13/06/2023

A BÍBLIA: UM LIVRO DE HISTÓRIA

Porque é que a Bíblia é história? Porque é que a Bíblia tem de ser história?

 Mesmo entre cristãos, as opiniões dividem-se quanto à historicidade de muitas partes da Bíblia, particularmente do livro de Génesis, deixando-se levar pelos argumentos da “ciência”, de biólogos, geólogos e cosmólogos, de arqueólogos e historiadores.

Os evolucionistas ridicularizam o relato da criação e o criacionismo. A geologia uniformitarista defende que a terra tem bilhões de anos e rejeita um dilúvio universal. Os historiadores afirmam que eventos descritos na Bíblia nunca ocorreram, que pessoas não existiram, ou pelo menos não da maneira como está escrito e quando. O êxodo do Egipto, a conquista da terra de Canaã, a existência de Abraão e dos patriarcas Isaac e Jacob, e até a existência de David e Salomão é posta em causa.

Tudo o que é “anormal” e “sobrenatural”, tudo o que desafia as alegadas constantes da física é descartado como mito, lenda e ficção (as pragas do Egipto, a passagem pelo mar … e, no Novo Testamento, Jesus transformando água em vinho, Jesus andando sobre a água, Jesus calando a tempestade, a multiplicação dos pães, as curas, a ressurreição …).

Mas é no evento mais inacreditável e sobrenatural que reside a salvação e o fundamento da nossa fé.

Paulo afirma que «se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé … se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens (1Cor 15:17,19).

Se os eventos narrados na Bíblia não são verdade histórica, não têm consequências para a vida.

A razão da nossa fé está baseada neste facto histórico e ponto culminante do plano de Deus que se desenvolveu desde “antes da fundação do mundo” (Ap 13:8): Jesus ressuscitou!

«Se Cristo não ressuscitou, se os mortos não ressuscitam, que nos aproveita isso?» Quem não crê nisto, seja coerente: «Comamos e bebamos que amanhã morreremos» (1Cor 15:32).

Por outro lado, se a ressurreição é verdade, não será também todo o resto narrado na Bíblia?

A verdadeira fé cristã está fundamentada em factos históricos, não em invenções e fábulas. Se a Bíblia não é verdade, se os eventos descritos na Bíblia não são factos históricos, a nossa fé não vale nada. Tudo não passa de uma grande ilusão.

Se Deus não é o Criador, todo o resto é irrelevante. Não reconhecer o Deus Criador, não reconhecer que Deus criou o homem/Adão (e que este não é evolução de símio, de acaso e de seleção natural), abandonar um Adão histórico e negar a queda do homem, o pecado e o juízo é negar a razão por que Jesus veio à terra para redimir a humanidade: a cruz e a ressurreição de Jesus não fazem, então, sentido.

Por mais estranhas e impossíveis que algumas partes da bíblia possam parecer aos nossos olhos do século 21, impregnados com toda a informação que vem do mundo, da ciência, da filosofia, da literatura, do cinema, da televisão, das redes sociais, a Bíblia é história, é facto.

O nosso fundamento tem de ser a autoridade da Palavra de Deus, a verdade mais alta. Afinal, vem do nosso Deus que é o Criador de todas as coisas. É nele, em Cristo, que estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.

«E digo isto, para que ninguém vos engane com palavras persuasivas … Tendo cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs subtilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo» (Col 2: 3-4, 8).


Quanto à autoridade das Escrituras, cito Herman C. Hanko (Issues in Hermeneutics. (Protestant Reformed Theological Journal, April and November, 1990, and April and November, 1991 http://www.prca.org/articles/issues_in_hermeneutics.html):

«A Escritura é diferente de qualquer outro livro. Não veio até nós para verificação. Não apresenta o seu caso para ser examinado através provas externas a ela para determinar se é ou não é credível. Não é um texto sobre a filosofia da história que apresenta opiniões extraordinárias sobre como devemos explicar a história; não apresenta opiniões que estão abertas a exame e questionamento. É a Palavra de Deus que vem para o homem como “assim diz o Senhor”. A Palavra traz com ela a autoridade do próprio Deus soberano perante quem todos os homens devem curvar-se em humildade. Depende dela o desfecho de céu ou inferno».

