandes campos de opinião: os evolucionistas e os criacionistas. A principal diferença entre uns e outros está na rejeição ou aceitação de um Criador, um ser inteligente, na origem do universo e da vida. Sem Criador, a ciência não tem uma explicação para a origem da matéria/espaço/tempo.

Mas não vamos entrar neste debate.

No campo dos criacionistas, também há dois campos: os que acreditam que Deus criou o mundo em 6 dias de 24 horas – os criacionistas de terra jovem - e os que apoiam uma duração mais longa – os criacionistas de terra velha.

Não havendo (não tendo) dúvidas sobre a verdade fundamental de que Deus é a causa da existência do universo e do ser humano, como afirma a Bíblia, é mais complicada a questão de quanto tempo durou a obra da criação. E com isso a questão da idade do universo. Evitei o assunto durante muito tempo, procurando saber mais, com a mente aberta às duas hipóteses. O leitor do blog poderá ter observado que usei AH (ANNO HOMINIS), mas também AM (ANNO MUNDI). O uso de AM subentende que Deus criou os céus e a terra em 6 dias de 24 horas. Ao usar AH deixei esta sensível questão em aberto.

Ao usar AH (Anno Hominis), começamos a cronologia com a criação do homem. Neste caso, quanto à idade do ser humano, a Bíblia deixa indicações claras e informação cronológica que nos permitem calcular o tempo desde a criação de Adão até Jesus. É o que temos procurado verificar neste blogue.

Mas voltando aos dias da criação.

Uma justificação para a criação em 6 dias apoia-se na instituição, por Moisés, da semana de 7 dias. “Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do Senhor” (Ex 20:9-10) – Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou” (Êxodo 20:11).

Porque os nossos dias, de sol a sol, têm 24 horas, infere-se que os dias da criação – “e foi a tarde e a manhã o dia …” – também só tinham 24 horas.

Uma justificação para uma terra velha apoia-se em 2Pedro 3:8 “que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”. Mil, usado como hipérbole (figura de estilo que consiste no exagero de expressão, ampliando a verdadeira dimensão das coisas) permite um tempo muito mais longo, indefinido.

De acordo com os mais recentes dados científicos, o universo tem aproximadamente 13,8 bilhões de anos.


Mas o que nos diz a Palavra?

Nota: Grande parte do texto que segue devo-o a uma inspiradora conferência de John Lennox, 7 days that divide the world.  John Lennox: "Seven Days That Divide the World" - YouTube 

Será que não há uma relação metafórica entre Gn 1 e Ex 20:11? [1]

Um claro exemplo de uma metáfora na Bíblia é quando Jesus diz “eu sou a porta” (João 10:9). Não fazemos o erro de pensar que Ele é uma porta física, de madeira ou de ferro. Mas a nossa experiência do mundo natural, da realidade que nos rodeia, permite-nos interpretar e compreender esta metáfora. Jesus é, efetivamente, a “porta” para a salvação; é através dele que temos acesso a Deus.

Outra metáfora usa terminologia relativa à construção de uma casa, para explicar, entre outros, a criação da terra: “Ele lançou os fundamentos da terra, para que vacile em tempo algum (Salmo 194:5). “Do Senhor são os alicerces (ou pilares) da terra, e assentou sobre eles o mundo“ (1Samuel 2:8) – e outros numerosos versículos em que a criação da terra é assemelhada à construção de uma casa com “fundamentos”, “colunas” ou “pilares”, que fazem com que a casa está segura e não se move, senão pela ira de Deus (Sl 75:3; 82:5; 102:25; 104:5; Pv 8:29; Is 13:13; 48:13).

Se interpretássemos estes versos literalmente, continuaríamos a apoiar a teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu, defendida até ao século XVI pela comunidade científica, que a terra estava parada no centro do universo enquanto os corpos celestes orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor. Esta teoria foi desafiada primeiro por Copérnico (1473-1543), depois por Galileo (1564-1642) e Keppler (1571-1630) até que a teoria heliocêntrica (a terra move-se em volta do sol) que defendiam foi comprovada cientificamente no século XVIII por James Bradley. [2]

Assim, 1Sam 2:8 pode, sem problemas, ser considerado uma expressão metafórica, que compreendemos com base em nosso conhecimento, científico, da realidade. Embora não sendo fixa e fundada em pilares, a terra, de facto, está fixa e segura pela força da gravidade que a mantém em posição em relação aos outros astros e planetas.

Agora, quanto à metáfora dos dias da criação. Só Deus, o Criador, podia ter narrado a Adão como o mundo foi criado. Esta narrativa não é pormenorizada, mas estabelece alguns elementos fundamentais para a nossa compreensão. Criado há poucos dias, Adão não conheceria nem compreenderia o conceito de milhões de anos. Então Deus usou o termo “dia”, que era uma unidade de tempo que Adão conhecia pela experiência. Moisés, em Ex 20:11, simplesmente usou a referência à narrativa da criação. O importante não é a duração do “dia”, mas o facto de uma obra que evolui em direção a um descanso.


O uso da palavra “dia” em Génesis.

O que é que Génesis diz realmente? Como é usada a palavra “dia” (IOM)?

Verificamos que só em Gn 1 a palavra “dia” - IOM - é utilizada com vários sentidos diferentes.

No primeiro dia, Deus cria a luz, à qual chama Dia. E às trevas chamou Noite. O uso de “Dia” está aqui apenas para descrever luz, e isto em contraste com trevas/noite. Nada há que indique tratar-se de uma unidade de tempo. “Dia”, nesta passagem, é luz.

Luz/dia e trevas/noite é um conceito anterior ao fenómeno celestial cósmico da rotação da terra sobre o seu próprio eixo em volta do sol.


Só a partir do quarto dia, quando Deus cria os luminares na expansão dos céus para haver separação entre o dia e a noite, e com isso também a relação orbital entre a terra e os astros, que se torna possível entender um dia como um período de 24 horas. Mas será que a velocidade em que a terra e os planetas se movem sempre foi a mesma?

A luz (Gn 1:3) é anterior à luz do sol e dos astros. A luz é de Deus; a luz é o próprio Deus. «O Senhor é a minha luz e a minha salvação» (Salmo 27:1). Jesus é a luz que resplandeceu nas trevas, incompreendida» (João1:1-9). «Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida» (João 8:12). No final da história, na Nova Jerusalém, a cidade não necessita de sol nem de lua, não haverá mais noite e não necessitarão de lâmpada, nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumia; o Cordeiro é a sua lâmpada (Ap 21:23; 22:5).

