21/07/2016

OS DIAS DE PELEGUE

- A DISPERSÃO PELA TERRA (2)
Numa mensagem anterior (A dispersão pela terra -1), abordámos a dispersão causada pela confusão de línguas em Babel. Antes de prosseguir com o tema dos dias de Pelegue, retomo o conteúdo da mensagem anterior.
A tese que tem mais apoio é que a confusão de línguas gerada em Babel foi o motivo da dispersão dos descendentes de Noé por toda a superfície da terra e a origem das línguas. Que, antes disto, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar (Gn 11:1). E que esta dispersão se deu nos dias de Pelegue (Gn 10:25).
Contudo, com base numa análise de várias palavras utilizadas em Gn 10 e 11, temos razões para crer que há causas diversas para a dispersão das famílias descendentes dos filhos de Noé. E que a história da torre de Babel tem um significado muito específico, cuja interpretação poderá ser inferida do uso, em vários versículos em Gn 10 e 11, das palavras traduzidas em Português língua e linguagem. À primeira vista, parecem sinónimos, mas não são. Em Hebraico, são palavras diferentes com significado diferente.
Língua’ em Gn 10:5, 20,31 é diferente de ‘linguagem’ em Gn 11:1,6,7,9.
Em Gn 10:5, 20 e 31, ao falar da dispersão dos descendentes dos filhos de Noé, a palavra ‘língua’ é LASHON, em Hebraico, significando língua (o órgão do corpo) e idioma. Gn 10:5- Estes repartiram entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua (o seu idioma), segundo as suas famílias, em suas nações.
LASHON é empregado, por exemplo, em Dt 28:49, Ne 13:24, Dn 1:4; Ester 1:22; 3:12, Is 28:11; 66:18 onde se refere às línguas faladas pelos diferentes povos.
Em Gn 11:1 – em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar – aqui ‘linguagem’ é tradução de SAPHAH (lábio) e ‘maneira de falar’ da palavra DABAR (palavra). A palavra SAPHAH, literalmente lábio (1 Sam 1:13), refere-se ao conteúdo do que se fala (por ex. Ex 6:12, 30), não à forma ou idioma. E o uso de DABAR reforça isto.
 ‘Lábio’ (SAPHAH) está associado à confissão religiosa. Darei lábios puros aos povos (Sof 3:9); o que proferiram os teus lábios, isto guardarás (Dt 23:23); nunca os meus lábios falarão injustiça (Jó 27:4); as minhas razões provam a sinceridade do meu coração, e os meus lábios proferem o puro saber (Jó 33:3); proclamei as boas novas de justiça na grande congregação, jamais cerrei os lábios (Sl 40:9); sou homem de lábios impuros (Is 6:5); …
O que aconteceu em Babel não foi uma confusão e divisão de línguas, no sentido de idiomas falados pelas pessoas, mas uma divisão em termos de religião, de confissão religiosa, de “palavra”. Depois do dilúvio, no princípio, havia uma linguagem em toda a terra; todos confessavam o mesmo Deus. A linguagem que os habitantes de Babel estavam a falar não era a mesma que se falava no início, quando Noé e sua família saíram da arca. Queriam edificar uma cidade para si, uma torre que chegasse aos céus e tornar célebre o seu nome. Estes tinham todos a mesma linguagem. É essa linguagem pecaminosa, de um povo “um” na sua rebeldia, que foi confundida porque na união não haveria restrição ao seu intento (Gn 11:6).
Quem foram os intervenientes nesta história? Gn 11:2 – partindo eles do oriente, deram com uma planície na terra de Sinear; e habitaram ali.
A terra de Sinear era o território onde dominava Nimrode, descendente de Cuxe, filho de Cão (Gn 10:9-10). Babel era o princípio do seu reino.
Quem são “eles”? “Eles”, que partiram do oriente e deram com uma planície na terra de Sinear e habitaram ali (Gn 11:2), terão sido os filhos de Joctã, irmão de Pelegue, filhos de Héber, descendentes de Sem. Eles, os filhos de Joctã, habitaram desde Messa, indo para Sefar, montanha do oriente (Gn 10:30). Em algum momento, partiram do oriente para irem habitar na terra de Sinear, onde se juntaram aos descendentes de Nimrode em Babel na rebeldia contra Deus. Edificaram uma cidade e uma torre para que não fossem espalhados por toda a terra (Gn 11:4), em vez de encherem toda a terra como tinham sido ordenados (Gn 9:1). A linha de Joctã aliou-se a Nimrode, e apostatou, enquanto a linha de Pelegue conduziu a Abrão.