Quando Deus não é reconhecido, quando a autoridade das Escrituras é negada, há lugar a todo o tipo de interpretações.

… Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem, pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inexcusáveis, porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos (Rom 1:20-22).

Amontoarão para si doutores, conforme as suas próprias concupiscências. Desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas (2Tim 4:3-4).

 

As afirmações bíblicas, dizem (alguns), devem ser verificadas pela ciência. Isto significa colocar a criatura acima do Criador, a razão da mente humana acima de Deus, estabelecer a mente humana como norma e árbitro da verdade e do conhecimento.

O que o Senhor responde a esta presunção será porventura a mesma pergunta que fez a Job?

 -- Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? … (Job 38:4-5)

– Quem guiou o Espírito do Senhor? E que conselheiro o ensinou? Com quem tomou conselho, para que desse entendimento, e lhe mostrasse as veredas do juízo e lhe ensinasse sabedoria, e lhe fizesse notório o caminho da ciência? […] A quem, pois, fareis semelhante a Deus? Ou com que o comparareis? […] Ele é o que está assentado sobre o globo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos: ele é o que estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda para neles habitar (Isaías 40:13-14,18, 22).


06/04/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 2)

Na mensagem anterior (parte 1), chegámos à conclusão que a fórmula ELLEH TOLEDOT no livro de Génesis é uma frase introdutória de uma secção, marcando, ao mesmo tempo, a transição de uma secção para a seguinte. Pareceu-nos bem a proposta de Michael Harbin de traduzir a fórmula da seguinte maneira (em vez de “estas são as gerações ou origens de”):

[this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

A fórmula ELLEH TOLEDOT aparece 11 vezes em Génesis: 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2. Mas consideramos apenas 10, porque Gn 36:1 e 8 referem-se ambos a Esaú no mesmo contexto.

Parece que há, assim, 10 secções. Mas, na realidade, podemos observar que há apenas 5 secções principais, e 5 subsecções.

Como assim?

Devido à presença ou ausência da conjunção WAW (ו) no início de uma frase.

WAW (equivalente à nossa letra “v” ou “u”) é traduzido geralmente pela conjunção “e” e, por vezes, por “pois”, ”então”, “porém”, “ora”, “mas”, ”assim”, “mais”, “também”, “porque” … O WAW hebraico indica sempre uma conexão; liga uma cláusula numa sequência com outra. Uma estrutura ou unidade que começa com WAW não sugere o começo de uma história. A ausência da conjunção assinala o começo de uma nova história (e também pode ocorrer no início de uma unidade parentética explicativa dentro de uma unidade primária).

Por exemplo, o primeiro versículo da Bíblia começa com “no princípio, Deus …”. Não tem WAW. Porque não há nada antes. Só Elohim/Deus, na eternidade (Sl 90:2). Mas reparem que todos os versículos/frases seguintes começam por “e” (WAW), significando que se trata de uma narrativa contínua, uma sequência de versículos que formam uma unidade, de Gn 1:1 até Gn 2:3.

O versículo seguinte (Gn 2:4) – Estas são as TOLEDOT dos céus e da terra – não começa com WAW, o que significa que está no início de uma nova unidade de texto.

Nota: esta será outra razão porque a teoria de cólofon de Wiseman (ver mensagem anterior) não pode estar correta porque 2:4 não está conectada ao versículo anterior por WAW.

Agora vejamos as secções TOLEDOT em Génesis e onde ocorre WAW e onde não ocorre.

