15/03/2016

Um reino que não será jamais destruído

OS TEMPOS DOS GENTIOS (4)

Todas as visões, exceto a de Daniel 8 que termina com a história de Antíoco Epifânio, mostram a chegada do Reino do Filho do homem no tempo do quarto reino.
A primeira profecia registada em Daniel foi o sonho da grande estátua de Nabucodonosor, que este teve no segundo ano do seu reinado, ainda no princípio do exílio de Israel:
Uma pedra foi cortada, sem auxílio de mãos, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro e os esmiuçou. Então, foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o cobre, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a palha das eiras no estio, e o vento os levou, e não se achou lugar algum para eles; mas a pedra que feriu a estátua se fez um grande monte e encheu toda a terra (Dn 2:34-35).
A pedra que cresceu para se tornar numa grande montanha e encher toda a terra, explica o v.44, é um reino que não passará a outro povo e subsistirá para sempre. Sem dúvida que podemos reconhecer nele o Reino de Deus.
O sonho foi de Nabucodonosor, mas a interpretação Deus a deu a Daniel. Desta maneira, Deus mostrou, tanto ao gentio Nabucodonosor como ao judeu Daniel, que a administração humana era apenas temporária até que se estabelecesse o Reino de Deus, que havia de ser governado pelo rei escolhido e Ungido por Ele (Salmo 2). Eu fiz a terra … e a dou àquele a quem for justo (Jr 27:5). O único Justo é Jesus, o Messias, a quem pertence, portanto, o direito de reinar sobre toda a terra.
A visão narrada em Daniel 7 também associa o quarto reino (dos 10 chifres) com a inauguração do Reino de Deus. Os vs. 13 e 14 descrevem como o Filho do homem recebe o domínio, a glória e o reino. A visão é vista de um lugar no céu, porque Daniel vê “vir” com as nuvens um como Filho do homem que se dirige ao Ancião de Dias (Deus Pai) para receber o domínio. Isto descreve o momento em que Jesus se assentou à direita do Pai, o que aconteceu depois de ter expiado o pecado na cruz e ressuscitado dos mortos. Dn 7:13-14 não é uma representação da Segunda Vinda de Jesus. Jesus subiu com as nuvens para o céu, como os seus discípulos viram (At 1:9).
Depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas (Hb 1:3b).
… a força do seu poder]; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e fazendo-o sentar nos lugares celestiais, acima de todo principado, e potestade e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro (Ef 1:19-21).
Ao assentar-se no trono, Jesus recebeu um nome acima de todo o nome (Fp 2:9), recebeu toda a autoridade e domínio, como Ele próprio afirmou:
Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra (Mt 28:18).
[Jesus Cristo] o qual, depois de ir para o céu, está a destra de Deus, ficando-lhe subordinados anjos, e potestades e poderes (1 Pe 3:22).
Esquecemo-nos muitas vezes que Jesus reina, que o Reino lhe pertence hoje e definitivamente.
Com o ministério público de Jesus, o Reino tornou-se presente e visível. Jesus disse: Se eu expulso os demónios pelo espírito de Deus, é conseguintemente chegado a vós o Reino de Deus (Mt 12:28). A pregação das boas novas do Reino vinha sempre acompanhada de curas e expulsão de demónios e espíritos imundos (Mt 4.23; 9:35; 12:28; Lc 9:2; 10:9; 11:20), provando assim que o reino com as suas bênçãos já chegara. Portanto, o Reino foi introduzido com a primeira vinda de Jesus.
Do ponto de vista histórico, a ascensão de Jesus ao seu trono ocorreu na altura em que Roma dominava na Judeia, e sobre um domínio extremamente grande. Portanto, podemos com certeza dizer que, primeiro, o reino de Deus já foi inaugurado e, segundo, que isto aconteceu no tempo do Império Romano.
Também a última visão (capítulos 10 a 12) comprova isto. Depois da passagem sobre Herodes e a sua dinastia (Dn 11:36-45), é feito referência a um tempo de angústia.
Nesse tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, o defensor dos filhos do teu povo, e haverá tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele tempo será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro (Dn 12.1)
No dia de Pentecostes, Pedro disse: e acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo (At 2:21; Rom 10:12-13). Isto tornara-se possível, para judeus e gentios, com a cruz de Jesus. Historicamente, é uma realidade que começou então. Não é uma realidade futura, nem para gentios nem para judeus. É uma realidade presente, a realidade do reino de Deus.
