A vida de Jesus está cronologicamente interligada com a de João
Batista. Há vários momentos na vida de João que talvez possam ajudar a
desvendar a cronologia da vida de Jesus, a começar pela narrativa da sua
concepção e nascimento.
O sacerdote Zacarias, na ordem do seu turno, entrou no santuário,
quando lhe apareceu o anjo Gabriel anunciando-lhe o nascimento de um filho (Lc
1:5-22). Terminados os dias do seu ministério, Zacarias voltou para a sua casa
e, passados esses dias, Isabel, sua mulher, concebeu, e ocultou-se por cinco
meses (Lc 1:23-24). Quando Isabel estava no seu sexto mês de gravidez (Lc
1:36), o mesmo anjo foi ter com Maria, anunciando o nascimento de Jesus
(Lc1:26-38).
O que poderia ajudar a definir a data do nascimento de Jesus, e de João
Batista, seria o conhecimento de quando
é que o turno de Abias (Lc 1:5) estava de serviço no templo.
1Crónicas 1:24 relata como, no tempo de David, se organizou o serviço
do santuário. Entre os filhos de Eleazar e os filhos de Itamar foram
constituídos 24 turnos de sacerdotes. Os de Eleazar estavam em maior número,
16, os de Itamar eram apenas 8 turnos. A ordem dos turnos foi repartida por
sortes, alternadamente, começando por Eleazar[i].
Nesta lista, o turno de Abias (que seria o turno a que pertencia
Zacarias) aparece em 8º lugar.
Cada turno servia durante uma semana, entrando e saindo no sábado (2Cr
23:8).
Há várias dificuldades associadas à questão dos turnos de sacerdotes. Como
se organizavam os turnos ao longo do ano, havendo 24 turnos? E quando servia o
oitavo turno de Abias? Outra dificuldade são as disrupções que o sacerdócio
sofreu no tempo do exílio, quando não havia templo, e noutras alturas como no
tempo de Antíoco Epífanes, e como isto afetava a sequência dos turnos.
Quando os Judeus voltaram a Jerusalém depois do decreto de Ciro, apenas
4 famílias sacerdotais regressaram com Zorobabel e Jesua (Esdras 2:36-39; Ne
7:39-42): os filhos de Jedaías (2º turno), de Imer (16º turno), de Pasur e de
Harim (3º turno). Pasur não aparece na lista de 1Cr 24, mas com base em 1Cr
9:12 (a lista dos sacerdotes que ficaram a viver em Jerusalém depois do
regresso do exílio) deduzo que se trata dos filhos do turno de Malquias (5º
turno).
Em Neemias 12:1-7 há uma lista de 22 sacerdotes que subiram com
Zorobabel e Jesua. Estes 22 foram os chefes dos sacerdotes nos dias de Jesua.
E Neemias 12:12-21 há outra lista de sacerdotes, cabeças de família,
agora nos dias de Joiaquim. Joiaquim era filho de Jesua, e foi sumo-sacerdote
depois dele. Esta segunda lista tem apenas 20 nomes. Quando comparamos esta com
a primeira, dois nomes desapareceram (Hatus e Reum); dois passaram a um só (Piltai,
de Miniamim e Moadias); e foi acrescentado um (Adna, de Harim).
** Nesta lista não segui a ordem do texto de Neemias.
Em itálicos, os nomes que não correspondem nem com a lista de Ne
12:1-7, nem com a lista de Ne 12:12-21, por isso não tenho a certeza que estejam
no lugar correto da lista como membro da família.
Provavelmente as 4 famílias sacerdotais que regressaram do exílio foram
subdivididas, acabando por organizar-se em 24 turnos como originalmente e
tomando a designação inicial destes. Josefo, cujos ancestrais pertenciam ao
turno de Jeoiaribe, refere que a divisão original de 24 turnos esteve em
existência até aos seus dias (Antiguidades). E uma inscrição encontrada nas
ruinas de uma sinagoga em Cesareia, que data de final século III, início século
IV d.C. traz quatro nomes idênticos aos da lista de 1Crónicas 24: Hezir (17º),
Hapizez (18º), Petaías (19º) e Jeezquel (20º), corroborando assim Josefo
(FINEGAN, #240).
Zacarias pertencia ao turno de Abias. Julga-se que este turno se refere
ao 8º turno conforme a designação estabelecida em 1Cr 24 (v.10). O turno de Abias
nada tem então a ver com um sacerdote de nome Abias que aparece nas listas de
Neemias 12:1-7; 10:1-8 e 12:12-21.
