26/07/2016

JÓ. Quem era? Quando e onde viveu? (3)


Nas anteriores mensagens Quem é Jó? e Os amigos de Jó (publicadas em janeiro 2014), defendi que Jó era filho de Issacar (Gn 46:13).

Há algumas semanas, na procura de entender a que se refere a divisão (PALAG) da terra nos dias de Pelegue (mensagem Os dias de Pelegue publicada em julho 2016), encontrei um autor que apresenta argumentos que Jó seria Jobabe, um dos filhos de Joctã, irmão de Héber (Gn 10:29) (Barry Setterfield in www.setterfield.org): algumas passagens conteriam indicações de que Jó e seus amigos foram testemunhas de eventos catastróficos do tipo que teriam sido normais na época em que se dividiram os continentes, nos dias de Pelegue. Esta tese apoia-se também na longevidade de Jó (conforme aparece dado na Septuaginta) que na opinião de Setterfield é consentânea com o tempo de Pelegue.
Vamos analisar as razões que Barry Setterfield, físico e geólogo, apresenta.

Jó nos dias de Pelegue?

Se Jó vivia durante os cerca de 100 a 200 anos em que os continentes se rasgaram ao longo da fissura meso-atlântica e outras placas tectónicas, teria havido enormes maremotos, terramotos, atividade volcânica, formação de montanhas e outros desastres. Setterfield encontra tudo isto no livro de Jó. Alguns exemplos:
As catástrofes naturais que sobrevieram às ovelhas e aos filhos de Jó: fogo de Deus que queimou as ovelhas e um grande vento que fez cair a casa sobre os filhos (1:16, 19). O aparecimento de gelo no Médio Oriente, causado pela uma inclinação do eixo da terra no tempo da divisão dos continentes que causou a idade do gelo sobre a Europa e Médio Oriente (6:15-18; 38:29-30). Terramotos e movimentos violentos da terra (Jó 9:5-6 – Ele é quem remove os montes, sem que saibam que na sua ira os transtorna; que move a terra para fora do seu lugar, cujas colunas estremecem; 14:18-19 - Como o monte que se esboroa e se desfaz e a rocha que se remove do seu lugar, como as águas gastam as pedras, e as cheias arrebatam o pó da terra ….). Dias em que o sol não sai de dia e as estrelas não estão visíveis de noite, o que pode ser causado por cinzas volcânicas no céu (9:7). Não se trata evidentemente de explicações científicas mas de descrições do que se observou. Tsunamis: quando o mar o mar se retira para longe, mostrando o fundo seco e depois a vaga inunda a terra (12:15 – Se retém as águas, elas secam; se as larga, devastam a terra). Atividade vulcânica (18:15). Jó 28:5-6 – Da terra procede o pão mas em baixo é revolvida como por fogo. Nas suas pedras se encontra safira, e há pó que contém ouro. Jó 28:9 – Ele estende a sua mão contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes. Abre canais nas pedras, e os seus olhos vêem tudo o que há de mais precioso.

Admitindo que se possa tratar de eventos do tempo de Pelegue, em que a terra passou por um ciclo de transformação muito violento, estas passagens parecem simplesmente descrever situações catastróficas que têm acontecido ao longo dos tempos em vários lugares do mundo. Este tipo de eventos voltamos a encontrá-los no período do êxodo.

Baseando-se na Septuaginta Alexandrina (300 a.C.), onde se afirma que Jó viveu um total de cerca de 248 anos, Setterfield conclui que a longevidade de Jó é consentânea com o tempo de Pelegue. Antes de Pelegue, e depois do dilúvio, a longevidade era cerca de 400/450 anos. Depois de Pelegue vemos uma diminuição rápida da expectativa de vida: Pelegue 239 anos, Reú 239 anos, Serugue 230 anos, Naor 148 anos.

No entanto, há muitos indícios no livro de Jó que impedem a identificação de Jó com o Jobabe de Gn 10:29 e que o situam, no tempo, claramente depois de Abraão.

E outra coisa que nos devemos perguntar é se, nos dias complicados de Pelegue em que a preocupação se centraria em primeiro lugar na sobrevivência em tempos de catástrofes naturais, já existiria literatura com a riqueza que se mostra no livro de Jó? Havia escrita, sim, mas literatura tão complexa, profunda e pormenorizada?

Depois de Abraão

- Jó e seus amigos usam repetidamente (cerca de 40 vezes!) o nome El-Shaddai, ou Shaddai, para referir-se a Deus. A primeira vez que Deus se apresentou assim foi a Abrão (Gn 17:1), quando este fez 99 anos, logo antes de Isaque nascer. A secção de Gn 10:1b a 11:10a é a secção “toledot” transmitida por Sem (Estas são as gerações de Sem). Naquele tempo, os nomes de Deus usados eram Elohim e Jaweh (Jehovah).

- Jó 6:19 fala das caravanas de Tema e os viajantes de Sabá. Se podemos encontrar o nome de Sabá duas vezes em Gn 10: 7, 28, o nome Tema, que significa deserto, vem do filho de Ismael, filho de Abraão (Gn 25:15; 1Cr 1:30).

- As personagens que aparecem no livro situam Jó várias gerações depois de Abraão.
Elifaz o temanita. Em Gn 10, não há qualquer referência a Temã ou Tema. Temanitas poderiam ser descendentes de Tema, filho de Ismael (Gn 25:15;1Cr 1:30), mas mais provavelmente de Temã, filho de Elifaz e neto de Esaú (Gn 36:15).
Bildade o suíta. É descendente de Sua, filho de Abraão com Quetura (Gn 25:2; 1Cro 1:32).
Eliú, filho de Baraquel, o buzita, da família de Rão. Buz é filho de Naor, irmão de Abraão (Gn 22:21). A família de Rão pode estar relacionada com um dos filhos de Sem (Gn 10:22), mas também com Arã, filho de Quemuel, outro filho de Naor, irmão de Abraão. Eliú é um jovem em relação aos outros amigos, Elifaz, Bildade e Zofar, referindo-se a eles como idosos (Jó 32:5-6).

O quadro seguinte procura situar todos os personagens envolvidos na história de Jó, cronologicamente e uns em relação aos outros. Cada faixa de uma cor representa uma geração, aproximadamente.
Abraão

Naor



Isaque

Buz
Quemuel
Esaú

Jacó

Sua


Arã

Reuel
|
Elifaz
|
*
|



Zerá
|
Temã
|
Issacar
|



Jobabe
[Elifaz o temanita]
Bildade o suíta






Eliú
Nota: *Esaú casou com 40 anos de idade (Gn 26:34). Reuel e Elifaz, filhos de Esaú, nasceram em Canaã, antes de os irmãos se separarem. Jacó tinha 77 anos quando foi para Padam-Aram. Todos os seus filhos, exceto Benjamim, nasceram nos 14 anos seguintes, por isso uma geração depois dos primeiros filhos de Esaú.