Aos “varões judeus e habitantes de Jerusalém” (At 2:14), aos “israelitas” (At 2:22, 12) seus contemporâneos, Pedro anunciou salvação, para aquele que fora achado inscrito no livro da vida. Mas haveria também um tempo de grande angústia. Houve efetivamente um tempo de grande tribulação para os judeus não muitos anos depois. Na década de 60 d.C. cresceu a rebelião dos judeus contra a ocupação romana, que culminou numa guerra e terminou na destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos. Esta guerra está descrita em pormenor por uma testemunha ocular, Flávio Josefo, em Guerra dos Judeus[1]. Simultaneamente, houve uma guerra civil dentro dos muros da cidade de Jerusalém, esta mais sangrenta ainda que a guerra dos romanos.
Então estive olhando por causa da voz das grandes palavras que provinham do chifre; estive olhando até que o animal foi morto, e o seu corpo, desfeito e entregue para ser queimado pelo fogo. E, quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia, foi-lhes dada prolongação de vida até certo espaço de tempo (Dn 7:11.12).
O pequeno chifre foi morto (ver também 7:24-26 - depois se assentará o tribunal para lhe tirar o domínio, para o destruir e o consumir até ao fim). Com a subjugação violenta e final de Jerusalém pelos romanos, a dinastia Herodiana foi eliminada e cessou totalmente de existir.
Aos outros animais, foi-lhes dado prolongamento de vida. Os animais representam reinos e nações de homens, que têm um “certo espaço de tempo” de vida. O Império Romano não desapareceu imediatamente quando veio o Reino de Deus, mas acabou por passar às mãos de outros povos. Continuaram, e continuam, a existir reinos de homens, como vemos na história, por exemplo, o império de Carlos Magno “onde o sol não se punha”, o império colonial inglês, o império que Hitler tentou levantar, a União Soviética, os Estados Unidos da América. Uns já terminaram e outros que existem hoje acabarão por terminar.
Apenas o Reino de Deus não será jamais destruído como o são os reinos políticos dos homens, nem passará para outro povo, como quando territórios sob o domínio de um povo são conquistados e passam a ser dominados pelo novo conquistador. Pertence para sempre ao povo de Deus. Este reino não passará a outro povo: esmiuçará e consumirá todos os outros reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre (Dn 2:44). É um reino eterno (Lc 1:33) e inabalável (Hb 12:28). Nabucodonosor percebeu que o poder da Babilónia passaria para a Pérsia (2 Cr 36:23; Es 1:2), como também o da Pérsia chegaria ao seu fim, derrotado por Alexandre o Grande. Mas o reino de Deus funciona de acordo com outras leis. O reino de Deus não é deste mundo, como afirmou Jesus a Pilatos (Jo 18:36). Não é um reino político à maneira dos homens, mas é um reino que se sobrepõe aos reinos políticos e, no fim, haverá de acabar com todos.
O reino de Deus encherá toda a terra; é universal. Os quatro grandes impérios representados na estátua são figuras do reino de Deus. Quando os reis de Judá foram achados indignos de se assentar no trono do Senhor (1 Cr 29:23), Deus entregou o domínio a reis gentios, não só o domínio sobre Israel, mas sobre todas as nações ao redor. Os quatro grandes impérios, Babilónia, Pérsia, Grécia e Roma dominavam sobre territórios extensíssimos, do Mediterrâneo até ao Extremo Oriente, onde habitavam numerosos povos diferentes. O domínio que tinham era muito maior do que o mundo conhecera até então. Estes reis e impérios antecipavam e prefiguravam o reino universal de Jesus, que abrange toda a terra.
O desenvolvimento do reino de Deus é progressivo. Começa pequeno e cresce, e acabará por encher toda a terra. A ideia de um reino cujo domínio aumenta e se fortalece já estava presente em Isaías: Um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros … para que se aumente o seu governo e venha paz sem fim sobre o trono de David, para o estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para sempre (Is 9:6-7). A terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar (Is 11:9). No Novo Testamento, Jesus retoma este ensino nas suas parábolas, quando compara o reino dos céus a um grão de mostarda, que é a mais pequenina de todas as sementes, mas que se faz árvore, de modo que as aves do céu vêm aninhar-se nos seus ramos (Mt 13:31-32). Também quando Jesus usa a imagem da uma seara para explicar o funcionamento do reino de Deus, ele fala em crescimento e maturação (Mt 9:37-38; 13:24-30). O reino de Deus, cuja ação é comparada com a do fermento introduzido na massa que é o mundo, é um agente transformador que faz crescer até tudo atingir a sua plenitude. Esta promessa é para nós.
Como o é a promessa contida em Isaías 11:9, que a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar.