Mais difícil e menos consensual é a organização do serviço dos 24
turnos no templo ao longo do ano, semana a semana. As Escrituras não apresentam
pormenores. Apenas ficamos a saber que cada turno servia durante uma semana,
entrando e saindo no sábado (2Cr 23:8).
Josefo e a Mishná, uma obra do judaísmo rabínico, também afirmam que a
troca de turnos era feita no dia de Sábado, o turno que saía oferecia o
sacrifício da manhã e o turno que entrava, o sacrifício da tarde. A Mishná
afirma que nas três grandes festas do ano – Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos
– todos os turnos estavam de serviço (FINEGAN, #241).
Têm sido propostos vários sistemas para a organização dos turnos
sacerdotais na esperança de poder calcular corretamente a data do nascimento de
Jesus.
No fundo, há duas grandes correntes de opinião, com variantes:
a) Uns defendem um ciclo
regular que reinicia todos os anos, no 1º mês (isto porque Êxodo 12:2
estabelece Abibe como início dos meses do ano), ou no 7º mês (isto porque o
templo de Salomão foi inaugurado no 7º mês e depois do exílio, o altar foi
reconstruído no 7º mês). Dentro deste sistema, há alguns que pensam que havia
uma interrupção da rotatividade por ocasião das 3 grandes festas, em que todos
os turnos estariam de serviço, a rotatividade retomando normalmente depois da
festa.
b) Outros defendem um
sistema de rotatividade contínua, ininterrupta, dos 24 turnos. Depois de um
ciclo de 24 semanas, recomeça novo ciclo de 24 semanas, seja qual for o momento
do ano.
Antes de analisarmos os problemas com estas propostas,
convém saber como funciona o calendário
que os Judeus utilizavam, e ainda utilizam.
O
calendário hebraico é um calendário baseado em unidades de tempo diferentes
entre si – o ano solar, o mês lunar, a semana de sete dias, e o dia do
pôr-do-sol ao pôr-do-sol.
A
unidade da semana foi estabelecida desde o princípio dos tempos pelo próprio
Senhor, como podemos ler em Génesis 1. A semana da Criação, culminando no dia
de descanso do Senhor, forma a base da unidade de tempo.
O
ano solar – que corresponde à rotação da terra em volta do sol – é de 365 ¼
dias. Isto requer que de 4 em 4 anos o ano tem mais um dia, 366 dias (ano
bissexto). Um ciclo lunar tem 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 3 1/5 segundos
(29,53059). Isto faz com que doze meses lunares perfazem apenas 354 dias,
alternando entre meses de 29 e de 30 dias. Os 11 dias que faltam para o ano
solar são compensados com um mês adicional intercalado a cada 2 ou 3 anos,
sempre a seguir ao 12º mês de Adar, e é chamado Segundo Adar ou Ve-Adar. Isto
para os meses não “viajarem” ao longo dos anos.
O
que define a regularidade deste mês intercalar é um ciclo de 19 anos, designado
como ciclo metónico. A designação vem do filósofo Meton de Atenas que descreveu
este sistema em 433 a.C., mas o sistema já era conhecido pelos astrónomos da
Babilónia no século 8 a.C.. No ano 353 d.C., Rav HILEL fez calendários usando
este ciclo de 19 anos e é onde se baseia o calendário hebraico utilizado ainda hoje.
Neste
ciclo de 19 anos, há 12 anos de 12 meses e 7 anos de 13 meses. O mês intercalar
é sempre é inserido no 3º, 6º, 8º, 11º, 14º, 17º e 19º ano do ciclo.
Não
se sabe se os sacerdotes do Velho Testamento usavam este ciclo calculado de 19
anos do mesmo modo, ou se a inserção do mês adicional se fazia de modo mais
empírico.
Com este calendário, voltando à questão dos turnos sacerdotais, nem
sempre o ano tem o mesmo número de semanas.
E é aqui que está a fraqueza do sistema a). É difícil fazer com que 24 turnos
oficiem exatamente duas vezes por ano (24 x 2 = 48 semanas).