Ao criar os “luminares” no quarto dia, Deus gerou uma analogia entre a luz verdadeira, espiritual, e a luz solar, natural, para que pudéssemos compreender (um pouco) a primeira.


Na frase “E foi a tarde e a manhã o dia … “ (Gn 1:5, 8, 13, 19, 23, 31), “dia” representa um ciclo em que se observa uma sequência de um período de dia e um período de noite, mas nada dá a entender que se trata de um período de tempo definido. Interpretar esta frase como um período de 24 horas é uma dedução de Ex 20:11, da experiência e do conhecimento da duração – atual – da rotação da terra sobre o seu eixo.

Em todos estes versículos, Deus fala algo em existência. “E disse Deus: haja ...”. O dia pode referir-se apenas ao momento em que Deus falou. Falando, iniciou um processo que pode ter durado milhões de anos, ou meros segundos.


O sétimo dia. Se consideramos todos os dias da criação como unidades de tempo com a mesma duração (quer de 24 horas na teoria de uns, quer de milhares de anos segundo a teoria de outros), o que fazemos com o sétimo dia? Do primeiro ao sexto dia, a narrativa é concluída com “E foi a tarde e a manhã o dia …”. Mas já repararam que no sétimo dia não há tarde e manhã? O sétimo dia seria então um dia muito muito longo … A ausência de “tarde e manhã” deita por terra a teoria de que todos os dias teriam literalmente uma duração igual desde o princípio da criação.

Compreendemos o sétimo dia num sentido espiritual (descanso). Na instituição da semana, é introduzida uma analogia com a criação: os dias de trabalho, como a obra de Deus, culminam em descanso, após avaliação (juízo).

Mas o nosso tempo é o tempo da terra, o tempo dos homens. Se, para Deus, mil anos é como um dia, significa que o tempo de Deus é diferente.


No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas (Gn 1:1-2). Isto (o princípio) aconteceu antes do “primeiro dia”, antes de Deus dizer “Haja luz”. O princípio é um momento indefinido no passado. Não é dito quanto tempo passou entre Gn 1:1 e Gn 1:3.


Gn 2:4 – Estas são as origens (TOLEDOT) dos céus e da terra, quando foram criados: no dia (IOM) em que o Senhor fez a terra e os céus  

Este versículo introduz a primeira secção TOLEDOT (ver ELLEH TOLEDOT). Nesta frase, a palavra “dia” refere-se ao conjunto de dias da criação, não a um único dia.


- E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia (Gn 3:8).

Esta expressão é geralmente interpretada, um pouco romanticamente, que Deus costumava passear no jardim no final do dia, quando aparece a brisa refrescante da tardinha, para ter comunhão com o homem. Mas será este o verdadeiro significado?

Literalmente, esta frase pode ser traduzida assim: Deus passeava no jardim no espírito/sopro/vento (RUAH) do dia (IOM). A palavra RUAH aparece aqui pela segunda vez no texto. A primeira é em Gn 1:2 – o Espírito (RUAH) de Deus se movia sobre a face das águas.

O espírito (RUAH) movia-se sobre a face das águas, nas trevas, e sobre a terra sem forma e vazia (v.2); e a seguir surge a luz (v.3). Em Gn 3:8, o espírito (RUAH) aparece sobre o caos provocado pelo pecado de Adão e Eva. O “dia” traz luz sobre as coisas. O dia, sendo luz, revela tudo (Lc 12:2-3). Nesta passagem, o “dia” é um dia de juízo sobre o teste a que o homem fora submetido (Gn 2:15-17). Em toda a Bíblia, há numerosas passagens sobre o “dia do Senhor”, em que “dia” não significa uma duração, mas um acontecimento que pode ser um momento como pode durar muitos dias.


Conclusão:

O uso da palavra “dia” em Génesis com diferentes sentidos (luz, um ciclo de dia e noite, um conjunto de “dias”, um acontecimento/julgamento) não parece apoiar a possibilidade de dias de 24 horas e deixa claramente aberta a porta a uma interpretação longa.

A Bíblia não discute a idade do universo, nem da terra, em lugar algum. Não é importante. Se fosse importante, não teria Deus dito exatamente qual a duração dos “dias” da criação? Não é assunto que deva levantar disputas entre crentes.

O que não quer dizer que não possamos procurar saber. “E apliquei o meu coração a esquadrinhar, e a informar-me, com sabedoria, de tudo quanto sucede debaixo do céu: esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens, para nela os exercitar” (Ecl 1:13).

Génesis não diz quando, mas diz-nos como esta criação aconteceu: Deus criou por palavras de comando. O Salmo 33 confirma Génesis: Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca … Porque falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu (Sl 33:6, 9). Se o texto não dissesse como criou, não teríamos a compreensão de que havia um Criador. O como define a criação. A vida não surgiu da matéria autonomamente. Os céus e a terra e tudo o que há neles surgiram de maneira sobrenatural. No princípio (e antes do princípio) estava o Criador.

 

Notas:

[1] Metáfora:
recurso expressivo que consiste em usar um termo ou uma ideia com o sentido de outro com o qual mantém uma relação de semelhança (Porto Editora – metáfora no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-12-24 16:22:42]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/metáfora

'Tropo em que a significação natural de uma palavra se transporta para outra em virtude da relação de semelhança que se subentende; imagem; figura. 'in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/algumas-figuras-de-estilo/14744 [consultado em 24-12-2023].

[2] Embora os autores bíblicos usem metáforas, não eram ignorantes. Por exemplo:

Job 26:7 [ele] suspende a terra sobre o nada

Is 40:22 Ele é o que está assentado sobre o globo da terra

 

06/04/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 2)

Na mensagem anterior (parte 1), chegámos à conclusão que a fórmula ELLEH TOLEDOT no livro de Génesis é uma frase introdutória de uma secção, marcando, ao mesmo tempo, a transição de uma secção para a seguinte. Pareceu-nos bem a proposta de Michael Harbin de traduzir a fórmula da seguinte maneira (em vez de “estas são as gerações ou origens de”):

[this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

A fórmula ELLEH TOLEDOT aparece 11 vezes em Génesis: 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2. Mas consideramos apenas 10, porque Gn 36:1 e 8 referem-se ambos a Esaú no mesmo contexto.

Parece que há, assim, 10 secções. Mas, na realidade, podemos observar que há apenas 5 secções principais, e 5 subsecções.

Como assim?

Devido à presença ou ausência da conjunção WAW (ו) no início de uma frase.