[1] Foi editado em 2007, pelas Edições Sílabo, a primeira tradução completa em Português de A guerra dos Judeus.

06/03/2016

O PEQUENO CHIFRE (2)- Herodes

OS TEMPOS DOS GENTIOS (4)
Daniel 7 traz uma descrição do quarto reino. O quarto animal/reino (Roma) tinha dez chifres, que correspondem a dez reis que se levantaram daquele mesmo reino (v.24). Creio não ser importante dar-nos ao trabalho de tentar identificar quem eram os 10 chifres do animal. Um chifre simboliza poder e, portanto, os 10 chifres representam reinos, províncias, distritos do império ou algo semelhante. Na realidade, é provável que tenham sido mais do que 10, mas 10 é um número simbólico que indica plenitude quantitativa (todos), portanto, os 10 chifres representam o império na sua totalidade.
De entre estes 10, subiu um pequeno chifre. Note-se bem que se trata de outro “pequeno chifre”, a não confundir com o primeiro pequeno chifre do terceiro reino helenístico que representava Antíoco Epifânio. Em Daniel 11, no seguimento imediato do relato sobre Antíoco e os Macabeus e, portanto, no tempo do fim do período Asmoneu (Dn 11:32-35), surge uma nova personagem: este rei que fará segundo a sua vontade (Dn 11:36-45).
Este “rei que faz segundo a sua vontade” aparece na continuação natural da história, devendo por isso ser identificado com uma figura inserida no quarto reino, o Império Romano. Visto que saiu de entre os 10 chifres do reino, significa que o pequeno chifre fazia de alguma maneira parte dele.
Assim como no terceiro reino são referenciados apenas o reino do Norte e do Sul, porque estão ligados à história de Israel, esta nova personagem também terá que ser uma figura com relação direta à história do povo judeu. Este pequeno chifre é, para o povo de Israel, a face visível do quarto animal. O anjo tinha dito a Daniel: agora vim para fazer-te entender o que há de suceder ao teu povo nos últimos dias (Dn 10:14).
Que nos diz a história? Antipater, governador da Idumeia (edomitas) aliara-se com Roma para tomar o poder na Judeia que então estava independente e governada pela dinastia dos Asmoneus. O general romano Pompeu conquistou a Judeia e como recompensa pelo seu apoio e lealdade a Roma, Antipater foi feito cidadão romano. O filho de Antipater é aquele que no Novo Testamento aparece como o Rei Herodes. Herodes nasce portanto legitimamente dentro do quarto império. Além disso, foi nomeado rei da Judeia pelo Senado de Roma. Herodes juntou 3 domínios (3 chifres) debaixo da sua autoridade: era tetrarca da Galileia, prefeito da região de Celessíria e rei da Judeia. À sua morte, o governo sobre estes territórios foi dividido entre os seus filhos Arquelau (que ficou com a Judeia), Antipas e Filipe. Pode dizer-se que Herodes foi um chifre que arrancou 3 chifres[1].
Herodes e a sua dinastia eram, de facto, a face visível do Império Romano em Israel, a par dos governadores e procuradores romanos bem como das legiões estacionadas na região.
