28/08/2015

A PROFECIA DAS 70 SEMANAS DE DANIEL (5) – Ele confirmará a aliança


Ele confirmará a aliança com muitos por uma semana.


Em primeiro lugar convém dar a tradução correta do verbo empregado nesta frase, porque várias versões têm traduzido “ele firmará um concerto”, induzindo em erro quanto ao seu significado. A tradução correta do verbo GABAR não é firmar no sentido de assinar ou de fazer ou cortar uma aliança, mas “confirmar” ou “fazer prevalecer”[1] um concerto. É a única vez na Bíblia que é dito que uma aliança prevalece.

Quem é o “ele” que confirma a aliança?

Uma vista de olhos à estrutura (ABCD ABCD) dos versículos 26 e 27 facilitará a compreensão:


A. Depois das sessenta e duas semanas será morto o Ungido
B. E já não estará
C. O povo de um príncipe que há de vir destruirá a cidade e o santuário
D. O seu fim será num dilúvio, até ao fim haverá guerra; desolações são determinadas.

A. Ele fará firme aliança com muitos por uma semana
B. Na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oferta
C. Sobre a asa das abominações virá o assolador,
D. Até que a destruição, que está determinada, se derrame sobre ele.

As frases A e B dos vs.26 e 27 dizem respeito ao Ungido. E dentro do contexto da profecia, tudo indica que quem confirma a aliança só pode ser o Ungido, o Príncipe. Não devemos esquecer que é o Messias a personagem proeminente e central desta profecia! Ele é manifestado no princípio da 70ª semana e no meio da semana é morto, fazendo cessar o sacrifício e a oferta. Tendo sido “cortado” (KARATH) ele “confirmou” a aliança. E confirmando a aliança no meio da semana, fez cessar o sacrifício e a oferta de manjares.

O “ele” do v.27 que confirma a aliança não pode ser o príncipe do povo que vem destruir a cidade do versículo anterior, como afirmam certas interpretações. Na frase C do v.26, a cláusula principal não é o príncipe, mas o povo, e então seria o povo a confirmar a aliança. A frase A do v.27 vai buscar o seu sujeito à frase A do v.26: o Ungido.

A aliança prevalece. É uma nota de esperança: a aliança prevalece, apesar de a transgressão do povo conduzir novamente à destruição de Jerusalém, e apesar da “eliminação” do Ungido que fica aparentemente sem descendência.

Deus fez sucessivas alianças com Israel, mas todas tinham em vista o cumprimento da sua promessa a Abraão que ele seria pai de muitas nações e que na sua semente seriam abençoadas todas as nações da terra. Isto é a promessa de ser herdeiro do mundo, como diz Paulo em Romanos 4:13.

Quem são os “muitos” com quem ele veio confirmar a aliança?

No entendimento de Daniel, os “muitos” seriam provavelmente os que estavam incluídos na aliança abraâmica através da circuncisão, visto também que a oração de Daniel dizia respeito especificamente ao seu povo, os judeus. E como profetizou Simeão quando Jesus foi levado ao templo pelos seus pais para ser apresentado ao Senhor: Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel (Lc 2:34). Os judeus no tempo de Jesus, mesmo os discípulos, tardaram em compreender o alargamento da aliança aos gentios.

Por outro lado, é perfeitamente bíblico declarar que Jesus morreu por muitos, não apenas judeus. … o meu Servo, o Justo… justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si (Is 53:11-12). O filho do homem veio dar a sua vida em resgate por muitos (Mt 20:28). Isto é o meu sangue da aliança derramado em favor de muitos (Mt 26:28). Jesus morreu por todos, mas nem todos recebem os benefícios da sua salvação. Assim, o seu sangue foi derramado para “muitos”.