WAW (equivalente à nossa letra “v” ou “u”) é traduzido geralmente pela conjunção “e” e, por vezes, por “pois”, ”então”, “porém”, “ora”, “mas”, ”assim”, “mais”, “também”, “porque” … O WAW hebraico indica sempre uma conexão; liga uma cláusula numa sequência com outra. Uma estrutura ou unidade que começa com WAW não sugere o começo de uma história. A ausência da conjunção assinala o começo de uma nova história (e também pode ocorrer no início de uma unidade parentética explicativa dentro de uma unidade primária).

Por exemplo, o primeiro versículo da Bíblia começa com “no princípio, Deus …”. Não tem WAW. Porque não há nada antes. Só Elohim/Deus, na eternidade (Sl 90:2). Mas reparem que todos os versículos/frases seguintes começam por “e” (WAW), significando que se trata de uma narrativa contínua, uma sequência de versículos que formam uma unidade, de Gn 1:1 até Gn 2:3.

O versículo seguinte (Gn 2:4) – Estas são as TOLEDOT dos céus e da terra – não começa com WAW, o que significa que está no início de uma nova unidade de texto.

Nota: esta será outra razão porque a teoria de cólofon de Wiseman (ver mensagem anterior) não pode estar correta porque 2:4 não está conectada ao versículo anterior por WAW.

Agora vejamos as secções TOLEDOT em Génesis e onde ocorre WAW e onde não ocorre.

1

-

Estas são as TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 – 4:26)

2

-

Este é o livro das TOLEDOT de Adão (5:1 – 6:8)

3

-

waw

Estas são as TOLEDOT de Noé (6:9 – 9:29)


Estas, pois, são as TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 – 11:9)

4

-

waw

waw

waw

waw

Estas são as TOLEDOT de Sem (11:10 – 11:26)


E estas são as TOLEDOT de Terah (11:27 – 25:11)


Estas, porém, são as TOLEDOT de Ismael (25:12 – 18)


E estas são as TOLEDOT de Isaac (25:19 – 35:29)


E estas são as TOLEDOT de Esaú (36:1 – 37:1)

5

-

Estas são as TOLEDOT de Jacob (Gn 37:2 – Ex 19:1)

Vemos que há 5 unidades principais, sem WAW inicial. As outras, com WAW inicial, são subsecções.

O que nos contam?

A primeira secção TOLEDOT, dos céus e da terra, distingue-se das seguintes por não se tratar de uma pessoa humana como complemento de TOLEDOT, colocando esta secção à parte das seguintes. É uma secção introdutória. Retoma em pormenor alguns temas da criação, a formação do Éden, do homem e da mulher. Explica as origens da história da humanidade e da presente condição humana: como entrou o pecado no mundo, a morte, o mal e as suas consequências. Mas, também, anuncia a graça e misericórdia de Deus na promessa de um Salvador (3:15).

Gn 3:15 estabelece logo duas linhas genealógicas alternativas e concorrentes: a semente da serpente e a semente da mulher, os rebeldes que se afastam de Deus e os que confiam em Deus, os rejeitados e os escolhidos.

Com a rejeição de Caim, o primogénito, e a morte de Abel, a promessa (Gn 3:15) passa através de um novo filho de Adão e Eva: Seth – uma outra semente em vez de Abel (4:25; 5:3). Com Seth, começa-se a invocar o nome do Senhor (Gn 4:26).

A segunda secção TOLEDOT, o livro das gerações de Adão, traz a genealogia de Adão através de Seth (Gn 5) e o que aconteceu a toda aquela civilização que se desenvolveu depois de Adão ter sido expulso do jardim do Éden (Gn 6:1-7). Vemos que também a linhagem de Seth ficou corrompida, visto que apenas um homem achou graça aos olhos do Senhor (Gn 6:8).

A terceira secção TOLEDOT principal, as gerações de Noé, narra como o dilúvio destrói toda a terra e toda a humanidade, como Noé e a sua família são salvos na arca, e o pacto que o Senhor faz com Noé e toda a alma vivente de toda a carne, que está sobre a terra (Gn 9:9-10, 16).

A secção termina com a história de Canaan (Gn 9:20-27), onde aparece novamente esta separação entre os rebeldes e rejeitados e a linhagem da semente da promessa através de Sem, o povo do Nome (SHEM significa “nome”).

A secção TOLEDOT dos filhos de Noé, Sem, Cam e Jafeth (Gn 10:1 a 11:9) é uma subsecção das gerações de Noé. Da família salva do dilúvio procederam 70 nações. Os três filhos de Noé fundaram todas as nações e subgrupos raciais da nossa presente civilização.

No seu último cântico, Moisés refere-se a este acontecimento: «Lembra-te dos dias da antiguidade; atentai para os anos de muitas gerações … Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos dos povos conforme ao número dos filhos de Israel» (Dt 32:7-8). Foram 70, os filhos de Israel que desceram ao Egipto (Gn 46:27; Dt 10:22). O número 70 antevê a missão de Israel, a missão “missionária” junto do resto do mundo enquanto povo especial e reino sacerdotal (Ex 19:4-5) de onde viria o Salvador prometido.

Mas a condição espiritual caída da humanidade continuou a manifestar-se depois do dilúvio, como já se revelou no final da secção anterior. A rebeldia tem a mais forte expressão num dos descendentes de Cam,  Nimrod (o próprio nome significa “rebelde”!), que fundou Babel em rebeldia ao Senhor: «Edifiquemos uma cidade e uma torre e façamo-nos um nome para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra» (Gn 11:4).

A secção termina como juízo de Deus sobre Babel, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra para cumprimento do seu mandamento: Enchei a terra (Gn 9:1).

Gn 11:10 introduz uma nova secção TOLEDOT primária: as gerações de Sem. De todas as nações procedentes dos três filhos de Noé, a atenção é agora dirigida para um dos três filhos. Um estreitar progressivo do foco de toda a humanidade (pós-dilúvio) a uma família.

A genealogia de Sem conduz diretamente à subsecção TOLEDOT, as gerações de Terah (Gn 11:27). Aqui, um novo estreitar do foco.

Estaríamos à espera que a genealogia de Sem conduzisse a uma secção TOLEDOT de Abraão, mas não é o caso.

Observamos que o último da linhagem de Adão, Noé, tem 3 filhos: Sem, Cam e Jafeth. Na linhagem de Sem, é Terah que também é pai de 3 filhos: Abrão, Nacor e Haran. Da família, o foco incide agora numa só pessoa: Abraão, e depois Isaac, o filho da promessa.