O Rei Herodes sucedeu no governo da Judeia à dinastia dos Macabeus, com o apoio de Roma. Herodes reinava em Israel quando Jesus nasceu. Foi um rei déspota, malévolo e cruel. Matou vários dos seus filhos e a própria mulher. Ninguém se lhe conseguia opor; fazia tudo segundo a sua vontade.
Pelos rumores do oriente e do norte será perturbado, e sairá com grande furor, para destruir e exterminar muitos (Dn11:44), parece apontar para o episódio da matança dos inocentes. Os magos que vieram do oriente e que tinham visto a estrela perturbaram-no muito: Herodes alarmou-se (Mt 2:3). Iludido pelos magos, enfureceu-se Herodes grandemente e mandou matar todos os meninos de Belém. Herodes o Grande tentou matar o Messias (Mt 2:16). É a isso que se refere o texto bíblico quando diz que não teve respeito ao desejo de mulheres (Dn 11:37). O desejo das mulheres judias era de ser a mãe do Salvador (Gn 3:15). O Messias também é o desejo de todas as nações (Ag 2:7).
Daniel (capítulo 7) repete várias vezes que este pequeno chifre tinha uma boca que falava, com insolência, palavras contra o Altíssimo (Dn 7:8,11,20,25 e também Dn 11:36). Isto pode referir-se ao facto de Herodes, rei dos judeus, introduzir o culto de César em Israel, ou ao facto de se opor à vinda do Messias, tentando matá-lo.
Mudar os tempos e a lei» (Dn 7:25) é, na verdade, opor-se ou impedir a vinda do Messias. A palavra “tempos” devia mais corretamente ser traduzida “tempos determinados”. É a mesma palavra que a usada em Daniel 2:21: ele [Deus] muda o tempo e as estações (os tempos determinados); ele remove os reis e estabelece os reis. Deus tinha determinado o tempo em que Ele estabeleceria o Seu Rei. Herodes procurou mudar estes tempos.
A lei que o chifre cuidou mudar não era a TORAH; não é esta a palavra usada aqui. A palavra aqui traduzida “lei” significa mandado, ordem, prescrição, decreto real. Trata-se do que Deus decretou: Eu constituí o meu rei sobre o meu santo monte Sião (Salmo 2:6).
Herodes tentou mudar os tempos determinados no plano de Deus e o decreto de Deus, tentando matar Jesus pouco depois de este ter nascido, no massacre das crianças de Belém (Mt 2).
O pequeno chifre fez guerra contra os santos (Dn 7:21, 25). Herodes tentou matar Jesus. Os seus sucessores, mencionados no Novo Testamento, mataram e perseguiram os santos, os seguidores de Jesus: Herodes Antipas matou João Baptista (Mt 14:1-11; Lc 9:7-9); Herodes Agripa I matou Tiago, irmão de João, e aprisionou Pedro (At 12:1-4); e Herodes Agripa II, o último da dinastia, enviou Paulo em cadeias a Roma (At 25 e 26). A dinastia Herodiana, que manteve sempre o favor de Roma, continuou no governo da Judeia e regiões circunvizinhas até à destruição de Jerusalém no ano 70 d.C..




[1] A identidade de Herodes como o segundo pequeno chifre é defendida por James Farquharson, Daniel's Last Vision and Prophecy, respecting which Commentators have greatly differed from each other, showing its Fulfilment in events recorded in authentic history, publicado na Escócia em 1838; Philip Mauro in The seventy weeks and the great tribulation, 1921; James Jordan in Daniel: Historical and chronological comments, XIV e XV (Biblical Horizons, 1996).