Estas considerações genealógicas não deixam grandes dúvidas quanto ao tempo em que Jó viveu.

Estes indícios genealógicos são reforçados pela ocorrência repetida (5 vezes) da palavra ferro, indicando a existência de utensílios e armas de ferro e a resistência deste metal (19:24; 20:24; 28:2; 40:18; 41:27).
A referência mais antiga a ferro vem em Gn 4:22, antes do dilúvio. Nesse contexto, o ferro terá sido ferro meteórico, uma liga de ferro e níquel que tem origem em meteoritos. Era raro e precioso, e usado muito antes da Idade do Ferro. Não precisava ser fundido, apenas era moldado. Ainda não se conseguiam obter temperaturas suficientemente elevadas para derreter o ferro, que requer mais altas temperatura do que o cobre e o bronze. Não há qualquer outra referência a ferro no livro de Génesis.
Na história bíblica pós-dilúvio, as primeiras referências a ferro aparecem em Levítico, Números e Deuteronómio, na época em que os Israelitas saíram do Egipto. Isto coincide sensivelmente com o começo da Idade do Ferro no antigo Médio Oriente, com o desenvolvimento de técnicas de fundição e metalurgia.
Calculámos (ver Os amigos de Jó) que Jó terá morrido alguns anos antes do nascimento de Moisés. Penso que pode ser mais uma prova a favor da localização de Jó durante o tempo em que Israel estava no Egipto.

Como já temos definido quando Jó viveu, isto também simplifica a questão do número de anos que ele viveu ao todo.

A longevidade de Jó

Qual foi o número de anos que Jó viveu ao todo? 140? ou mais?
A versão da Septuaginta que encontrei diz que Jó viveu depois da aflição, 170 anos, e no total 240. And Job lived after his affliction a hundred and seventy years: and all the years he lived were two hundred and forty (Compiled from the Translation by Sir Lancelot C. L. Brenton 1851. http://ecmarsh.com/lxx/index.htm)

Bíblia João Ferreira de Almeida: Jó 42:16 – E, depois disto, viveu Jó 140 anos.

A partir deste versículo alguns entendem que Jó tinha 70 anos quando a desgraça lhe sobreveio, e que depois viveu ainda 140 anos, o dobro do que já tinha vivido, num total de 210. O que o colocaria numa época anterior a Abraão (quando a longevidade era superior a 200 anos), no tempo de Terá, que viveu 205 anos. O que não é o caso, como já vimos, pelo que parece mais correto entender Jó 42:16 como dizendo que Jó viveu até aos 140 anos, no todo. É assim que o interpreta, por exemplo, Matthew Henry.

Eliú era mais novo do que Jó e seus amigos. Ele diz que são idosos (32:5-6), e o eram do ponto de vista dele. Mas também, se a provação de Jó começou quando ele tinha 70 anos, e se tivesse vivido mais o dobro 140, dificilmente se poderá dizer que aos 70 Jó era idoso.

Jó = Jobabe?

Resta a questão se Jó é Jobabe, rei edomita, descendente de Esaú (Gn 36:33-34). Toda esta discussão em volta da identidade de Jó parece ser consequência de um comentário ou nota editorial na Septuaginta. Se esta nota não existisse, talvez a discussão não existiria também. Visto que este comentário não pertence ao próprio texto bíblico, consideramos esta nota um acréscimo não autêntico. Temos, contudo, que analisar a questão.

This man is described in the Syriac book as living in the land of Ausis, on the borders of Idumea and Arabia: and his name before was Jobab;  and having taken an Arabian wife, he begot a son whose name was Ennon. And he himself was the son of his father Zare, one of the sons of Esau, and of his mother Bosorrha, so that he was the fifth from Abraam. And these were the kings who reigned in Edom, which country he also ruled over: first, Balac, the son of Beor, and the name of his city was Dennaba: but after Balac, Jobab, who is called Job, and after him Asom, who was governor out of the country of Thaeman: and after him Adad, the son of Barad, who destroyed Madiam in the plain of Moab; and the name of his city was Gethaim. And his friends who came to him were Eliphaz, of the children of Esau, king of the Thaemanites, Baldad sovereign the Sauchaeans, Sophar king of the Minaeans. http://ecmarsh.com/lxx/Job/index.htm

- A nota da Septuaginta diz que Jobabe era filho de Zera, um dos filhos de Esaú e sua mãe Bozra. Era o 5º depois de Abrão. Reinou em Edom, depois de Balaque (Bela?), filho de Beor.

Que diz a Bíblia deste Jobabe?
De Esaú x Basemate, filha de Elom, heteu (Gn 26:34), nasce Reuel (Gn 36:13). Zerá, príncipe dos filhos de Esaú (Gn 36:17), é filho de Reuel. Entre os reis que reinaram na terra de Edom, aparece Jobabe, filho de Zerá de Bozra (Gn 36:33; 1Cr 1:44), depois de Bela, filho de Beor, cuja cidade era Dinabá.

Não é totalmente inequívoco que Jobabe seja sequer filho de Zera, filho de Reuel.

A nota da Septuaginta diz que Bozra era a mãe de Jobabe. Mas isto não tem qualquer apoio bíblico. Na lista dos reis de Edom (Gn 36:31-39), estes reis estão sempre associados a um lugar, não ao nome da mãe. Bozra, que quer dizer curral de ovelhas (Miq 2:12), aparece com maior frequência nos profetas como uma cidade, sempre em conexão com a execução de um juízo sobre Edom (Is 34:6; 63:1; Jr 49:13; Amós 1:12). Jobabe, e o pai dele Zera, estão ligados à cidade de Bozra. Não faz qualquer sentido ligar Jó a este Jobabe, rei de Edom.

- A questão Jó-Jobabe tem sido abordada a partir da grafia e significado destes nomes. Porém, é confuso e não parece conclusivo.

Jó, filho de Issacar

Podemos apresentar argumentos a favor da identificação de Jó como filho de Issacar?

- A única pessoa com o nome de Jó fora do livro de Jó é um filho de Issacar (Gn 46:13). Jó, em Gn 46:13, é chamado Jasube em Num 26:23 e 1 Cro 7:1, o que significa “ele voltará”. A figura e história de Jó coaduna-se com o nome de Jasube (ele voltará). Jó entrou no Egipto juntamente com o seu pai Issacar e o restante da família de Jacó (Gn 46:13). Mais tarde, adulto, Jó, por alguma razão que desconhecemos, terá deixado a sua família no Egipto, instalando-se na terra de Uz.