Dispersar
Além das palavras “língua” (LASHON) e “linguagem” (SAPHAH), há outras palavras em Gn 10 e Gn 11:1-8 que também parecem sinónimos, mas não são, e por isso têm que ser vistos mais de perto. São as palavras traduzidas repartir, dispersar, espalhar, separar, dividir, disseminar.
Antes de analisarmos o uso destas palavras, precisamos de ver a passagem no seu todo, desde Gn 10:1b – Sem, Cão e Jafé; nasceram-lhes filhos depois do dilúvio – até Gn 11:10 – São estas as gerações (toledot) de Sem. Assumimos que esta é a secção escrita por Sem (ver mensagem “Quem escreveu Génesis?” de julho 2016).
Distinguimos 2 grandes partes:  1) Gn 10:1b-32 e 2) Gn 11:1-9. A primeira parte ainda é dividida em 3, distinguindo as famílias dos 3 filhos de Noé, falando primeiro dos filhos de Jafé, depois dos filhos de Cão, e depois dos filhos de Sem. Cada uma destas famílias tem uma história muito específica e diferente. As três histórias encerram com este versículo: São estas as famílias dos filhos de Noé, segundo as suas gerações, nas suas nações; e destes foram disseminadas (PARAD) as nações na terra depois do dilúvio (Gn 10:32). A seguir, vem a história da torre de Babel, que termina assim: ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os dispersou (PUTS) por toda a superfície dela (Gn 11:9).
Para já, observamos um paralelismo: “língua” (LASHON) e “disseminados” (PARAD) na parte que fala das famílias dos filhos de Noé, e “linguagem” (SAPHAH) e “dispersou” (PUTS) na história de Babel.
Olhemos também para as histórias das 3 famílias:
Os filhos de Jafé … repartiram (PARAD) entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua, segundo as suas famílias em suas nações (v.5).
A história dos filhos de Cão é mais animada. Há Nimrode, o poderoso na terra, que tem domínio, que tem um reino. O princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear. E há Canaã, cujos descendentes se espalharam (PUTS) (v.18), mas cujo território tinha um limite (v.19).
Na história dos filhos de Sem, há Pelegue – que se chama assim porquanto em seus dias se repartiu (PALAG) a terra (v.25) –, e seu irmão, Joctã.
Nestas três histórias, a palavra traduzida ‘língua’ é sempre LASHON, idioma. Na história de Babel, linguagem é SAPHAH e o Hebraico da palavra traduzida “dispersar” é PUTS.
Observamos que há três palavras diferentes em Hebraico - PARAD, PALAG e PUTS - traduzidas dispersar, repartir, disseminar, aparentemente verbos bastante sinónimos.
Gn 10:5, 32- Estes repartiram (PARAD) entre si as ilhas das nações nas suas terras, cada qual segundo a sua língua (LASHON).
PARAD tem o significado de separar-se, dividir-se separando: como Abrão e Ló (Gn 13:9,11,14); Jacó e Esaú (Gn 25:23); como Jacó separou as ovelhas (Gn 30:40); como Héber se apartou dos queneus (Jz 4.11); e outras ocorrências (Dt 32:8; 2Sm 1:23; 2Rs 2:11; Es 3:8).
Esta separação (PARAD) das famílias de Jafé pelas ilhas, nas suas línguas, pode ter sido uma separação muito natural, devido ao aumento da população e à obediência ao mandamento do Senhor (Gn 9:1). E o afastamento geográfico origina afastamento linguístico, fazendo com que a mesma língua evolua em várias direções diferentes. O uso de PARAD aqui e o uso de PUTS na história de Babel pode querer dizer que não são acontecimentos relacionados. Aliás, a ordem que Deus deu a Noé e seus filhos era “multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9:1). A dispersão pela superfície da terra era algo que Deus queria que acontecesse. É improvável que todos os descendentes de Noé tivessem desobedecido a Deus, ficando juntos, e que um acontecimento os dispersasse por força.
Em Gn 10:18 e 11:8,9, o verbo ‘dispersar’ é PUTS, que significa partir em pedaços, no sentido literal ou figurado, dispersar, espalhar (exemplos: Gn 49:7; Ex 5:12; Num 10:35; Dt 4:27; Is 41:16; Jr 9:16, 10:21). PUTS parece ter uma conotação mais negativa, mais violenta.
O espalhar (PUTS) das famílias dos cananeus (v.18) parece ter sido mais violenta do que o repartir ou espalhar (PARAD) dos filhos de Jafé (v.5), possivelmente em consequência da maldição falada por Noé (Gn 9:25).
E, ainda, há o verbo PALAG.