1

-

Estas são as TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 – 4:26)

2

-

Este é o livro das TOLEDOT de Adão (5:1 – 6:8)

3

-

waw

Estas são as TOLEDOT de Noé (6:9 – 9:29)


Estas, pois, são as TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 – 11:9)

4

-

waw

waw

waw

waw

Estas são as TOLEDOT de Sem (11:10 – 11:26)


E estas são as TOLEDOT de Terah (11:27 – 25:11)


Estas, porém, são as TOLEDOT de Ismael (25:12 – 18)


E estas são as TOLEDOT de Isaac (25:19 – 35:29)


E estas são as TOLEDOT de Esaú (36:1 – 37:1)

5

-

Estas são as TOLEDOT de Jacob (Gn 37:2 – Ex 19:1)

Vemos que há 5 unidades principais, sem WAW inicial. As outras, com WAW inicial, são subsecções.

O que nos contam?

A primeira secção TOLEDOT, dos céus e da terra, distingue-se das seguintes por não se tratar de uma pessoa humana como complemento de TOLEDOT, colocando esta secção à parte das seguintes. É uma secção introdutória. Retoma em pormenor alguns temas da criação, a formação do Éden, do homem e da mulher. Explica as origens da história da humanidade e da presente condição humana: como entrou o pecado no mundo, a morte, o mal e as suas consequências. Mas, também, anuncia a graça e misericórdia de Deus na promessa de um Salvador (3:15).

Gn 3:15 estabelece logo duas linhas genealógicas alternativas e concorrentes: a semente da serpente e a semente da mulher, os rebeldes que se afastam de Deus e os que confiam em Deus, os rejeitados e os escolhidos.

Com a rejeição de Caim, o primogénito, e a morte de Abel, a promessa (Gn 3:15) passa através de um novo filho de Adão e Eva: Seth – uma outra semente em vez de Abel (4:25; 5:3). Com Seth, começa-se a invocar o nome do Senhor (Gn 4:26).

A segunda secção TOLEDOT, o livro das gerações de Adão, traz a genealogia de Adão através de Seth (Gn 5) e o que aconteceu a toda aquela civilização que se desenvolveu depois de Adão ter sido expulso do jardim do Éden (Gn 6:1-7). Vemos que também a linhagem de Seth ficou corrompida, visto que apenas um homem achou graça aos olhos do Senhor (Gn 6:8).

A terceira secção TOLEDOT principal, as gerações de Noé, narra como o dilúvio destrói toda a terra e toda a humanidade, como Noé e a sua família são salvos na arca, e o pacto que o Senhor faz com Noé e toda a alma vivente de toda a carne, que está sobre a terra (Gn 9:9-10, 16).

A secção termina com a história de Canaan (Gn 9:20-27), onde aparece novamente esta separação entre os rebeldes e rejeitados e a linhagem da semente da promessa através de Sem, o povo do Nome (SHEM significa “nome”).

A secção TOLEDOT dos filhos de Noé, Sem, Cam e Jafeth (Gn 10:1 a 11:9) é uma subsecção das gerações de Noé. Da família salva do dilúvio procederam 70 nações. Os três filhos de Noé fundaram todas as nações e subgrupos raciais da nossa presente civilização.

No seu último cântico, Moisés refere-se a este acontecimento: «Lembra-te dos dias da antiguidade; atentai para os anos de muitas gerações … Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos dos povos conforme ao número dos filhos de Israel» (Dt 32:7-8). Foram 70, os filhos de Israel que desceram ao Egipto (Gn 46:27; Dt 10:22). O número 70 antevê a missão de Israel, a missão “missionária” junto do resto do mundo enquanto povo especial e reino sacerdotal (Ex 19:4-5) de onde viria o Salvador prometido.

Mas a condição espiritual caída da humanidade continuou a manifestar-se depois do dilúvio, como já se revelou no final da secção anterior. A rebeldia tem a mais forte expressão num dos descendentes de Cam,  Nimrod (o próprio nome significa “rebelde”!), que fundou Babel em rebeldia ao Senhor: «Edifiquemos uma cidade e uma torre e façamo-nos um nome para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra» (Gn 11:4).

A secção termina como juízo de Deus sobre Babel, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra para cumprimento do seu mandamento: Enchei a terra (Gn 9:1).