- Todas as personagens no livro de Jó são identificados pelo parentesco: temanita, suíta, naamatita, buzita. Jó é apenas Jó. O livro de Jó faz parte de um conjunto de livros que contam a história do povo de Israel: os livros da lei, os profetas, livros de sabedoria, os livros históricos. Neste contexto, não há necessidade de identificar Jó como Jó, “o israelita”. Isto está subentendido. Se ele fosse edomita, sim, essa identificação se tornaria necessária.

- Jó é descrito como “homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desviava do mal” (1:1), muito ao modo como Jó é descrito como “homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus” (Gn 6:9). A sua maneira de viver parece mais própria no quadro do povo de Israel do que dos descendentes de Esaú e certamente de um rei. Esaú perdeu a bênção, os seus filhos são chamados príncipes e adquiram poder pela espada (Gn 27:40).

Jó é mencionado em Ezequiel 14:14,20, juntamente com Noé e Daniel. Em lugar algum, é mencionado como sendo gentio. Deus chama “meu servo Jó”.
Jó também é mencionado em Tiago 5:10-11

“Irmãos, tomai por modelo no sofrimento e na paciência os profetas, os quais falaram em nome do Senhor. Eis que temos por felizes aos que perseveraram firmes. Tendes ouvido da paciência de Jó, e vistes que fim o Senhor lhe deu; porque o senhor é cheio de terna misericórdia, e compassivo.”


- E, por fim, penso que não podemos ignorar o que diz Romanos 3:3, que afirma que “aos judeus foram confiados os oráculos de Deus”. Perante esta afirmação, podemos atribuir a autoria deste livro e a sua personagem principal a alguém que não pertencia ao povo de Israel?

21/07/2016

OS DIAS DE PELEGUE

- A DISPERSÃO PELA TERRA (2)
Numa mensagem anterior (A dispersão pela terra -1), abordámos a dispersão causada pela confusão de línguas em Babel. Antes de prosseguir com o tema dos dias de Pelegue, retomo o conteúdo da mensagem anterior.
A tese que tem mais apoio é que a confusão de línguas gerada em Babel foi o motivo da dispersão dos descendentes de Noé por toda a superfície da terra e a origem das línguas. Que, antes disto, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar (Gn 11:1). E que esta dispersão se deu nos dias de Pelegue (Gn 10:25).
Contudo, com base numa análise de várias palavras utilizadas em Gn 10 e 11, temos razões para crer que há causas diversas para a dispersão das famílias descendentes dos filhos de Noé. E que a história da torre de Babel tem um significado muito específico, cuja interpretação poderá ser inferida do uso, em vários versículos em Gn 10 e 11, das palavras traduzidas em Português língua e linguagem. À primeira vista, parecem sinónimos, mas não são. Em Hebraico, são palavras diferentes com significado diferente.
Língua’ em Gn 10:5, 20,31 é diferente de ‘linguagem’ em Gn 11:1,6,7,9.
Em Gn 10:5, 20 e 31, ao falar da dispersão dos descendentes dos filhos de Noé, a palavra ‘língua’ é LASHON, em Hebraico, significando língua (o órgão do corpo) e idioma. Gn 10:5- Estes repartiram entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua (o seu idioma), segundo as suas famílias, em suas nações.
LASHON é empregado, por exemplo, em Dt 28:49, Ne 13:24, Dn 1:4; Ester 1:22; 3:12, Is 28:11; 66:18 onde se refere às línguas faladas pelos diferentes povos.
Em Gn 11:1 – em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar – aqui ‘linguagem’ é tradução de SAPHAH (lábio) e ‘maneira de falar’ da palavra DABAR (palavra). A palavra SAPHAH, literalmente lábio (1 Sam 1:13), refere-se ao conteúdo do que se fala (por ex. Ex 6:12, 30), não à forma ou idioma. E o uso de DABAR reforça isto.
 ‘Lábio’ (SAPHAH) está associado à confissão religiosa. Darei lábios puros aos povos (Sof 3:9); o que proferiram os teus lábios, isto guardarás (Dt 23:23); nunca os meus lábios falarão injustiça (Jó 27:4); as minhas razões provam a sinceridade do meu coração, e os meus lábios proferem o puro saber (Jó 33:3); proclamei as boas novas de justiça na grande congregação, jamais cerrei os lábios (Sl 40:9); sou homem de lábios impuros (Is 6:5); …
O que aconteceu em Babel não foi uma confusão e divisão de línguas, no sentido de idiomas falados pelas pessoas, mas uma divisão em termos de religião, de confissão religiosa, de “palavra”. Depois do dilúvio, no princípio, havia uma linguagem em toda a terra; todos confessavam o mesmo Deus. A linguagem que os habitantes de Babel estavam a falar não era a mesma que se falava no início, quando Noé e sua família saíram da arca. Queriam edificar uma cidade para si, uma torre que chegasse aos céus e tornar célebre o seu nome. Estes tinham todos a mesma linguagem. É essa linguagem pecaminosa, de um povo “um” na sua rebeldia, que foi confundida porque na união não haveria restrição ao seu intento (Gn 11:6).
Quem foram os intervenientes nesta história? Gn 11:2 – partindo eles do oriente, deram com uma planície na terra de Sinear; e habitaram ali.
A terra de Sinear era o território onde dominava Nimrode, descendente de Cuxe, filho de Cão (Gn 10:9-10). Babel era o princípio do seu reino.
Quem são “eles”? “Eles”, que partiram do oriente e deram com uma planície na terra de Sinear e habitaram ali (Gn 11:2), terão sido os filhos de Joctã, irmão de Pelegue, filhos de Héber, descendentes de Sem. Eles, os filhos de Joctã, habitaram desde Messa, indo para Sefar, montanha do oriente (Gn 10:30). Em algum momento, partiram do oriente para irem habitar na terra de Sinear, onde se juntaram aos descendentes de Nimrode em Babel na rebeldia contra Deus. Edificaram uma cidade e uma torre para que não fossem espalhados por toda a terra (Gn 11:4), em vez de encherem toda a terra como tinham sido ordenados (Gn 9:1). A linha de Joctã aliou-se a Nimrode, e apostatou, enquanto a linha de Pelegue conduziu a Abrão.