Dentro do contexto da profecia, contudo, faz mais sentido identificar os “muitos” com os judeus (os da circuncisão). E assim já podemos compreender como Jesus fez efetivamente “prevalecer” esta aliança com os judeus por uma semana. O ministério de Jesus durou três anos e meio, o que corresponde à primeira metade da 70ª semana, assumindo que tenha começado com o batismo de Jesus. A pregação de Jesus e o anúncio da proximidade do reino de Deus destinava-se primeiramente aos judeus. Jesus afirmou: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15:21-28). Quando enviou os seus doze discípulos, deu-lhes as seguintes instruções: Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas, de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10:5-6). Uma especial paciência foi conferida aos judeus: o viticultor que havia três anos vinha procurar fruto na figueira, mas não achou, quis, porém, dar mais um ano para que a árvore desse fruto. Se depois não desse fruto, cortá-la-ia (Lc 13:6-9).

Ainda na segunda metade da semana, isto é durante os três anos e meio a seguir à morte de Jesus, os discípulos dirigiam-se sempre em primeiro lugar e quase exclusivamente aos judeus. No dia de Pentecostes, Pedro dirigiu-se aos varões judeus e todos os habitantes de Jerusalém (At 2:14), aos varões israelitas (At 2:22), e por ocasião da cura do coxo, aos israelitas (At 3:12). Também Estêvão falou assim antes de ser apedrejado: Varões irmãos e pais, ouvi (At 7:1).

Não há nenhum evento específico na profecia de Daniel que identifique o fim da 70ª semana, mas é possível que esteja relacionado com a completa abertura do evangelho aos gentios. Poderá coincidir com a morte de Estêvão e a primeira grande perseguição aos seguidores de Jesus, em consequência da qual os judeus convertidos saíram de Jerusalém e começaram a anunciar o evangelho nas regiões da Judeia e Samaria (At 8:1, 4, 14-17), e a conversão de Saulo que ocorreu na mesma altura e que fora escolhido para levar o nome de Deus perante gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel (At 9:15). Da mesma época data também o episódio da visita de Pedro à casa do centurião Cornélio (At 10), onde pela primeira vez o dom do Espírito Santo foi derramado sobre os gentios. E os fiéis que eram da circuncisão, que vieram com Pedro, admiraram-se, porque também sobre os gentios foi derramado o dom do Espírito Santo (At 10:45; 11:1).

“Confirmar” subentende que esse concerto já existe, e que os seus termos e condições se tornam agora efetivos. “Confirmar” é fazer prevalecer os termos de uma aliança previamente concedida.

Ele confirmou a aliança prometida, duplamente, como está na lei (Lv 26 e Dt 28): com a bênção e com a maldição. Primeiro, ele fez cessar o sacrifício e a oferta, assegurando o perdão e uma nova aliança para os eleitos de Israel.

O Messias confirmou, no seu sangue, a Nova Aliança há muito anunciada e prometida (Jr 31:31; Ez 11:19-20; 36:25-27).

Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egipto; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor. Porque esta é a aliança que farei (KARATH) com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor. Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei: eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo (Jr 31:31-33).

Por outro lado, a maldição também estava inscrita na lei e Jesus disse assim: não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim abrogar, mas cumprir […] até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo seja cumprido (Mt 5:17-18).

E o povo do príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será como uma inundação; e até ao fim haverá guerra; estão determinadas assolações (v.26b).




[1] Alguns exemplos da ocorrência de GABAR: Gn 7:18 (as águas prevalecem sobre a terra); Ex 17:11; 1 Sm 2:9; Is 42:13 (prevalecer contra o inimigo). GIBBOR (guerreiro, homem forte) vem da mesma raiz.

23/08/2015

A PROFECIA DAS 70 SEMANAS DE DANIEL (4) – o Ungido


Sabe e entende: desde a saída da ordem, para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Ungido, o Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas (Dn 9:25).

Até ao Ungido


Desde a saída da ordem para restaurar e edificar Jerusalém até ao Ungido passariam um total de 69 semanas (7 + 62). O Ungido apareceria no começo da 70ª semana. A questão cronológica será abordada proximamente. Primeiro, importa-nos identificar quem é o Ungido, o Príncipe.