A secção das gerações (TOLEDOT) de Terah é uma secção muito longa (Gn 11:27 a 25:11) que narra basicamente toda a história de Abraão até à sua morte (Gn 25:11). Pouco é dito sobre Terah, mas segundo Gn 11:31 foi Terah que iniciou a caminhada para a terra prometida, porém ficou em Haran, onde morreu. As promessas foram feitas a Abraão e Abraão obedeceu e recebeu a promessa. Mas Abraão fez alguns erros, o que resultou no nascimento de Ismael antes de Isaac, que será o herdeiro da promessa. Assim, no fim da secção TOLEDOT de Terah, estão as gerações (TOLEDOT) de Ismael (25:12-18) e de Isaac (25:19).

A subsecção TOLEDOT, as gerações de Isaac, é uma excelente defesa da tradução proposta por Harbin. “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Efetivamente, o que procedeu de Isaac foram Esaú e Jacob, cuja história é narrada nesta secção, que termina com as gerações (TOLEDOT) de Esaú (Gn 36, onde a frase “são as gerações de” aparece duas vezes: 36:1 e 9).

À secção principal TOLEDOT de Sem, segue a secção de Jacob. Cronologicamente, Sem morre com 600 anos, quando Isaac já tem 50 anos, dez anos antes do nascimento de Jacob.

A última secção TOLEDOT principal, as gerações de Jacob (Gn 37:2) centra-se na história de José e em como toda a família vai ter ao Egipto para conservação da vida (50:20). José tornou-se o salvador, o meio pelo qual a família foi preservada e as promessas – dadas e reiteradas a Abraão, Isaac e Jacob – asseguradas. De um homem (Abraão) o foco passa para as 12 tribos, um povo.

O livro de Génesis termina com a morte de José (50:26). Mas a história não termina aqui, nem termina aqui a secção TOLEDOT de Jacob.

Logo a seguir a Génesis, o livro do Êxodo começa com WAW! Isto significa que, apesar de aparentemente ser um novo livro, não é uma nova história, mas a sequência natural e ininterrompida da narrativa em Génesis. “E (WAW) estes são os nomes dos filhos de Israel, que entraram no Egipto com Jacob” (Ex 1:1).

José morreu (Gn 50:26), mas a tarefa de salvar o povo, desta vez do Egipto, passou para outro descendente de Jacob: Moisés, da linhagem de Levi.

Ex 6:14-27 “Estas são as cabeças das casas dos seus pais: os filhos de Ruben …. E os filhos de Simão …. E estes são os nomes dos filhos de Levi ….”.

Ex 6:14 não começa com WAW e podia indicar uma nova secção TOLEDOT. Mas a ausência da conjunção WAW também pode ocorrer no início de uma unidade parentética explicativa dentro de uma unidade primária. Este parece ser o caso aqui. Ex 6:14-27, com a genealogia de Levi até Aarão e Moisés, aparece no meio da narrativa de como o povo de Israel saiu do Egipto, as pragas, etc.. É um parêntese na história, a explicar de qual filho de Jacob descendiam Aarão e Moisés, que foram falar a Faraó para tirar Israel do Egipto.

Creio que a secção TOLEDOT de Jacob só termina efetivamente no final do capítulo de Ex 18. Podemos observar que todas as cláusulas (exceto a parêntese de Gn 6:14) desde Ex 1:1 até 18:27 começam com WAW.

Ex 19:1 é a primeira cláusula que não tem WAW: “Ao terceiro mês da saída dos filhos de Israel da terra do Egipto no mesmo dia, vieram ao deserto de Sinai”, embora não tenha a frase introdutória “estas são as gerações de”.

Mas aqui, no deserto de Sinai, começou realmente um novo capítulo na história de Israel e da humanidade. O povo de Israel foi salvo do Egipto, e agora vão ter parte num novo concerto e receber uma nova identidade e representação.

“Agora, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os povos: porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo” (Ex 19:5-6).

A secção TOLEDOT de Jacob engloba todo o tempo que Israel esteve no Egipto, bem como a saída do Egipto. Dos patriarcas, Abraão, Isaac e Jacob, o foco incide agora num povo na sua função missionária no mundo.

Começando em Ex 19:1, todo o resto do Velho Testamento é, de certa forma, TOLEDOT – “o que procedeu” do povo do concerto depois da saída dos filhos de Israel da terra do Egipto – o tempo da Lei – até Jesus, que veio cumprir todas as promessas. Com Jesus, o foco volta abrir para toda a humanidade (João3:16-17).


Bibliografia

Jason S. DEROUCHIE (2013). The Blessing-Commission, the Promised Offspring, and the Toledot Structure of Genesis. Journal of the Evangelical Theological Society 56/2 219-47.

Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233


27/02/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 1)

 

O livro de Génesis é estruturado em volta da fórmula hebraica “elleh TOLEDOT”, traduzida na maior parte dos casos “estas são as gerações de”. A fórmula aparece 10 vezes em Génesis (na realidade, 11 vezes, mas duas tratam das gerações de Esaú): Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2.

Não é, porém, claro, nem consensual, o que TOLEDOT significa exatamente. Deriva do verbo YALAD, que significa: dar à luz, nascer, engendrar, gerar, conduzindo à tradução clássica de “gerações”. Mas, porque nem sempre a palavra “gerações” parece ser a mais adequada ao contexto, algumas traduções modernas usam por vezes outras palavras. Por exemplo:

Gn 2:4 – Esta é a génese/origem/história (toledot) dos céus e da terra

Gn 6:9 – Esta é a história (toledot) de Noé.

Gn 10:1 – Esta é a posteridade/descendência (toledot) dos filhos de Noé

É geralmente admitido que “elleh toledot” é um indicador estrutural que divide o livro em secções, e que funciona como fórmula introdutória – uma espécie de título de capítulo –, e/ou como fórmula de transição, uma maneira de conectar uma secção à outra.

Ainda outra teoria designa a fórmula como uma subscrição ou resumo do que veio antes. Em 1936, Wiseman[1] sugeriu que as ocorrências de TOLEDOT em Génesis eram, em todos os casos, cólofones. As fontes dos textos de Génesis seriam 11 tabuletas de barro, cada uma delas terminando com um cólofon assinalando a conclusão da unidade. Wiseman observara que as tabuletas mesopotâmicas tinham uma espécie de “ficha técnica”, uma assinatura, que identificava o autor da tabuleta através de uma árvore ou referência genealógica colocada no final do texto, um cólofon. No caso de múltiplas tabuletas sequenciais, havia uma frase que conectava uma tabuleta com a outra a seguir. Muitos destes registos eram histórias sobre origens familiares. Wiseman achou ver uma semelhança com as secções do livro de Génesis. O texto que precede a frase “esta é a genealogia de …” teria informação sobre os eventos que o homem nomeado nesta frase teria conhecido. Ou seja, o livro de Génesis seria o resultado da compilação e redação por Moisés de uma sequência de tabuletas, cada uma escrita por uma testemunha ocular dos eventos nelas descritos.