Dispersar
Além das palavras “língua” (LASHON) e “linguagem” (SAPHAH), há outras palavras em Gn 10 e Gn 11:1-8 que também parecem sinónimos, mas não são, e por isso têm que ser vistos mais de perto. São as palavras traduzidas repartir, dispersar, espalhar, separar, dividir, disseminar.
Antes de analisarmos o uso destas palavras, precisamos de ver a passagem no seu todo, desde Gn 10:1b – Sem, Cão e Jafé; nasceram-lhes filhos depois do dilúvio – até Gn 11:10 – São estas as gerações (toledot) de Sem. Assumimos que esta é a secção escrita por Sem (ver mensagem “Quem escreveu Génesis?” de julho 2016).
Distinguimos 2 grandes partes:  1) Gn 10:1b-32 e 2) Gn 11:1-9. A primeira parte ainda é dividida em 3, distinguindo as famílias dos 3 filhos de Noé, falando primeiro dos filhos de Jafé, depois dos filhos de Cão, e depois dos filhos de Sem. Cada uma destas famílias tem uma história muito específica e diferente. As três histórias encerram com este versículo: São estas as famílias dos filhos de Noé, segundo as suas gerações, nas suas nações; e destes foram disseminadas (PARAD) as nações na terra depois do dilúvio (Gn 10:32). A seguir, vem a história da torre de Babel, que termina assim: ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os dispersou (PUTS) por toda a superfície dela (Gn 11:9).
Para já, observamos um paralelismo: “língua” (LASHON) e “disseminados” (PARAD) na parte que fala das famílias dos filhos de Noé, e “linguagem” (SAPHAH) e “dispersou” (PUTS) na história de Babel.
Olhemos também para as histórias das 3 famílias:
Os filhos de Jafé … repartiram (PARAD) entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua, segundo as suas famílias em suas nações (v.5).
A história dos filhos de Cão é mais animada. Há Nimrode, o poderoso na terra, que tem domínio, que tem um reino. O princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear. E há Canaã, cujos descendentes se espalharam (PUTS) (v.18), mas cujo território tinha um limite (v.19).
Na história dos filhos de Sem, há Pelegue – que se chama assim porquanto em seus dias se repartiu (PALAG) a terra (v.25) –, e seu irmão, Joctã.
Nestas três histórias, a palavra traduzida ‘língua’ é sempre LASHON, idioma. Na história de Babel, linguagem é SAPHAH e o Hebraico da palavra traduzida “dispersar” é PUTS.
Observamos que há três palavras diferentes em Hebraico - PARAD, PALAG e PUTS - traduzidas dispersar, repartir, disseminar, aparentemente verbos bastante sinónimos.
Gn 10:5, 32- Estes repartiram (PARAD) entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua (LASHON).
PARAD tem o significado de separar-se, dividir-se separando: como Abrão e Ló (Gn 13:9,11,14); Jacó e Esaú (Gn 25:23); como Jacó separou as ovelhas (Gn 30:40); como Héber se apartou dos queneus (Jz 4.11); e outras ocorrências (Dt 32:8; 2Sm 1:23; 2Rs 2:11; Es 3:8).
Esta separação (PARAD) das famílias de Jafé pelas ilhas, nas suas línguas, pode ter sido uma separação muito natural, devido ao aumento da população e à obediência ao mandamento do Senhor (Gn 9:1). E o afastamento geográfico origina afastamento linguístico, fazendo com que a mesma língua evolua em várias direções diferentes. O uso de PARAD aqui e o uso de PUTS na história de Babel pode querer dizer que não são acontecimentos relacionados. Aliás, a ordem que Deus deu a Noé e seus filhos era “multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9:1). A dispersão pela superfície da terra era algo que Deus queria que acontecesse. É improvável que todos os descendentes de Noé tivessem desobedecido a Deus, ficando juntos, e que um acontecimento os dispersasse por força.
Em Gn 10:18 e 11:8,9, o verbo ‘dispersar’ é PUTS, que significa partir em pedaços, no sentido literal ou figurado, dispersar, espalhar (exemplos: Gn 49:7; Ex 5:12; Num 10:35; Dt 4:27; Is 41:16; Jr 9:16, 10:21). PUTS parece ter uma conotação mais negativa, mais violenta.
O espalhar (PUTS) das famílias dos cananeus (v.18) parece ter sido mais violenta do que o repartir ou espalhar (PARAD) dos filhos de Jafé (v.5), possivelmente em consequência da maldição falada por Noé (Gn 9:25).
E, ainda, há o verbo PALAG.