Gn 11:10 introduz uma nova secção TOLEDOT primária: as gerações de Sem. De todas as nações procedentes dos três filhos de Noé, a atenção é agora dirigida para um dos três filhos. Um estreitar progressivo do foco de toda a humanidade (pós-dilúvio) a uma família.

A genealogia de Sem conduz diretamente à subsecção TOLEDOT, as gerações de Terah (Gn 11:27). Aqui, um novo estreitar do foco.

Estaríamos à espera que a genealogia de Sem conduzisse a uma secção TOLEDOT de Abraão, mas não é o caso.

Observamos que o último da linhagem de Adão, Noé, tem 3 filhos: Sem, Cam e Jafeth. Na linhagem de Sem, é Terah que também é pai de 3 filhos: Abrão, Nacor e Haran. Da família, o foco incide agora numa só pessoa: Abraão, e depois Isaac, o filho da promessa.

A secção das gerações (TOLEDOT) de Terah é uma secção muito longa (Gn 11:27 a 25:11) que narra basicamente toda a história de Abraão até à sua morte (Gn 25:11). Pouco é dito sobre Terah, mas segundo Gn 11:31 foi Terah que iniciou a caminhada para a terra prometida, porém ficou em Haran, onde morreu. As promessas foram feitas a Abraão e Abraão obedeceu e recebeu a promessa. Mas Abraão fez alguns erros, o que resultou no nascimento de Ismael antes de Isaac, que será o herdeiro da promessa. Assim, no fim da secção TOLEDOT de Terah, estão as gerações (TOLEDOT) de Ismael (25:12-18) e de Isaac (25:19).

A subsecção TOLEDOT, as gerações de Isaac, é uma excelente defesa da tradução proposta por Harbin. “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Efetivamente, o que procedeu de Isaac foram Esaú e Jacob, cuja história é narrada nesta secção, que termina com as gerações (TOLEDOT) de Esaú (Gn 36, onde a frase “são as gerações de” aparece duas vezes: 36:1 e 9).

À secção principal TOLEDOT de Sem, segue a secção de Jacob. Cronologicamente, Sem morre com 600 anos, quando Isaac já tem 50 anos, dez anos antes do nascimento de Jacob.

A última secção TOLEDOT principal, as gerações de Jacob (Gn 37:2) centra-se na história de José e em como toda a família vai ter ao Egipto para conservação da vida (50:20). José tornou-se o salvador, o meio pelo qual a família foi preservada e as promessas – dadas e reiteradas a Abraão, Isaac e Jacob – asseguradas. De um homem (Abraão) o foco passa para as 12 tribos, um povo.

O livro de Génesis termina com a morte de José (50:26). Mas a história não termina aqui, nem termina aqui a secção TOLEDOT de Jacob.

Logo a seguir a Génesis, o livro do Êxodo começa com WAW! Isto significa que, apesar de aparentemente ser um novo livro, não é uma nova história, mas a sequência natural e ininterrompida da narrativa em Génesis. “E (WAW) estes são os nomes dos filhos de Israel, que entraram no Egipto com Jacob” (Ex 1:1).

José morreu (Gn 50:26), mas a tarefa de salvar o povo, desta vez do Egipto, passou para outro descendente de Jacob: Moisés, da linhagem de Levi.

Ex 6:14-27 “Estas são as cabeças das casas dos seus pais: os filhos de Ruben …. E os filhos de Simão …. E estes são os nomes dos filhos de Levi ….”.

Ex 6:14 não começa com WAW e podia indicar uma nova secção TOLEDOT. Mas a ausência da conjunção WAW também pode ocorrer no início de uma unidade parentética explicativa dentro de uma unidade primária. Este parece ser o caso aqui. Ex 6:14-27, com a genealogia de Levi até Aarão e Moisés, aparece no meio da narrativa de como o povo de Israel saiu do Egipto, as pragas, etc.. É um parêntese na história, a explicar de qual filho de Jacob descendiam Aarão e Moisés, que foram falar a Faraó para tirar Israel do Egipto.

Creio que a secção TOLEDOT de Jacob só termina efetivamente no final do capítulo de Ex 18. Podemos observar que todas as cláusulas (exceto a parêntese de Gn 6:14) desde Ex 1:1 até 18:27 começam com WAW.