Para uma abordagem mais pormenorizada sobre a Hipótese de Wiseman, e a divisão de Génesis com a fórmula TOLEDOT como cólofon, remeto à mensagem Quem escreveu Génesis. Na altura, considerei uma possível explicação, mas após nova análise trago aqui uma explicação que me parece mais adequada.

Faço referência a esta teoria porque ela apresenta alguns problemas e porque nos permite contrastá-la com a leitura mais natural da fórmula ELLEH TOLEDOT (estas [são as] TOLEDOT) [2] como introdutória e, simultaneamente, de transição.

Há cinco casos em que a fórmula claramente precede uma lista de descendentes (não podendo nunca ser visto como um cólofon): 5:1 (Adão), 10:1 (os filhos de Noé); 11:10 (Sem); 25:12 (Ismael); 36:1 (Esaú). Fora do livro de Génesis, as duas ocorrências com o mesmo padrão apoia a leitura como título: Num 3:1 (as gerações de Aarão e de Moisés) e Ruth 4:18 (as gerações de Perez, o filho de Judá, até David).

Na teoria de Wiseman, a primeira vez que aparece a expressão ELLEH TOLEDOT, as TOLEDOT dos céus e da terra (Gn 2:4) referem-se à história da criação na primeira secção de Génesis (1:1 a 2:4a), e as TOLEDOT de Adão encerram outros pormenores da criação, a criação da mulher, a queda, as maldições, a promessa de um salvador e a história de Caim (Gn 2:4b a 5:1a). E toda a descendência de Adão até Noé está na história/gerações de Noé (de 5:1 a 6:9). Se, eventualmente, 2:4a, 5:1 e 6:9 possam ser compreendidos como cólofon, referindo-se à narrativa que precede, noutros casos, tal interpretação não é lógica. Por exemplo: inscrever a história de Abraão (11:28 a 25:11) sob a assinatura de Ismael, as “gerações de Ismael” (25:2), não faz sentido de todo, historicamente. Seria mais lógico se as TOLEDOT de Isaac fechassem a história de Abraão. Mas, então, as TOLEDOT de Isaac são o registo da genealogia de Ismael? Os apoiantes da teoria do cólofon tentam dar a volta à dificuldade explicando que a secção sobre Ismael é uma subsecção nas “TOLEDOT de Isaac”. A informação sobre os filhos de Ismael terá sido dada a Isaac quando os dois irmãos se juntaram por ocasião do sepultamento de seu pai Abraão. Mas esta explicação não é coerente, porque a fórmula “as TOLEDOT de Ismael” precede a genealogia de Ismael e a leitura natural é de uma introdução à lista de descendentes. O mesmo problema levanta-se em relação às gerações de Esaú em 36:1.

Se a origem da palavra TOLEDOT vem do verbo YALAD, = gerar, a palavra TOLEDOT contem a ideia de sequência e consequência, o que resulta de algo, o que alguém produz ou gera. E aponta para frente e não para trás.

Por exemplo:

O livro das TOLEDOT de Adão (Gn 5:1) descreve, através dos seus descendentes, o que procedeu do primeiro homem, o que ele gerou. Adão foi criado à semelhança de Deus (5:1), mas gerou um filho à sua semelhança (5:3). O que procedeu da queda do primeiro homem terminou na corrupção geral do género humano e a decisão do Senhor de destruir o homem que criou e a vida animal. Mas restou um homem, Noé, que achou graça aos olhos do Senhor. Gn 6:8 faz a ligação com a secção seguinte.

Em Gn 6:9 começam as gerações (TOLEDOT) de Noé. Esta secção diz que Noé gerou três filhos, mas o foco da narrativa está em Noé e na preparação da arca, no dilúvio e na aliança que Deus faz com Noé e a sua semente depois do dilúvio. Antes de terminar com a morte de Noé (9:29), a secção finaliza com o que fizeram os filhos de Noé (9:20-27) e a maldição de Canaan, cujas consequências se manifestarão na secção seguinte (Gn 10:1 a 11:9).

Gn 10 apresenta o mundo pós-dilúvio através da descendência (TOLEDOT) dos filhos de Noé (Gn 10:1), que foram introduzidos no final da secção anterior. É um novo recomeço para a humanidade, com o renovado mandado de “frutificar, multiplicar e encher a terra” (9:1) cumprido através de Shem, Cam e Jafeth. A secção termina com a confusão de Babel; como Deus teve que intervir mais uma vez para desfazer os esforços da humanidade de desobedecer às Suas orientações, mantendo-se juntos num local em vez de encher a terra.

Até agora, já encontramos 4 secções TOLEDOT.

1)      As TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 a 4:26)

2)      O livro das TOLEDOT de Adão (5:1 a 6:8)

3)      As TOLEDOT de Noé (6:9 a 9:29)

4)      As TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 a 11:9)

Olhando para esta sequência, podemos concordar com Harbin que, num artigo recente [3], propõe uma tradução uniforme da fórmula ELLEH TOLEDOT. O uso repetido desta fórmula marca-a como um indicador estrutural, o que sugere um significado especializado e consistente, requerendo uma tradução uniforme. Como tal, Michael Harbin propõe especificamente traduzir ELLEH TOLEDOT como: [this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Assumindo que ELLEH TOLEDOT é, então, um título e expressão que faz a transição entre uma secção e a seguinte, observamos que a porção inicial de Génesis – o relato da criação (Gn 1:1 a 2:3) – não inicia com esta mesma fórmula mas serve como prefácio ou introdução ao livro. Afirma que Deus é o Criador de todo o universo (1:1), descreve em breves frases o processo da criação e termina com a avaliação da obra pelo próprio Deus – E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom (1:31), após o que Deus descansou no sétimo dia. Sem este prefácio, sem o Criador, não aconteceria mais nada. Não haveria história. E só o próprio Deus poderia ser o autor deste prefácio.

Isto ajuda-nos a compreender a estrutura TOLEDOT. Se Gn 1:1 a 2:3 é um prefácio, o resto do livro trata do que aconteceu depois. Deus criou um universo que era “muito bom”. E a primeira secção introduzida por ELLEH TOLEDOT (Gn 2:4 a 4:26) explica o que aconteceu a este universo “muito bom”.