Quer o ciclo anual recomece no 1º ou no 7º mês, sempre com o primeiro
turno de Jeoiaribe, haverá sempre alguns dos primeiros turnos que cheguem a
oficiar 3 vezes no ano, principalmente nos anos em que há um mês intercalar,
significando mais semanas nesse ano. E nos anos mais curtos, e considerando que
a rotatividade é interrompida por causa das festas (cuja duração não é uma
semana simples de sábado a sábado, mas pode começar a meio de uma semana até o
meio da semana seguinte), neste caso, o 24º turno pode vir a servir apenas uma
vez por ano.
Com base em Dt 18:6-8, isto seria ilegal porque todos os sacerdotes
levíticos tinham igual direito aos benefícios de servir no santuário. Não seria
justo um sistema que deixasse que um turno de sacerdotes servisse duas semanas
por ano, outro, três, e outro apenas uma [1].
Ao contrário, o sistema b) de rotatividade contínua, ininterrupta, dos 24
turnos, garante uma distribuição justa do serviço sacerdotal e obedece assim ao
estipulado em Dt18:6-8.
E parece que tem maior sustentação histórica. O Seder Olam afirma que o
turno que estava de serviço quando Jerusalém foi destruída no ano 70 era o
primeiro turno, o de Joiaribe. Jerusalém foi destruída no mês de Av, que é o 5º
mês, em 9 de agosto de acordo com o nosso calendário. Portanto, se o 1º turno estava
de serviço no 5º mês, nunca o 1º mês nem o 7º podiam ser o ponto de partida
anual fixo da rotatividade dos turnos.
A única maneira de garantir uma distribuição justa do serviço
sacerdotal é os 24 turnos se sucederem na sua ordem em 24 semanas seguidas e
recomeçar de novo, seja em que mês do ano for. Assim não há lacunas, não há serviços
“saltados” por uma semana devido aos dias de festa, e não há uma data anual
para fazer um “reset”.
E tem a vantagem de, desde que se conheça qual o turno de serviço numa
data conhecida, poder fazer um cálculo para trás, semana a semana até ao ano
apontado para o nascimento de Jesus. Isto porque o ciclo de sete dias é um
sistema rotativo contínuo e ininterrupto sem qualquer conexão com calendários
lunares ou solares. O Sábado só pode ser determinado contando para trás até ao
Sábado anterior.
Era o trabalho dos sacerdotes promover e manter a observância do Sábado
em Israel. E a Lei exigia também a contagem dos anos sabáticos e dos jubileus,
e dos dias e semanas das várias festas no ano. Os turnos sacerdotais são
inextricavelmente sincronizados com o Sábado. Havendo 24 turnos, havia 24
grupos de sacerdotes que garantiam a contagem do tempo de 24 semanas até ao seu
próximo serviço.
É, no entanto, possível que tenha havido uma interrupção do serviço do
templo no ano 63 d.C. quando o general romano Pompeu invadiu Jerusalém. Como se
fazia então a contagem? A sequência foi interrompida e retomada depois, ou continuou
simplesmente?
Mas mesmo resolvendo este problema, há outro ainda. Há 24 turnos,
portanto, cada um serve pelo menos duas vezes por ano.
Com base nos eventos astronómicos, sabemos que os magos chegaram a
Belém por volta de 25 de dezembro do ano 2 a.C., quando Jesus já tinha nascido.
Pouco tempo depois, Herodes morre.
Jesus nasceu seguramente no ano 2 ou 3 a.C.. Mas quando exatamente? Em
que mês, em que dia? Isto continua incerto.
As opiniões divergem. Muitos apontam para um nascimento em 1 de Tishri
(15 de setembro), o dia das Trombetas, do ano 3 a.C., em consonância com
Apocalipse 12:1-2 e o evento astronómico que o versículo descreve (ver
mensagens sobre a Estrela de Belém). É de facto um dia que simbolicamente se
apresenta muito apropriado. Outros muitos continuam a defender a data tradicional
próxima de 25 de dezembro. Há variadíssimas datas sugeridas para a semana em
que oficiava Zacarias do turno de Abias.
Penso que esta questão ainda não tem bem fundamentados todos os dados
necessários para se poder dar uma resposta segura.
[i] O que não está claro é se a repartição foi feita «Eleazar-Itamar-Eleazar Itamar etc. terminando com 8 turnos de Eleazar» ou se o sorteio foi feito assim «Eleazar-Eleazar- Itamar-Eleazar-Eleazar-Itamar etc.», já que o número de turnos de Eleazar era o dobro dos turnos de Itamar. Mas este é um pormenor que agora não intervém no caso.
[1] http://www.torahtimes.org/writings/machloqet-cohanim/article.html