Pelegue
Gn 10:25 – A Héber nasceram dois filhos: um teve por nome Pelegue, porquanto em seus dias se repartiu (PALAG) a terra (ERETZ).
Além do verbo ser diferente do verbo usado para a dispersão de Babel, o objeto sobre o qual incide a ação do verbo não é o mesmo. Em Gn 10:25, o que é repartido é a terra, enquanto no caso de Babel trata-se de dispersar o povo.
A pergunta, então, é: a ‘terra’ (ERETZ) deve ser entendida literalmente? ou deve ser entendida no sentido dos ‘habitantes da terra’ como é a interpretação mais comum? Mas se se trata dos habitantes, porquê usar um verbo diferente do que em Gn 10:5 e 32 se o assunto é, alegadamente, o mesmo?
Será que faz sentido entender a ‘terra’ num sentido geológico? Há quem defende que Gn 10:25 tem a ver com a separação dos continentes a partir de uma única porção de terra.
Um dos defensores desta hipótese é Bernard Northrup, professor de Grego e Hebraico. Num artigo “Continental Separation and the Fossil Record”, afirma que há claras considerações etimológicas baseadas no nome de Pelegue que indicam uma divisão que envolve água.
Palag (ou PLG) contém frequentemente uma referência a água. A palavra é usada para um rio de água em Hebraico, Copta, Etíope e Grego. É usada para referir canais de irrigação que levavam a água através das terras aráveis da Mesopotâmia. Uma análise do uso em Grego (família de Jafé) das letras PL e PLG da raiz mostra que a maioria dos casos têm relação com o oceano, o mar. Alguns exemplos: Pelagos – nome antigo (grego) para o Mar Mediterrâneo; Arquipélago – conjunto de ilhas no mar; Sedimento pelágico - sedimento que se acumula como resultado da deposição de partículas no assoalho oceânico sob águas profundas e áreas distantes dos continentes…
O nome de Pelegue e o verbo PALAG têm a mesma raiz.
Este verbo PALAG é usado apenas três vezes na Bíblia fora do livro de Génesis.
Em 1Cr 1:19, que simplesmente repete Gn 10:25.
Jó 38:25 - Quem abriu (PALAG) regos para o aguaceiro?
Job 38:25 – (NIV) "Who cuts (PLG) a channel for the torrents of rain, and a path for the thunderstorm?" (KJV) "Who hath divided (PLG) a watercourse for the overflowing of waters, or a way for the lightning of thunder?"
Sl 55:9 – Destrói, Senhor, e confunde (PALAG) os seus conselhos (Destroy, O Lord, and divide their tongues: for I have seen violence and strife in the city.). David estava falando dos seus inimigos e pedia ao Senhor para os julgar com a confusão de línguas (LASHON), numa associação óbvia com a confusão de línguas em Babel, embora usasse LASHON e não SAPHAH como em Génesis. Para alguns, isto apoia a interpretação que a divisão do tempo de Pelegue é a mesma que a divisão de Babel.
Da mesma raiz, o substantivo PALAG, usada 10 vezes, tem o significado de canal, rio, torrentes de águas (Jó 29:6; Sl 1:3; 46:4; 65:9; 119:136; Pv 21:1; Is 30:25; 52:2; Lam 3:48).
A forma perfeita do verbo PALAGIN em Gn 10:25 indica, não um evento pontual, mas um processo contínuo. Quando Pelegue nasceu, a separação de áreas de terra pelo mar já estava a decorrer e ainda não estava completado. É algo que aconteceu “em seus dias”.
O conceito de que inicialmente havia uma única massa de terra está implícito em Gn 1:9-10 – Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e apareça a porção seca. À porção seca chamou Deus terra (ERETZ).
A teoria das placas tectónicas está em acordo com esta compreensão de Gn1:9-10. A camada superior da terra está fragmentada numa dúzia de placas de dimensões e formas diferentes em cima de camadas mais quentes e fluidas. Há várias provas que apoiam a ideia de um único continente inicial. As formas dos continentes parecem peças separadas de um puzzle. Há correspondências fósseis ao longo das margens dos continentes que parecem encaixar, o que só faz sentido se os dois continentes estiveram juntos em algum tempo no passado. Grandes quantidades de atividade sísmica, volcânica e geotermal ocorrem ao longo das placas. Há cristas, como a crista do Médio Atlântico, que são produzidas por lava que jorra de entre as placas e as aparta e, de modo semelhante, há serras montanhosas formadas onde as placas chocam (por exemplo, Andes e Himalaias). Há estrias glaciais em rochas que indicam que glaciares moviam-se de África para o oceano Atlântico, e do Atlântico para a América do Sul, situação possível se inicialmente não havia um oceano a dividir as terras. Estes são pontos que indicam a existência de uma única massa de terra original, que foi depois dividida nos continentes como hoje os conhecemos. Depois do dilúvio, este continente começou gradualmente a dividir-se, atingindo o seu auge no tempo de Pelegue, que nasceu 100 anos depois do dilúvio.
Este conceito de que até ao tempo de Pelegue existia um só continente ajuda compreender algumas coisas. Permitia uma migração relativamente fácil para lugares longínquos sem ter que atravessar grandes oceanos e o isolamento ficou completado quando as placas tectónicas terminaram os seus grandes movimentos. Explica também a existência de certos animais num continente (por exemplo, marsupiais na Austrália) e não noutros, bem como histórias (por exemplo, mitos de dilúvio) e técnicas de construção semelhantes em continentes hoje totalmente separados geograficamente.
Outra interpretação de Gn 10:25 é mencionada por FOUTS. A divisão da terra nos dias de Pelegue pode ser uma referência ao desenvolvimento geral do sistema de canalização de águas na Mesopotâmia. É uma opinião que reconhece o campo semântico da palavra mas limita o seu significado a canais ou pequenos rios de água. Pelegue foi chamado deste nome (“canal”) porque nos seus dias a terra foi dividida por canais. Esta interpretação reduz o contexto de Gn 10 e 11 à Mesopotâmia e não à terra toda. O que, em meu ver, não tem em consideração o contexto universal desta passagem que trata das famílias dos filhos de Noé que foram disseminadas na terra depois do dilúvio e da origem das 70 nações na terra.