Portanto, Gn 2:4, em vez da tradução “estas são as origens dos céus e da terra”, como que se referindo à secção anterior (teoria de Wiseman), parece adequado traduzir assim: ”o que foi feito dos céus e da terra que Deus criou”, introduzindo a narrativa que vai até 4:26. Primeiro, apresenta pormenores sobre alguns eventos do prefácio (a criação do jardim, do homem, da mulher). Depois vem a história da serpente e aconteceu que o homem, querendo ser autónomo, estragou tudo, desobedeceu a Deus, e recebeu as consequências da sua ação (3:14-24). E não só ele, mas toda a criação (v.17-18). “O que foi feito dos céus e da terra que o Senhor criou” e avaliou «muito bom», foi que o homem transgrediu o mandamento do Senhor e o Senhor lançou fora o homem do jardim do Éden. E segue-se a história de Caim e seus descendentes. O final da secção (Gn 4:25-26) fala de Seth, a semente que vai ocupar o lugar de Abel, é uma nota positiva que faz a transição com a secção seguinte: “então se começou a invocar o nome do Senhor”.

Na mensagem seguinte, vamos ver se a tradução proposta para ELLEH TOLEDOT - “o que foi feito de …” “o que procedeu de …” se aplica ao resto do livro de Génesis.



[1] P.J. Wiseman (18 - 19) era um oficial britânico estacionado no Médio Oriente, que se interessou pelas descobertas arqueológicas, embora não fosse formado em história ou arqueologia. Ficou intrigado pelo estilo particular em que eram redigidas centenas de tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia. Na sua opinião, estas continham a chave para a escrita original do livro de Génesis. Wiseman publicou o seu livro em 1936, que foi revisto e atualizado, em 1985, por seu filho Donald Wiseman, professor em assiriologia e diretor do British Museum, com o título “Ancient Records and the Structure of Genesis” (Nashville: Thomas Nelson, Inc., 1985).

[2] A terminação hebraica em OT é um plural feminino.

[3] Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233

 


21/07/2016

OS DIAS DE PELEGUE

- A DISPERSÃO PELA TERRA (2)
Numa mensagem anterior (A dispersão pela terra -1), abordámos a dispersão causada pela confusão de línguas em Babel. Antes de prosseguir com o tema dos dias de Pelegue, retomo o conteúdo da mensagem anterior.
A tese que tem mais apoio é que a confusão de línguas gerada em Babel foi o motivo da dispersão dos descendentes de Noé por toda a superfície da terra e a origem das línguas. Que, antes disto, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar (Gn 11:1). E que esta dispersão se deu nos dias de Pelegue (Gn 10:25).
Contudo, com base numa análise de várias palavras utilizadas em Gn 10 e 11, temos razões para crer que há causas diversas para a dispersão das famílias descendentes dos filhos de Noé. E que a história da torre de Babel tem um significado muito específico, cuja interpretação poderá ser inferida do uso, em vários versículos em Gn 10 e 11, das palavras traduzidas em Português língua e linguagem. À primeira vista, parecem sinónimos, mas não são. Em Hebraico, são palavras diferentes com significado diferente.
Língua’ em Gn 10:5, 20,31 é diferente de ‘linguagem’ em Gn 11:1,6,7,9.
Em Gn 10:5, 20 e 31, ao falar da dispersão dos descendentes dos filhos de Noé, a palavra ‘língua’ é LASHON, em Hebraico, significando língua (o órgão do corpo) e idioma. Gn 10:5- Estes repartiram entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua (o seu idioma), segundo as suas famílias, em suas nações.
LASHON é empregado, por exemplo, em Dt 28:49, Ne 13:24, Dn 1:4; Ester 1:22; 3:12, Is 28:11; 66:18 onde se refere às línguas faladas pelos diferentes povos.
Em Gn 11:1 – em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar – aqui ‘linguagem’ é tradução de SAPHAH (lábio) e ‘maneira de falar’ da palavra DABAR (palavra). A palavra SAPHAH, literalmente lábio (1 Sam 1:13), refere-se ao conteúdo do que se fala (por ex. Ex 6:12, 30), não à forma ou idioma. E o uso de DABAR reforça isto.
 ‘Lábio’ (SAPHAH) está associado à confissão religiosa. Darei lábios puros aos povos (Sof 3:9); o que proferiram os teus lábios, isto guardarás (Dt 23:23); nunca os meus lábios falarão injustiça (Jó 27:4); as minhas razões provam a sinceridade do meu coração, e os meus lábios proferem o puro saber (Jó 33:3); proclamei as boas novas de justiça na grande congregação, jamais cerrei os lábios (Sl 40:9); sou homem de lábios impuros (Is 6:5); …
O que aconteceu em Babel não foi uma confusão e divisão de línguas, no sentido de idiomas falados pelas pessoas, mas uma divisão em termos de religião, de confissão religiosa, de “palavra”. Depois do dilúvio, no princípio, havia uma linguagem em toda a terra; todos confessavam o mesmo Deus. A linguagem que os habitantes de Babel estavam a falar não era a mesma que se falava no início, quando Noé e sua família saíram da arca. Queriam edificar uma cidade para si, uma torre que chegasse aos céus e tornar célebre o seu nome. Estes tinham todos a mesma linguagem. É essa linguagem pecaminosa, de um povo “um” na sua rebeldia, que foi confundida porque na união não haveria restrição ao seu intento (Gn 11:6).
Quem foram os intervenientes nesta história? Gn 11:2 – partindo eles do oriente, deram com uma planície na terra de Sinear; e habitaram ali.
A terra de Sinear era o território onde dominava Nimrode, descendente de Cuxe, filho de Cão (Gn 10:9-10). Babel era o princípio do seu reino.
Quem são “eles”? “Eles”, que partiram do oriente e deram com uma planície na terra de Sinear e habitaram ali (Gn 11:2), terão sido os filhos de Joctã, irmão de Pelegue, filhos de Héber, descendentes de Sem. Eles, os filhos de Joctã, habitaram desde Messa, indo para Sefar, montanha do oriente (Gn 10:30). Em algum momento, partiram do oriente para irem habitar na terra de Sinear, onde se juntaram aos descendentes de Nimrode em Babel na rebeldia contra Deus. Edificaram uma cidade e uma torre para que não fossem espalhados por toda a terra (Gn 11:4), em vez de encherem toda a terra como tinham sido ordenados (Gn 9:1). A linha de Joctã aliou-se a Nimrode, e apostatou, enquanto a linha de Pelegue conduziu a Abrão.