Ex 19:1 é a primeira cláusula que não tem WAW: “Ao terceiro mês da saída dos filhos de Israel da terra do Egipto no mesmo dia, vieram ao deserto de Sinai”, embora não tenha a frase introdutória “estas são as gerações de”.

Mas aqui, no deserto de Sinai, começou realmente um novo capítulo na história de Israel e da humanidade. O povo de Israel foi salvo do Egipto, e agora vão ter parte num novo concerto e receber uma nova identidade e representação.

“Agora, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os povos: porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo” (Ex 19:5-6).

A secção TOLEDOT de Jacob engloba todo o tempo que Israel esteve no Egipto, bem como a saída do Egipto. Dos patriarcas, Abraão, Isaac e Jacob, o foco incide agora num povo na sua função missionária no mundo.

Começando em Ex 19:1, todo o resto do Velho Testamento é, de certa forma, TOLEDOT – “o que procedeu” do povo do concerto depois da saída dos filhos de Israel da terra do Egipto – o tempo da Lei – até Jesus, que veio cumprir todas as promessas. Com Jesus, o foco volta abrir para toda a humanidade (João3:16-17).


Bibliografia

Jason S. DEROUCHIE (2013). The Blessing-Commission, the Promised Offspring, and the Toledot Structure of Genesis. Journal of the Evangelical Theological Society 56/2 219-47.

Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233


27/02/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 1)

 

O livro de Génesis é estruturado em volta da fórmula hebraica “elleh TOLEDOT”, traduzida na maior parte dos casos “estas são as gerações de”. A fórmula aparece 10 vezes em Génesis (na realidade, 11 vezes, mas duas tratam das gerações de Esaú): Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2.

Não é, porém, claro, nem consensual, o que TOLEDOT significa exatamente. Deriva do verbo YALAD, que significa: dar à luz, nascer, engendrar, gerar, conduzindo à tradução clássica de “gerações”. Mas, porque nem sempre a palavra “gerações” parece ser a mais adequada ao contexto, algumas traduções modernas usam por vezes outras palavras. Por exemplo:

Gn 2:4 – Esta é a génese/origem/história (toledot) dos céus e da terra

Gn 6:9 – Esta é a história (toledot) de Noé.

Gn 10:1 – Esta é a posteridade/descendência (toledot) dos filhos de Noé

É geralmente admitido que “elleh toledot” é um indicador estrutural que divide o livro em secções, e que funciona como fórmula introdutória – uma espécie de título de capítulo –, e/ou como fórmula de transição, uma maneira de conectar uma secção à outra.

Ainda outra teoria designa a fórmula como uma subscrição ou resumo do que veio antes. Em 1936, Wiseman[1] sugeriu que as ocorrências de TOLEDOT em Génesis eram, em todos os casos, cólofones. As fontes dos textos de Génesis seriam 11 tabuletas de barro, cada uma delas terminando com um cólofon assinalando a conclusão da unidade. Wiseman observara que as tabuletas mesopotâmicas tinham uma espécie de “ficha técnica”, uma assinatura, que identificava o autor da tabuleta através de uma árvore ou referência genealógica colocada no final do texto, um cólofon. No caso de múltiplas tabuletas sequenciais, havia uma frase que conectava uma tabuleta com a outra a seguir. Muitos destes registos eram histórias sobre origens familiares. Wiseman achou ver uma semelhança com as secções do livro de Génesis. O texto que precede a frase “esta é a genealogia de …” teria informação sobre os eventos que o homem nomeado nesta frase teria conhecido. Ou seja, o livro de Génesis seria o resultado da compilação e redação por Moisés de uma sequência de tabuletas, cada uma escrita por uma testemunha ocular dos eventos nelas descritos.

Para uma abordagem mais pormenorizada sobre a Hipótese de Wiseman, e a divisão de Génesis com a fórmula TOLEDOT como cólofon, remeto à mensagem Quem escreveu Génesis. Na altura, considerei uma possível explicação, mas após nova análise trago aqui uma explicação que me parece mais adequada.