Cronologicamente
Quando olhamos para as gerações dos filhos de Noé cronologicamente, os filhos de Joctã (quando se dá a dispersão de Babel) são a 5ª geração depois do dilúvio
Os descendentes de Jafé, que repartiram entre si as ilhas, só são mencionados até à 2ª geração depois do dilúvio. Portanto, a sua separação começou antes do tempo de Pelegue (4ª geração) e da dispersão de Babel (5ª geração).
Quando Pelegue nasceu e recebeu o seu nome, a terra já estava a ser dividida por água. Isto, portanto, uma geração antes do acontecimento de Babel.

Sem
Jafé
Cão
1ª geração
Arfaxade
Gomer, Magogue, Madai, Javã, Tubal, Meseque, Tiras
Canaã, Cuxe, Mizraim, Pute
2ª geração
Salá
Os filhos de Gomer: Asquenaz, Rifá e Togarma
Os filhos de Javã: Elisá, Társis, Quitim e Dodanim
Os filhos de Cuxe: Sebá, Havilá, Sabtá, Raamá, Sabtecá + Nimrod
Os filhos de Mizraim: Lutlim, Anamim, Leabim, Naftuim, Patrusim, Casluim, Caftorim (a forma plural indica que já se trata de famílias, e portanto já serão 4ª ou 5ª geração)
Canaã gerou a Sidom e Hete.
3ª geração
Héber

Os filhos de Raamá: Sabá e Dedã
4ª geração
Joctã e Pelegue


5ª geração
Filhos  de Joctã (Gn 10:26-29)



 Concluímos, resumindo:
As famílias dos filhos de Noé começaram a espalhar-se segundo o mandado do Senhor. Houve uma separação (PARAD) e afastamento natural das famílias e uma natural evolução das línguas faladas (Gn 10:5, 32).
Houve uma gradual separação (PALAG) da terra, uma divisão catastrófica dos continentes pelas águas, que começou algum tempo antes do nascimento de Pelegue e que terá concluído a separação das famílias pelas divisões territoriais criadas pelo afastamento das placas tectónicas.
Não foi o acontecimento em Babel que causou a dispersão de todos os descendentes de Noé pela terra e que deu origem às muitas línguas. O que aconteceu em Babel causou uma dispersão (PUTS) de uma parte do povo, descendentes de Cão (no território de Nimrode) e de Joctã, porque estavam unidos na mesma “linguagem” orgulhosa de tornarem célebre o seu nome não glorificando a Deus. Esta dispersão também pode ter sido originada por um acontecimento catastrófico dos “dias de Pelegue”.
Poderá estar na mesma linha, o espalhar (PUTS) das famílias dos cananeus (Gn 10:18), descendentes de Cão.


Fontes:
James Jordan (2007).The handwriting on the wall. A commentary on the book of Daniel. Powder Springs, GA: American Vision, pp. 88-101)
David M. Fouts, Peleg in Gen 10:25. JETS 41/1 (march 1998) 17–21


2 comentários:

  1. Voce defende a tese de que a cronologia da terra e a mesma cronologia do homem ? `` placas tectonicas , separaçao dos povos `` , a separaçao das placas nao levou milhares de anos , como assimilar os dos sendo que AH de abraao nao ultrapassa 2 milenios ?

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