Dispersar
Além das palavras “língua” (LASHON) e “linguagem” (SAPHAH), há outras palavras em Gn 10 e Gn 11:1-8 que também parecem sinónimos, mas não são, e por isso têm que ser vistos mais de perto. São as palavras traduzidas repartir, dispersar, espalhar, separar, dividir, disseminar.
Antes de analisarmos o uso destas palavras, precisamos de ver a passagem no seu todo, desde Gn 10:1b – Sem, Cão e Jafé; nasceram-lhes filhos depois do dilúvio – até Gn 11:10 – São estas as gerações (toledot) de Sem. Assumimos que esta é a secção escrita por Sem (ver mensagem “Quem escreveu Génesis?” de julho 2016).
Distinguimos 2 grandes partes:  1) Gn 10:1b-32 e 2) Gn 11:1-9. A primeira parte ainda é dividida em 3, distinguindo as famílias dos 3 filhos de Noé, falando primeiro dos filhos de Jafé, depois dos filhos de Cão, e depois dos filhos de Sem. Cada uma destas famílias tem uma história muito específica e diferente. As três histórias encerram com este versículo: São estas as famílias dos filhos de Noé, segundo as suas gerações, nas suas nações; e destes foram disseminadas (PARAD) as nações na terra depois do dilúvio (Gn 10:32). A seguir, vem a história da torre de Babel, que termina assim: ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os dispersou (PUTS) por toda a superfície dela (Gn 11:9).
Para já, observamos um paralelismo: “língua” (LASHON) e “disseminados” (PARAD) na parte que fala das famílias dos filhos de Noé, e “linguagem” (SAPHAH) e “dispersou” (PUTS) na história de Babel.
Olhemos também para as histórias das 3 famílias:
Os filhos de Jafé … repartiram (PARAD) entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua, segundo as suas famílias em suas nações (v.5).
A história dos filhos de Cão é mais animada. Há Nimrode, o poderoso na terra, que tem domínio, que tem um reino. O princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear. E há Canaã, cujos descendentes se espalharam (PUTS) (v.18), mas cujo território tinha um limite (v.19).
Na história dos filhos de Sem, há Pelegue – que se chama assim porquanto em seus dias se repartiu (PALAG) a terra (v.25) –, e seu irmão, Joctã.
Nestas três histórias, a palavra traduzida ‘língua’ é sempre LASHON, idioma. Na história de Babel, linguagem é SAPHAH e o Hebraico da palavra traduzida “dispersar” é PUTS.
Observamos que há três palavras diferentes em Hebraico - PARAD, PALAG e PUTS - traduzidas dispersar, repartir, disseminar, aparentemente verbos bastante sinónimos.
Gn 10:5, 32- Estes repartiram (PARAD) entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua (LASHON).
PARAD tem o significado de separar-se, dividir-se separando: como Abrão e Ló (Gn 13:9,11,14); Jacó e Esaú (Gn 25:23); como Jacó separou as ovelhas (Gn 30:40); como Héber se apartou dos queneus (Jz 4.11); e outras ocorrências (Dt 32:8; 2Sm 1:23; 2Rs 2:11; Es 3:8).
Esta separação (PARAD) das famílias de Jafé pelas ilhas, nas suas línguas, pode ter sido uma separação muito natural, devido ao aumento da população e à obediência ao mandamento do Senhor (Gn 9:1). E o afastamento geográfico origina afastamento linguístico, fazendo com que a mesma língua evolua em várias direções diferentes. O uso de PARAD aqui e o uso de PUTS na história de Babel pode querer dizer que não são acontecimentos relacionados. Aliás, a ordem que Deus deu a Noé e seus filhos era “multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9:1). A dispersão pela superfície da terra era algo que Deus queria que acontecesse. É improvável que todos os descendentes de Noé tivessem desobedecido a Deus, ficando juntos, e que um acontecimento os dispersasse por força.
Em Gn 10:18 e 11:8,9, o verbo ‘dispersar’ é PUTS, que significa partir em pedaços, no sentido literal ou figurado, dispersar, espalhar (exemplos: Gn 49:7; Ex 5:12; Num 10:35; Dt 4:27; Is 41:16; Jr 9:16, 10:21). PUTS parece ter uma conotação mais negativa, mais violenta.
O espalhar (PUTS) das famílias dos cananeus (v.18) parece ter sido mais violenta do que o repartir ou espalhar (PARAD) dos filhos de Jafé (v.5), possivelmente em consequência da maldição falada por Noé (Gn 9:25).
E, ainda, há o verbo PALAG.