Pelegue
Gn 10:25 – A Héber nasceram dois filhos: um teve por nome Pelegue, porquanto em seus dias se repartiu (PALAG) a terra (ERETZ).
Além do verbo ser diferente do verbo usado para a dispersão de Babel, o objeto sobre o qual incide a ação do verbo não é o mesmo. Em Gn 10:25, o que é repartido é a terra, enquanto no caso de Babel trata-se de dispersar o povo.
A pergunta, então, é: a ‘terra’ (ERETZ) deve ser entendida literalmente? ou deve ser entendida no sentido dos ‘habitantes da terra’ como é a interpretação mais comum? Mas se se trata dos habitantes, porquê usar um verbo diferente do que em Gn 10:5 e 32 se o assunto é, alegadamente, o mesmo?
Será que faz sentido entender a ‘terra’ num sentido geológico? Há quem defende que Gn 10:25 tem a ver com a separação dos continentes a partir de uma única porção de terra.
Um dos defensores desta hipótese é Bernard Northrup, professor de Grego e Hebraico. Num artigo “Continental Separation and the Fossil Record”, afirma que há claras considerações etimológicas baseadas no nome de Pelegue que indicam uma divisão que envolve água.
Palag (ou PLG) contém frequentemente uma referência a água. A palavra é usada para um rio de água em Hebraico, Copta, Etíope e Grego. É usada para referir canais de irrigação que levavam a água através das terras aráveis da Mesopotâmia. Uma análise do uso em Grego (família de Jafé) das letras PL e PLG da raiz mostra que a maioria dos casos têm relação com o oceano, o mar. Alguns exemplos: Pelagos – nome antigo (grego) para o Mar Mediterrâneo; Arquipélago – conjunto de ilhas no mar; Sedimento pelágico - sedimento que se acumula como resultado da deposição de partículas no assoalho oceânico sob águas profundas e áreas distantes dos continentes…
O nome de Pelegue e o verbo PALAG têm a mesma raiz.
Este verbo PALAG é usado apenas três vezes na Bíblia fora do livro de Génesis.
Em 1Cr 1:19, que simplesmente repete Gn 10:25.
Jó 38:25 - Quem abriu (PALAG) regos para o aguaceiro?
Job 38:25 – (NIV) "Who cuts (PLG) a channel for the torrents of rain, and a path for the thunderstorm?" (KJV) "Who hath divided (PLG) a watercourse for the overflowing of waters, or a way for the lightning of thunder?"
Sl 55:9 – Destrói, Senhor, e confunde (PALAG) os seus conselhos (Destroy, O Lord, and divide their tongues: for I have seen violence and strife in the city.). David estava falando dos seus inimigos e pedia ao Senhor para os julgar com a confusão de línguas (LASHON), numa associação óbvia com a confusão de línguas em Babel, embora usasse LASHON e não SAPHAH como em Génesis. Para alguns, isto apoia a interpretação que a divisão do tempo de Pelegue é a mesma que a divisão de Babel.
Da mesma raiz, o substantivo PALAG, usada 10 vezes, tem o significado de canal, rio, torrentes de águas (Jó 29:6; Sl 1:3; 46:4; 65:9; 119:136; Pv 21:1; Is 30:25; 52:2; Lam 3:48).
A forma perfeita do verbo PALAGIN em Gn 10:25 indica, não um evento pontual, mas um processo contínuo. Quando Pelegue nasceu, a separação de áreas de terra pelo mar já estava a decorrer e ainda não estava completado. É algo que aconteceu “em seus dias”.
O conceito de que inicialmente havia uma única massa de terra está implícito em Gn 1:9-10 – Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e apareça a porção seca. À porção seca chamou Deus terra (ERETZ).
A teoria das placas tectónicas está em acordo com esta compreensão de Gn1:9-10. A camada superior da terra está fragmentada numa dúzia de placas de dimensões e formas diferentes em cima de camadas mais quentes e fluidas. Há várias provas que apoiam a ideia de um único continente inicial. As formas dos continentes parecem peças separadas de um puzzle. Há correspondências fósseis ao longo das margens dos continentes que parecem encaixar, o que só faz sentido se os dois continentes estiveram juntos em algum tempo no passado. Grandes quantidades de atividade sísmica, volcânica e geotermal ocorrem ao longo das placas. Há cristas, como a crista do Médio Atlântico, que são produzidas por lava que jorra de entre as placas e as aparta e, de modo semelhante, há serras montanhosas formadas onde as placas chocam (por exemplo, Andes e Himalaias). Há estrias glaciais em rochas que indicam que glaciares moviam-se de África para o oceano Atlântico, e do Atlântico para a América do Sul, situação possível se inicialmente não havia um oceano a dividir as terras. Estes são pontos que indicam a existência de uma única massa de terra original, que foi depois dividida nos continentes como hoje os conhecemos. Depois do dilúvio, este continente começou gradualmente a dividir-se, atingindo o seu auge no tempo de Pelegue, que nasceu 100 anos depois do dilúvio.
Este conceito de que até ao tempo de Pelegue existia um só continente ajuda compreender algumas coisas. Permitia uma migração relativamente fácil para lugares longínquos sem ter que atravessar grandes oceanos e o isolamento ficou completado quando as placas tectónicas terminaram os seus grandes movimentos. Explica também a existência de certos animais num continente (por exemplo, marsupiais na Austrália) e não noutros, bem como histórias (por exemplo, mitos de dilúvio) e técnicas de construção semelhantes em continentes hoje totalmente separados geograficamente.
Outra interpretação de Gn 10:25 é mencionada por FOUTS. A divisão da terra nos dias de Pelegue pode ser uma referência ao desenvolvimento geral do sistema de canalização de águas na Mesopotâmia. É uma opinião que reconhece o campo semântico da palavra mas limita o seu significado a canais ou pequenos rios de água. Pelegue foi chamado deste nome (“canal”) porque nos seus dias a terra foi dividida por canais. Esta interpretação reduz o contexto de Gn 10 e 11 à Mesopotâmia e não à terra toda. O que, em meu ver, não tem em consideração o contexto universal desta passagem que trata das famílias dos filhos de Noé que foram disseminadas na terra depois do dilúvio e da origem das 70 nações na terra.

Cronologicamente
Quando olhamos para as gerações dos filhos de Noé cronologicamente, os filhos de Joctã (quando se dá a dispersão de Babel) são a 5ª geração depois do dilúvio
Os descendentes de Jafé, que repartiram entre si as ilhas, só são mencionados até à 2ª geração depois do dilúvio. Portanto, a sua separação começou antes do tempo de Pelegue (4ª geração) e da dispersão de Babel (5ª geração).
Quando Pelegue nasceu e recebeu o seu nome, a terra já estava a ser dividida por água. Isto, portanto, uma geração antes do acontecimento de Babel.

Sem
Jafé
Cão
1ª geração
Arfaxade
Gomer, Magogue, Madai, Javã, Tubal, Meseque, Tiras
Canaã, Cuxe, Mizraim, Pute
2ª geração
Salá
Os filhos de Gomer: Asquenaz, Rifá e Togarma
Os filhos de Javã: Elisá, Társis, Quitim e Dodanim
Os filhos de Cuxe: Sebá, Havilá, Sabtá, Raamá, Sabtecá + Nimrod
Os filhos de Mizraim: Lutlim, Anamim, Leabim, Naftuim, Patrusim, Casluim, Caftorim (a forma plural indica que já se trata de famílias, e portanto já serão 4ª ou 5ª geração)
Canaã gerou a Sidom e Hete.
3ª geração
Héber

Os filhos de Raamá: Sabá e Dedã
4ª geração
Joctã e Pelegue


5ª geração
Filhos  de Joctã (Gn 10:26-29)



 Concluímos, resumindo:
As famílias dos filhos de Noé começaram a espalhar-se segundo o mandado do Senhor. Houve uma separação (PARAD) e afastamento natural das famílias e uma natural evolução das línguas faladas (Gn 10:5, 32).
Houve uma gradual separação (PALAG) da terra, uma divisão catastrófica dos continentes pelas águas, que começou algum tempo antes do nascimento de Pelegue e que terá concluído a separação das famílias pelas divisões territoriais criadas pelo afastamento das placas tectónicas.
Não foi o acontecimento em Babel que causou a dispersão de todos os descendentes de Noé pela terra e que deu origem às muitas línguas. O que aconteceu em Babel causou uma dispersão (PUTS) de uma parte do povo, descendentes de Cão (no território de Nimrode) e de Joctã, porque estavam unidos na mesma “linguagem” orgulhosa de tornarem célebre o seu nome não glorificando a Deus. Esta dispersão também pode ter sido originada por um acontecimento catastrófico dos “dias de Pelegue”.
Poderá estar na mesma linha, o espalhar (PUTS) das famílias dos cananeus (Gn 10:18), descendentes de Cão.


Fontes:
James Jordan (2007).The handwriting on the wall. A commentary on the book of Daniel. Powder Springs, GA: American Vision, pp. 88-101)
David M. Fouts, Peleg in Gen 10:25. JETS 41/1 (march 1998) 17–21


03/07/2016

QUEM ESCREVEU GÉNESIS?