Faço referência a esta teoria porque ela apresenta alguns problemas e porque nos permite contrastá-la com a leitura mais natural da fórmula ELLEH TOLEDOT (estas [são as] TOLEDOT) [2] como introdutória e, simultaneamente, de transição.

Há cinco casos em que a fórmula claramente precede uma lista de descendentes (não podendo nunca ser visto como um cólofon): 5:1 (Adão), 10:1 (os filhos de Noé); 11:10 (Sem); 25:12 (Ismael); 36:1 (Esaú). Fora do livro de Génesis, as duas ocorrências com o mesmo padrão apoia a leitura como título: Num 3:1 (as gerações de Aarão e de Moisés) e Ruth 4:18 (as gerações de Perez, o filho de Judá, até David).

Na teoria de Wiseman, a primeira vez que aparece a expressão ELLEH TOLEDOT, as TOLEDOT dos céus e da terra (Gn 2:4) referem-se à história da criação na primeira secção de Génesis (1:1 a 2:4a), e as TOLEDOT de Adão encerram outros pormenores da criação, a criação da mulher, a queda, as maldições, a promessa de um salvador e a história de Caim (Gn 2:4b a 5:1a). E toda a descendência de Adão até Noé está na história/gerações de Noé (de 5:1 a 6:9). Se, eventualmente, 2:4a, 5:1 e 6:9 possam ser compreendidos como cólofon, referindo-se à narrativa que precede, noutros casos, tal interpretação não é lógica. Por exemplo: inscrever a história de Abraão (11:28 a 25:11) sob a assinatura de Ismael, as “gerações de Ismael” (25:2), não faz sentido de todo, historicamente. Seria mais lógico se as TOLEDOT de Isaac fechassem a história de Abraão. Mas, então, as TOLEDOT de Isaac são o registo da genealogia de Ismael? Os apoiantes da teoria do cólofon tentam dar a volta à dificuldade explicando que a secção sobre Ismael é uma subsecção nas “TOLEDOT de Isaac”. A informação sobre os filhos de Ismael terá sido dada a Isaac quando os dois irmãos se juntaram por ocasião do sepultamento de seu pai Abraão. Mas esta explicação não é coerente, porque a fórmula “as TOLEDOT de Ismael” precede a genealogia de Ismael e a leitura natural é de uma introdução à lista de descendentes. O mesmo problema levanta-se em relação às gerações de Esaú em 36:1.

Se a origem da palavra TOLEDOT vem do verbo YALAD, = gerar, a palavra TOLEDOT contem a ideia de sequência e consequência, o que resulta de algo, o que alguém produz ou gera. E aponta para frente e não para trás.

Por exemplo:

O livro das TOLEDOT de Adão (Gn 5:1) descreve, através dos seus descendentes, o que procedeu do primeiro homem, o que ele gerou. Adão foi criado à semelhança de Deus (5:1), mas gerou um filho à sua semelhança (5:3). O que procedeu da queda do primeiro homem terminou na corrupção geral do género humano e a decisão do Senhor de destruir o homem que criou e a vida animal. Mas restou um homem, Noé, que achou graça aos olhos do Senhor. Gn 6:8 faz a ligação com a secção seguinte.

Em Gn 6:9 começam as gerações (TOLEDOT) de Noé. Esta secção diz que Noé gerou três filhos, mas o foco da narrativa está em Noé e na preparação da arca, no dilúvio e na aliança que Deus faz com Noé e a sua semente depois do dilúvio. Antes de terminar com a morte de Noé (9:29), a secção finaliza com o que fizeram os filhos de Noé (9:20-27) e a maldição de Canaan, cujas consequências se manifestarão na secção seguinte (Gn 10:1 a 11:9).