Se até agora tudo o que o anjo anunciou dizia respeito aos tempos messiânicos, o Ungido não pode ser outro do que Jesus, o Cristo. Messias, em Hebraico, traduzido Cristo, em Grego, significa “ungido”. 

“Até” é um indicador de tempo. Portanto, para saber quando começou a 70ª semana, devemo-nos colocar a seguinte questão: a partir de quando o título “Messias” se pode aplicar a Jesus? Havendo algum momento específico na sua vida em que Ele foi efetivamente “ungido”, este momento pode ser considerado o ponto de passagem da 69ª para a 70ª semana. 

Na Velha Aliança, quem era ungido para desempenhar o seu ofício eram os sacerdotes e os reis. No seu batismo, Jesus foi ungido para desempenhar os dois ofícios.

Jesus tinha cerca de trinta anos ao começar o seu ministério (Lc 3:23). Aos trinta anos de idade os sacerdotes eram contados para o serviço pleno no templo[1] (Nm 4:3, 23, 30; 1 Cr 23:3). Todos os evangelhos descrevem como Jesus foi ungido com o Espírito Santo (Mt 3:16-17; Mc 1:10-11; Lc 3:21-22; Jo 1:31-34). Este evento marcou oficialmente o princípio do seu sacerdócio e ministério público. A partir daquele momento Jesus começou a anunciar o Reino, a pregar, curar e expulsar demónios.

A unção do Espírito Santo no batismo de Jesus, além de ser uma unção de sacerdote, era uma unção de rei. A voz de Deus que clamou Este é meu filho amado, em quem me comprazo, expressa o reconhecimento solene e público da filiação que lhe dava direito ao trono. A base legal para ter direito a uma herança (neste caso o direito a um trono e uma dinastia continuada como prometida a David) é a filiação, a relação pai-filho (nós reinamos com Cristo e herdamos com Cristo, porque temos a adoção de filhos, Ef 1:5). Deus estabeleceu esta relação com o filho de David, Salomão, adotando-o como filho (2 Sm 7:13-14): eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho.

Mas Salomão e seus descendentes transgrediram a lei e foram afastados do direito ao trono de Israel; não agradaram a Deus e quebraram a linha de herança. A Acaz, rei de Judá, que colocou a sua fé em Tiglate-Pileser, rei da Assíria, para se proteger contra o inimigo sírio aliado com o rei de Israel, e que por isso tomou a prata e o ouro que se achavam na casa do Senhor e os mandou de presente ao rei da Assíria (2 Rs 16; Is 7; 2 Cr 28:16-25), a esse Acaz, Deus deu um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e lhe chamará Emanuel (Is 7:14). Não seria da descendência física de Salomão que viria aquele que tinha direito ao trono; mas este viria através de uma virgem. No batismo de Jesus, o Pai declarou publicamente Este é meu filho em quem me comprazo, afirmando que dele se agradava, restabelecendo assim o direito ao trono de um descendente da casa de Judá. Do último rei no trono de Judá, Jeconias, disse o Senhor: “Registai este como se não tivera filhos, homem que não prosperará nos seus dias, e nenhum dos seus filhos prosperará para se assentar no trono de David, e ainda reinar em Judá” (Jr 22:30).

Efetivamente, Jesus só ocupou o seu trono à direita do Pai quando ascendeu ao céu depois de ressurreto. Mas não há qualquer incongruência nisto. Também David foi ungido pelo profeta Samuel e só depois de vários anos, de facto, aclamado rei e entronizado. Algumas interpretações consideram que a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, em cumprimento de Zacarias 9 (Mt 21, Mc 11, Lc 19, Jo 12), é o final das 69 semanas - até ao Messias, o Príncipe (NAGIYD) (príncipe, não rei). Contudo, não é a sua aclamação como rei que está em causa, mas a sua unção, a qual aconteceu cerca de três anos e meio antes, no princípio do seu ministério.