Acreditamos que a história do livro de Génesis – a criação, o dilúvio, os patriarcas – é uma história verdadeira.

A corrente conservadora, tradicional, diz que foi Moisés quem escreveu o Pentateuco, os cinco primeiros livros (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). "Moisés escreveu todas as palavras do Senhor” (Ex 24:4). "Esta lei escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes, filhos de Levi (Dt 31:9). E nas palavras de Jesus: “Porque de facto crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras (Jo 5:46-47)?

Apesar de existir uma hipótese, a chamada Hipótese Documental, que o Pentateuco seria composto por vários autores e redatores que viviam muito depois do tempo de Moisés, em geral, a autoria de Moisés não é muito questionada.

Mas permanece uma questão: de onde recebeu Moisés a informação que forma o livro de Génesis?
Terá ele feito a recolha de histórias passadas oralmente de geração em geração? Narrativas orais estão sujeitas a embelezamentos, omissões, acréscimos, exageros, etc. o que não favoreceria o rigor literal do relato.

Existe uma outra teoria – a Hipótese de Wiseman (1888-1948), também designada por Tablet Theory (teoria das tabuinhas) – que sugere que o livro de Génesis é a compilação de uma série de relatos escritos, por testemunhas oculares, em tabuinhas de barro. As tabuinhas foram guardadas e passadas à geração seguinte, e mais tarde compiladas por Moisés, que as “editou” e eventualmente inseriu alguns dados novos e comentários. Visto que os escritores originais eram testemunhas oculares, os seus relatos deveriam ser historicamente corretos.

P.J. Wiseman era um oficial britânico estacionado no Médio Oriente, que se interessou pelas descobertas arqueológicas, embora não fosse formado em história ou arqueologia. Ficou intrigado pelo estilo particular em que eram redigidas centenas de tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia. Na sua opinião, estas continham a chave para a escrita original do livro de Génesis. Wiseman publicou o seu livro em 1936, que foi revisto e atualizado, em 1985, por seu filho Donald Wiseman, professor em assiriologia e diretor do British Museum, com o título “Ancient Records and the Structure of Genesis” (Nashville: Thomas Nelson, Inc., 1985).

A hipótese de Wiseman

Tem sido observado que o livro de Génesis é estruturado em secções divididas pela fórmula “toledot” (estas são as gerações de), que aparecem 11 vezes (Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1 e 32; 11:10 e 27; 25:12 e 19; 36:1; 37:2). Tem sido considerado que estas fórmulas “toledot” introduzem uma secção. Por exemplo: A frase introdutória do capítulo 5 – Este é o livro da genealogia (toledot) de Adão (Gn 5:1) – dá início à lista dos descendentes de Adão, através de Sete.

O que Wiseman observou na maior parte das tabuinhas mesopotâmicas, é que estas tinham uma espécie de “ficha técnica”, uma assinatura, que identificava o autor da tabuinha através de uma árvore ou referência genealógica, colocada no final do texto, um cólofon. No caso de múltiplas tabuinhas sequenciais, havia uma frase que conectava uma tabuinha com a outra a seguir. Muitos destes registos eram histórias sobre as origens familiares. Wiseman observou a semelhança com as secções do livro de Génesis. O cólofon das tabuinhas de barro mesopotâmicas apresenta semelhanças com a fórmula “toledot” que encontramos 11 vezes no Génesis. Toledot, em hebraico, é traduzido “gerações” ou “história”, ou ainda “origem”. Por exemplo:
Gn 2:4 – Esta é a génese (toledot) dos céus e da terra
Gn 6:9 – Eis a história (toledot) de Noé.
Gn 10:1 – São estas as gerações (toledot) dos filhos de Noé

Habituamo-nos a ler a Bíblia, observando capítulos, versículos e títulos. Estas divisões não são originais, mas convenções adotadas a partir do século XVI e assumidas para facilitar a edição, a procura e a leitura. Por vezes, porém, atrapalham a compreensão de algumas passagens. Nas escritas antigas e no hebraico antigo não havia pontos nem vírgulas. O texto era um encadeamento contínuo.

Nas nossas bíblias, podemos observar que a frase “estas são as gerações de” é colocada no princípio de uma passagem, enquanto poderá na realidade ter sido o final de uma tabuinha. Por exemplo, estranhamos Gn 37:2 – Esta é a história de Jacó – que a partir deste ponto conta a história de José e seus irmãos, e pouco fala de Jacó, que era a figura central da secção que precede este versículo com a fórmula “toledot”.

Wiseman, que tinha visto que os cólofones nas tabuinhas antigas estavam sempre no fim, e não no princípio, aplicou este esquema às frases “TOLEDOT” de Génesis, e descobriu que fazia sentido. O texto que precede a frase “esta é a genealogia de …” continha informação sobre os eventos que o homem nomeado nesta frase teria conhecido. Era lógico que tivesse sido escrito por essa pessoa. Noutras palavras, cada frase “toledot” contem o nome da pessoa que provavelmente escreveu o texto que precede aquela frase. Ou seja, o livro de Génesis consiste numa sequência de tabuinhas, cada uma escrita por uma testemunha ocular dos eventos nelas descritos. Estas tabuinhas teriam sido finalmente compiladas por Moisés.

O background cultural da época do Génesis

Descobertas arqueológicas, como os arquivos encontrados em Nuzi (no Iraque) e Mari (na Síria), cidades da antiga Mesopotâmia, permitem compreender práticas e aspetos da vida social do tempo dos patriarcas do Velho Testamento.

Estes arquivos, escritos em tabuinhas de barro, contêm documentos legais e administrativos, comerciais, cartas, tratados e textos literários e religiosos. O valor dos textos de Mari para os estudos bíblicos está na sua localização geográfica, perto da região por onde andaram os patriarcas, e também no facto de que a língua pertence à família da qual é originária o hebraico do velho Testamento.

As tabuinhas mostram a existência de práticas semelhantes às que encontramos no Génesis, como a adoção por casais sem filhos, direitos de herança, arranjos de casamento, a importância da bênção no leito de morte, ídolos do lar. Mostram que Abraão agiu conforme hábitos contemporâneos quando escolheu Eleazar como herdeiro (Gn 15:2, 3) e Hagar como concubina (Gn 16:2). Duas gerações depois Raquel deu Bila a Jacó em conformidade com as mesmas tradições sociais (Gn 30:3). Há tabuinhas que falam na adoção, pelo homem, da sua mulher como irmã, para assim conferir-lhe uma posição superior e maior proteção. Isto pode explicar porque Abrão (Gn 12:11-20) e Isaque (Gn 26:7) disseram que suas mulheres eram suas irmãs. É possível que as tivessem adotadas como irmãs, de acordo com os hábitos daquele tempo.