Gn 10 apresenta o mundo pós-dilúvio através da descendência (TOLEDOT) dos filhos de Noé (Gn 10:1), que foram introduzidos no final da secção anterior. É um novo recomeço para a humanidade, com o renovado mandado de “frutificar, multiplicar e encher a terra” (9:1) cumprido através de Shem, Cam e Jafeth. A secção termina com a confusão de Babel; como Deus teve que intervir mais uma vez para desfazer os esforços da humanidade de desobedecer às Suas orientações, mantendo-se juntos num local em vez de encher a terra.

Até agora, já encontramos 4 secções TOLEDOT.

1)      As TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 a 4:26)

2)      O livro das TOLEDOT de Adão (5:1 a 6:8)

3)      As TOLEDOT de Noé (6:9 a 9:29)

4)      As TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 a 11:9)

Olhando para esta sequência, podemos concordar com Harbin que, num artigo recente [3], propõe uma tradução uniforme da fórmula ELLEH TOLEDOT. O uso repetido desta fórmula marca-a como um indicador estrutural, o que sugere um significado especializado e consistente, requerendo uma tradução uniforme. Como tal, Michael Harbin propõe especificamente traduzir ELLEH TOLEDOT como: [this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Assumindo que ELLEH TOLEDOT é, então, um título e expressão que faz a transição entre uma secção e a seguinte, observamos que a porção inicial de Génesis – o relato da criação (Gn 1:1 a 2:3) – não inicia com esta mesma fórmula mas serve como prefácio ou introdução ao livro. Afirma que Deus é o Criador de todo o universo (1:1), descreve em breves frases o processo da criação e termina com a avaliação da obra pelo próprio Deus – E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom (1:31), após o que Deus descansou no sétimo dia. Sem este prefácio, sem o Criador, não aconteceria mais nada. Não haveria história. E só o próprio Deus poderia ser o autor deste prefácio.

Isto ajuda-nos a compreender a estrutura TOLEDOT. Se Gn 1:1 a 2:3 é um prefácio, o resto do livro trata do que aconteceu depois. Deus criou um universo que era “muito bom”. E a primeira secção introduzida por ELLEH TOLEDOT (Gn 2:4 a 4:26) explica o que aconteceu a este universo “muito bom”.

Portanto, Gn 2:4, em vez da tradução “estas são as origens dos céus e da terra”, como que se referindo à secção anterior (teoria de Wiseman), parece adequado traduzir assim: ”o que foi feito dos céus e da terra que Deus criou”, introduzindo a narrativa que vai até 4:26. Primeiro, apresenta pormenores sobre alguns eventos do prefácio (a criação do jardim, do homem, da mulher). Depois vem a história da serpente e aconteceu que o homem, querendo ser autónomo, estragou tudo, desobedeceu a Deus, e recebeu as consequências da sua ação (3:14-24). E não só ele, mas toda a criação (v.17-18). “O que foi feito dos céus e da terra que o Senhor criou” e avaliou «muito bom», foi que o homem transgrediu o mandamento do Senhor e o Senhor lançou fora o homem do jardim do Éden. E segue-se a história de Caim e seus descendentes. O final da secção (Gn 4:25-26) fala de Seth, a semente que vai ocupar o lugar de Abel, é uma nota positiva que faz a transição com a secção seguinte: “então se começou a invocar o nome do Senhor”.

Na mensagem seguinte, vamos ver se a tradução proposta para ELLEH TOLEDOT - “o que foi feito de …” “o que procedeu de …” se aplica ao resto do livro de Génesis.



[1] P.J. Wiseman (18 - 19) era um oficial britânico estacionado no Médio Oriente, que se interessou pelas descobertas arqueológicas, embora não fosse formado em história ou arqueologia. Ficou intrigado pelo estilo particular em que eram redigidas centenas de tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia. Na sua opinião, estas continham a chave para a escrita original do livro de Génesis. Wiseman publicou o seu livro em 1936, que foi revisto e atualizado, em 1985, por seu filho Donald Wiseman, professor em assiriologia e diretor do British Museum, com o título “Ancient Records and the Structure of Genesis” (Nashville: Thomas Nelson, Inc., 1985).

[2] A terminação hebraica em OT é um plural feminino.

[3] Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233