Pelegue
Gn 10:25 – A Héber nasceram dois filhos: um teve por nome Pelegue, porquanto em seus dias se repartiu (PALAG) a terra (ERETZ).
Além do verbo ser diferente do verbo usado para a dispersão de Babel, o objeto sobre o qual incide a ação do verbo não é o mesmo. Em Gn 10:25, o que é repartido é a terra, enquanto no caso de Babel trata-se de dispersar o povo.
A pergunta, então, é: a ‘terra’ (ERETZ) deve ser entendida literalmente? ou deve ser entendida no sentido dos ‘habitantes da terra’ como é a interpretação mais comum? Mas se se trata dos habitantes, porquê usar um verbo diferente do que em Gn 10:5 e 32 se o assunto é, alegadamente, o mesmo?
Será que faz sentido entender a ‘terra’ num sentido geológico? Há quem defende que Gn 10:25 tem a ver com a separação dos continentes a partir de uma única porção de terra.
Um dos defensores desta hipótese é Bernard Northrup, professor de Grego e Hebraico. Num artigo “Continental Separation and the Fossil Record”, afirma que há claras considerações etimológicas baseadas no nome de Pelegue que indicam uma divisão que envolve água.
Palag (ou PLG) contém frequentemente uma referência a água. A palavra é usada para um rio de água em Hebraico, Copta, Etíope e Grego. É usada para referir canais de irrigação que levavam a água através das terras aráveis da Mesopotâmia. Uma análise do uso em Grego (família de Jafé) das letras PL e PLG da raiz mostra que a maioria dos casos têm relação com o oceano, o mar. Alguns exemplos: Pelagos – nome antigo (grego) para o Mar Mediterrâneo; Arquipélago – conjunto de ilhas no mar; Sedimento pelágico - sedimento que se acumula como resultado da deposição de partículas no assoalho oceânico sob águas profundas e áreas distantes dos continentes…
O nome de Pelegue e o verbo PALAG têm a mesma raiz.
Este verbo PALAG é usado apenas três vezes na Bíblia fora do livro de Génesis.
Em 1Cr 1:19, que simplesmente repete Gn 10:25.
Jó 38:25 - Quem abriu (PALAG) regos para o aguaceiro?
Job 38:25 – (NIV) "Who cuts (PLG) a channel for the torrents of rain, and a path for the thunderstorm?" (KJV) "Who hath divided (PLG) a watercourse for the overflowing of waters, or a way for the lightning of thunder?"
Sl 55:9 – Destrói, Senhor, e confunde (PALAG) os seus conselhos (Destroy, O Lord, and divide their tongues: for I have seen violence and strife in the city.). David estava falando dos seus inimigos e pedia ao Senhor para os julgar com a confusão de línguas (LASHON), numa associação óbvia com a confusão de línguas em Babel, embora usasse LASHON e não SAPHAH como em Génesis. Para alguns, isto apoia a interpretação que a divisão do tempo de Pelegue é a mesma que a divisão de Babel.
Da mesma raiz, o substantivo PALAG, usada 10 vezes, tem o significado de canal, rio, torrentes de águas (Jó 29:6; Sl 1:3; 46:4; 65:9; 119:136; Pv 21:1; Is 30:25; 52:2; Lam 3:48).
A forma perfeita do verbo PALAGIN em Gn 10:25 indica, não um evento pontual, mas um processo contínuo. Quando Pelegue nasceu, a separação de áreas de terra pelo mar já estava a decorrer e ainda não estava completado. É algo que aconteceu “em seus dias”.
O conceito de que inicialmente havia uma única massa de terra está implícito em Gn 1:9-10 – Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e apareça a porção seca. À porção seca chamou Deus terra (ERETZ).
A teoria das placas tectónicas está em acordo com esta compreensão de Gn1:9-10. A camada superior da terra está fragmentada numa dúzia de placas de dimensões e formas diferentes em cima de camadas mais quentes e fluidas. Há várias provas que apoiam a ideia de um único continente inicial. As formas dos continentes parecem peças separadas de um puzzle. Há correspondências fósseis ao longo das margens dos continentes que parecem encaixar, o que só faz sentido se os dois continentes estiveram juntos em algum tempo no passado. Grandes quantidades de atividade sísmica, volcânica e geotermal ocorrem ao longo das placas. Há cristas, como a crista do Médio Atlântico, que são produzidas por lava que jorra de entre as placas e as aparta e, de modo semelhante, há serras montanhosas formadas onde as placas chocam (por exemplo, Andes e Himalaias). Há estrias glaciais em rochas que indicam que glaciares moviam-se de África para o oceano Atlântico, e do Atlântico para a América do Sul, situação possível se inicialmente não havia um oceano a dividir as terras. Estes são pontos que indicam a existência de uma única massa de terra original, que foi depois dividida nos continentes como hoje os conhecemos. Depois do dilúvio, este continente começou gradualmente a dividir-se, atingindo o seu auge no tempo de Pelegue, que nasceu 100 anos depois do dilúvio.
Este conceito de que até ao tempo de Pelegue existia um só continente ajuda compreender algumas coisas. Permitia uma migração relativamente fácil para lugares longínquos sem ter que atravessar grandes oceanos e o isolamento ficou completado quando as placas tectónicas terminaram os seus grandes movimentos. Explica também a existência de certos animais num continente (por exemplo, marsupiais na Austrália) e não noutros, bem como histórias (por exemplo, mitos de dilúvio) e técnicas de construção semelhantes em continentes hoje totalmente separados geograficamente.
Outra interpretação de Gn 10:25 é mencionada por FOUTS. A divisão da terra nos dias de Pelegue pode ser uma referência ao desenvolvimento geral do sistema de canalização de águas na Mesopotâmia. É uma opinião que reconhece o campo semântico da palavra mas limita o seu significado a canais ou pequenos rios de água. Pelegue foi chamado deste nome (“canal”) porque nos seus dias a terra foi dividida por canais. Esta interpretação reduz o contexto de Gn 10 e 11 à Mesopotâmia e não à terra toda. O que, em meu ver, não tem em consideração o contexto universal desta passagem que trata das famílias dos filhos de Noé que foram disseminadas na terra depois do dilúvio e da origem das 70 nações na terra.

Cronologicamente
Quando olhamos para as gerações dos filhos de Noé cronologicamente, os filhos de Joctã (quando se dá a dispersão de Babel) são a 5ª geração depois do dilúvio
Os descendentes de Jafé, que repartiram entre si as ilhas, só são mencionados até à 2ª geração depois do dilúvio. Portanto, a sua separação começou antes do tempo de Pelegue (4ª geração) e da dispersão de Babel (5ª geração).
Quando Pelegue nasceu e recebeu o seu nome, a terra já estava a ser dividida por água. Isto, portanto, uma geração antes do acontecimento de Babel.

Sem
Jafé
Cão
1ª geração
Arfaxade
Gomer, Magogue, Madai, Javã, Tubal, Meseque, Tiras
Canaã, Cuxe, Mizraim, Pute
2ª geração
Salá
Os filhos de Gomer: Asquenaz, Rifá e Togarma
Os filhos de Javã: Elisá, Társis, Quitim e Dodanim
Os filhos de Cuxe: Sebá, Havilá, Sabtá, Raamá, Sabtecá + Nimrod
Os filhos de Mizraim: Lutlim, Anamim, Leabim, Naftuim, Patrusim, Casluim, Caftorim (a forma plural indica que já se trata de famílias, e portanto já serão 4ª ou 5ª geração)
Canaã gerou a Sidom e Hete.
3ª geração
Héber

Os filhos de Raamá: Sabá e Dedã
4ª geração
Joctã e Pelegue


5ª geração
Filhos  de Joctã (Gn 10:26-29)



 Concluímos, resumindo:
As famílias dos filhos de Noé começaram a espalhar-se segundo o mandado do Senhor. Houve uma separação (PARAD) e afastamento natural das famílias e uma natural evolução das línguas faladas (Gn 10:5, 32).
Houve uma gradual separação (PALAG) da terra, uma divisão catastrófica dos continentes pelas águas, que começou algum tempo antes do nascimento de Pelegue e que terá concluído a separação das famílias pelas divisões territoriais criadas pelo afastamento das placas tectónicas.
Não foi o acontecimento em Babel que causou a dispersão de todos os descendentes de Noé pela terra e que deu origem às muitas línguas. O que aconteceu em Babel causou uma dispersão (PUTS) de uma parte do povo, descendentes de Cão (no território de Nimrode) e de Joctã, porque estavam unidos na mesma “linguagem” orgulhosa de tornarem célebre o seu nome não glorificando a Deus. Esta dispersão também pode ter sido originada por um acontecimento catastrófico dos “dias de Pelegue”.
Poderá estar na mesma linha, o espalhar (PUTS) das famílias dos cananeus (Gn 10:18), descendentes de Cão.


Fontes:
James Jordan (2007).The handwriting on the wall. A commentary on the book of Daniel. Powder Springs, GA: American Vision, pp. 88-101)
David M. Fouts, Peleg in Gen 10:25. JETS 41/1 (march 1998) 17–21