Aparecem nas tabuinhas mesopotâmicas nomes de pessoas como Noé, Abrão, Labão e Jacó. Estes nomes podem não estar relacionados com as figuras bíblicas mas mostram que eram nomes usados naqueles dias.
Os registos familiares eram muito valorizados em Nuzi, passados de geração em geração. Esta mesma prática aparece nas genealogias do Velho Testamento.

Os registos de Mari e Nuzi demonstram que as práticas sociais e culturais e as condições socioeconómicas descritas no livro de Génesis são autênticas e apoiam assim a autenticidade do relato de Génesis.

Isto significa que o livro de Génesis é um documento que está em consonância com tradições sociais da antiga Mesopotâmia e pode ser visto à luz deste background cultural. Já não se pode descartar o livro de Génesis como simplesmente mitológico ou lendário.

Isto também significa que é possível existir um paralelo literário entre as tabuinhas de Mari e o uso bíblico da fórmula “toledot” como cólofon, ou seja terminando uma passagem e não introduzindo.

As divisões “toledot”

Analisemos agora as divisões propostas por Wiseman, com alguns comentários e modificações introduzidas por outros autores (Curt Sewell).

  Tabuinha 
  Versículo inicial 
  Versículo final 
  Autor 
 1
 Génesis 1:1
 2:4a
  Deus (?)
 2
 Gn 2:4b
 5:1a
  Adão
 3
 Gn 5:1b
 6:9a
  Noé
 4
 Gn 6:9b
 10:1a
  Sem, Cão e Jafé
 5
 Gn 10:1b
 11:10a
  Sem
 6
 Gn 11:10b
 11:27a
  Terá
 7
 Gn 11:27b
 25:19a
  Isaque
 8
 Gn 25:12
 25:18
  Ismael, através de Isaque
 9
 Gn 25:19b
 37:2a
  Jacó
 10
 Gn 36:1
 36:43
  Esaú, através de Jacó
 11
 Gn 37:2b
 Êxodo 1:6
  ?

#1
Gn 1:1 – No princípio criou Deus os céus e a terra…
Gn 2:4a – Esta é a génese dos céus e da terra quando foram criados

Nesta primeira secção, não há nome de autor. Mas quem poderia ter conhecimento do que aconteceu para poder escrever sobre como o mundo foi criado? Só o próprio Criador. Ele pode ter escrito os primeiros versículos com o seu próprio dedo, como fez em Ex 31:18. Ou ditou para que Adão o escrevesse. Qualquer que tenha sido a mecânica, não pode ter sido outro que o próprio Deus a ser o autor do relato da criação. É a história das origens do cosmos, da terra, das plantas, dos animais e do homem. Está escrita segundo o ponto de vista do Criador, e descreve o que Ele fez. Deus falava com Adão no jardim. Só Ele podia ter revelado a Adão como as coisas foram criadas.
Pelo menos dois aspetos favorecem a interpretação de “toledot” como cólofon. Um, verificamos que não há nenhuma fórmula “toledot” no início do livro de Génesis. E o cólofon (Gn 2:4 - Esta é a génese dos céus e da terra quando foram criados) lembra o primeiro versículo (No princípio criou Deus os céus e a terra), contendo a história da criação entre Gn 1:1 e Gn 2:4.
E observamos que nesta secção Deus é sempre apresentado como ELOHIM. Enquanto a secção seguinte (2:4b a 5.1a) utiliza JAWEH ELOHIM em todos os casos, exceto no discurso direto entre a mulher e a serpente, quando é utilizado ELOHIM (3:3 e5).

#2
Gn 2:4b – Quando o Senhor Deus os criou ….
Gn 5:1a – Este é o livro [sepher = algo escrito]  da genealogia (toledot = história, descendência) de Adão.

O v.4 tem, na mesma frase, uma repetição: “quando foram criados”, “quando o Senhor Deus os criou”. Isto não faz muito sentido. Mas é uma frase cuja similitude dá a entender que conecta duas tabuinhas. “Quando o Senhor Deus os criou” (v.4b) enceta uma nova passagem.
A palavra SEPHER refere-se a algo escrito, num livro ou rolo, ou outro suporte. Isto indica que já existia escrita no tempo de Adão e demonstra a plausibilidade da teoria de Wiseman.
A segunda tabuinha, terá sido o próprio Adão a descrever o que estava à sua volta, o ambiente, a natureza, os rios, a criação da mulher, as instruções para a vida e as tarefas a desempenhar, e a sua própria história e como o pecado entrou no mundo, e as suas consequências, e a história do seu filhos Caim e Abel.

Segundo Wiseman este capítulo é tão antigo que não contém matéria mítica ou lendária – estes elementos são inteiramente ausentes. Tem a marca de ter sido escrito antes que mitos e lendas tivessem tempo de se desenvolver e não, como é frequentemente afirmado, numa data posterior quando teria que ser despido de qualquer elemento mítico e lendário inerente a qualquer outro relato de Criação existente. Este registo é tão original que não tem qualquer traço de qualquer sistema filosófico … porque foi escrito antes que clãs, nações ou filosofias pudessem originar … Génesis 1 é tão primitivo como o primeiro humano (Wiseman, 1985, 90).

#3
Gn 5:1b – No dia em que Deus (ELOHIM) criou o homem …
Gn 6:9a – Eis a história (toledot) de Noé.

Esta tabuinha dá as genealogias de Adão até Noé. Adão não poderia escrever sobre coisas que aconteceram depois dele. O autor terá sido Noé. Estas são as origens de Noé, sua linhagem.
O relato de Noé termina com o que Deus viu, a maldade que se havia multiplicado, a decisão de Deus de fazer desaparecer da face da terra o homem. Mas não foi Noé que escreveu o relato do dilúvio.

#4
Gn 6:9b – Noé era homem justo e íntegro…. Gerou três filhos
Gn 10:1a – São estas as gerações dos filhos de Noé: Sem, Cão e Jafé

Gn 6:9b faz claramente a conexão com 6:9a que introduz uma nova tabuinha. Esta secção começa a falar de Noé, que gerou três filhos. Descreve o dilúvio, a experiência da arca e a história de Canaã. Repete alguns pontos da secção anterior: Gn 6:11,12-13,17 dizem com outras palavras o mesmo que Gn 6:5-7. Faz algum sentido se se tratar de três relatos combinados, os de Sem, de Cão e de Jafé, presumivelmente por Moisés. A autoria conjunta é deduzida da frase-toledot que fecha esta secção: Estas são as gerações dos filhos de Noé: Sem, Cão e Jafé (Gn 10:1).

#5
Gn 10:1b – [Sem, Cão e Jafé] e nasceram-lhes filhos depois do dilúvio….
Gn 11:10a – São estas as gerações de Sem

Nesta secção é Sem quem assina o registo. Ele fecha a secção com a frase: Estas são as gerações de Sem. Sem viveu 500 anos depois do dilúvio (morreu quando Isaque já tinha 50 anos) e manteve-se informado das cabeças das famílias que formaram o mundo pós-diluviano. Esta secção elenca as 70 nações e a dispersão do povo, na sequência da divisão geológica da terra, do episódio da torre de Babel e da dispersão das famílias.

#6
Gn 11:10b – Dois anos depois do dilúvio, era Sem da idade de 100 anos …
Gn 11:27a – São estas as gerações de Terá.

Novamente uma conexão, entre 11.10b e 11:10b, indicando o fim de uma tabuinha e o começo de outra. Esta secção elenca os nomes na genealogia, todos os cabeças de família, desde Sem até Terá. O autor desta secção terá sido Terá.

#7
Gn 11:27b – Terá gerou a Abrão, a Naor e a Harã …
Gn 25:19a – São estas as gerações de Isaque

Secção #7 é muito mais longa do que as anteriores. A personagem principal da história é Abraão, mas a expressão “toledot” em Gn 25:19a dá a entender que a sua história não foi escrita pelo próprio Abraão, mas por seu filho Isaque.

#8
Gn 24:12 – São estas as gerações de Ismael, filho de Abrão
Gn 25:18 -

Dentro da secção #7 há uma subsecção, com informação acerca dos filhos de Ismael e onde viviam, inserida imediatamente antes da frase-toledot que fecha a secção #7 escrita por Isaque. Esta subsecção começa com uma frase-toledot, embora não seja fechada com uma. Mas parece tratar-se de informação registada por Ismael, porque fala apenas dos filhos de Ismael, não referindo descendentes mais afastados. Esta informação terá sido dada a Isaque quando os dois irmãos se juntaram por ocasião do sepultamento de seu pai Abraão; é introduzida logo a seguir aos versículos que falam disto (Gn 25:8-9).

Como é o caso em todas as secções, as informações fornecidas dizem todas respeito a eventos que tiveram lugar e a pessoas que viveram dentro do espaço de vida daquele que é apresentado como sendo seu autor. O que é outro aspeto que favorece a explicação do cólofon. Quem guarda as memórias dos seus antepassados são os que se lhes seguem. E assim parece que as tabuinhas escritas passavam de um para outro, e novos registos eram acrescentados, até chegar a Moisés, que os compilou num único documento.

#9
Gn 25:19b – Abraão gerou a Isaque …
Gn 37:2a – Esta é a história de Jacó

A história de Jacó, “assinada” por ele (Gn 37:2), começa com Abrão e o casamento de Isaque e Rebeca. No fundo, é a história de seu pai Isaque e uma parte da sua própria história.
Nesta secção, com a listagem da descendência de Esaú, ocorre uma subsecção em tudo semelhante à subsecção sobre Ismael e seus filhos.

#10
Gn 36:1 – São estes os descendentes de Esaú, que é Edom
Gn 36:45
Esta subsecção, que é todo o capítulo 36 de Génesis, é inserida logo antes da “assinatura” toledot de Jacó (Gn 37:2a - esta é a história de Jacó), e a informação segue logo a Gn 35:29, que fala de quando Jacó e seu irmão Esaú se juntaram para sepultar o seu pai Isaque. Será nesta ocasião que Esaú forneceu toda a sua informação familiar a Jacó, que a guardou.

#11
Gn 37:2b – Tendo José dezassete anos …

Esta última secção conta a história de José no Egipto até ao final do livro de Génesis.
Há uma certa confusão porque a passagem começa dizendo: Estas são as gerações de Jacó ou Esta é a história de Jacó. Mas logo a seguir fala de José. Parece que o texto foi incorretamente dividido em versículos. A primeira metade do versículo pertence à história anterior, assinada por Jacó, e que conta a história de Isaque e uma parte da do próprio Jacó. A segunda metade do versículo é a frase introdutória de uma nova secção.
Não há uma frase “toledot” no final da história de José. Ele também não pode ter escrito sobre a sua própria morte que vem no último versículo de Génesis.
Possivelmente, Ex 1:6 poderá ser a frase que encerra o relato e pode ter sido acrescentado por Moisés quando herdou todas as tabuinhas. Ou as últimas frases podem ter sido escritas por um dos seus filhos. Ou como sugere R.K. Harrison (“Introduction to the Old Testament,” Eerdsmans, 1969, pp. 542-553), esta história ainda estava em forma oral quando Moisés a escreveu em hebraico.

A hipótese de Wiseman faz sentido e explica algumas coisas. Se Génesis é realmente uma série de relatos deixados por testemunhas oculares, e escritas por aquele que assinou cada tabuinha, temos uma resposta para os estilos diferentes de escrita que têm sido observadas, para o uso de um nome diferente de Deus a partir de Gn 2:4b, e para o registo de conversações e outros pormenores.
Os primeiros cinco livros da bíblia são tradicionalmente conhecidos como livros de Moisés. Não está escrito que Moisés escreveu Génesis, mas é razoável assumir que compilou as informações escritas em tabuinhas antes dele. As tabuinhas iam sendo guardadas pelos patriarcas e acabaram no Egipto, com toda a descendência de Jacó, onde Moisés acedeu a elas e juntou toda a informação num só documento. Isto explica o uso de terminologia egípcia e de explicações inseridas em certos lugares.

A hipótese de Wiseman tem, contudo, algumas incoerências, o que aponta para a teoria da expressão ELLEH TOLEDOT como expressão introdutória.

Bibliografia:
SEWELL, Curt (1994). The Tablet Theory of Genesis Authorship. Bible and Spade, Winter 1994, Vol. 7, No. 1 http://www.trueorigin.org/tablet.php
MARTEN H. WOUDSTRA, THE TOLEDOT OF THE BOOK OF GENESIS AND THEIR REDEMPTIVE-HISTORICAL SIGNIFICANCE   Calvin Theological Journal 5 (1970) 184-89. (defende a formula “toledot” como introdutória)
Setterfield, Barry & Helen. Tablet theory. www.setterfield.org
Wiseman, P.J. and Wiseman, D.J. ed. 1985. Ancient records and the structure of Genesis: A case for literary unity. Nashville, TN: Nelson. 
Donald J. Wiseman, Creation time – What does Genesis say? S & CB (1991), 3, 25-34 https://www.scienceandchristianbelief.org/