E, ainda, o propósito com que João Baptista batizou Jesus com água foi a fim de que Ele fosse manifestado a Israel (v.31). O batismo de Jesus foi o momento da sua manifestação ao seu povo, a sua manifestação como o “Ungido”. Quem quisesse, podia reconhecer este facto, como o comprovam os dois discípulos que, ao ouvir João dizer que Jesus era o Cordeiro de Deus, saíram a correr contar aos outros: Achámos o Messias (Jo 1;41, 45), achámos o Ungido.

O próprio Jesus aplicou a si mesmo, logo nos primeiros dias do seu ministério, na sinagoga de Nazaré, o trecho no livro de Isaías onde está escrito: O Espírito do Senhor é sobre mim, pois me ungiu para... pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor, afirmando no fim da leitura que Hoje, se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos (Is 61:1-2; Lc 4:16-21). Naquele momento, Jesus declarou, para quem quisesse ouvir, que ele era o Ungido da profecia. À mulher samaritana, Jesus disse sem rodeios que era Ele o Messias (Jo 4:26).

Concluímos então que a partir do seu batismo e manifestação a Israel, Jesus é o Messias, o Ungido de Deus na plena acepção do termo. Não há outro momento mais tarde em que Ele é mais ungido do que o era no seu batismo. 69 semanas era o tempo de espera até à manifestação do Ungido, a contar da ordem de saída para restaurar e edificar Jerusalém.  


O Príncipe


O Ungido é também chamado “o príncipe”. A palavra hebraica aqui utilizada é NAGIYD, e significa chefe, líder. Para Daniel, no contexto messiânico da profecia, o NAGIYD não podia ser outro que o líder que viria da descendência de Judá de que falara Jacob aos seus filhos antes de morrer: aquele a quem os filhos de Jacob se inclinariam, aquele que seria o detentor do cetro, aquele a quem os povos obedeceriam (Gn 49:8-12).

A palavra NAGIYD é aplicada a outros líderes, como Saul, Salomão, Jeroboão e outros oficiais com cargas de liderança no templo. Mas é principalmente aplicada a David, que Deus escolheu especialmente para apascentar o seu povo e para ser chefe (NAGIYD) sobre Israel (1 Sm 13:14; 2 Sm 5:2; 6:21; 7:8; 1 Cr 11:2). De Judá veio efetivamente o príncipe, o NAGIYD (1 Cr 5:2). O primeiro NAGIYD de Judá foi David.

O Senhor Deus de Israel me escolheu de toda a casa de meu pai, para que eternamente fosse eu rei (MELEK) sobre Israel; porque a Judá escolheu por príncipe (NAGIYD), e a casa de meu pai na casa de Judá (1 Cr 28:4).

Inclinai os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias prometidas a David. Eis que eu o dei por testemunho aos povos, como príncipe (NAGIYD) e governador dos povos (Is 55:3-4).

David era a figura, o protótipo do líder que Deus prometera levantar e que reinaria com justiça e para sempre (Is 9:7; Jr 23:5; 30:9; 33:15; Ez 34:23-24; 37:24-25).

Pela sua linhagem, Jesus era descendente do rei David, príncipe (NAS’I)[2] da casa de Judá, como se pode comprovar pelas genealogias nos evangelhos de Mateus e Lucas. Era ao Renovo da raiz de Jessé que o trono do Senhor estava prometido (Jr 23:5; 33:15). A Maria, o anjo Gabriel disse do filho que ela iria conceber: Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de David, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacob, e o seu reinado não terá fim (Lc 1:32).

“Príncipe” funciona, nesta frase da profecia, como uma espécie de qualificativo, que identifica – sem que restem dúvidas – quem é este Ungido. O Ungido é o Príncipe de Judá, da casa de David.


Será cortado o Ungido e não tem nada


Depois das [sete e] 62 semanas será cortado o ungido, e já não estará (ou, e não terá nada) (v.26).

A manifestação do Messias ocorre no término de 69 semanas. À 69ª semana, logicamente, se lhe segue a 70ª e última semana da profecia. Foi na 70ª semana que o Messias foi tirado ou morto (como aparece em várias traduções) ou, literalmente, “cortado” (KARATH). Foi na metade da semana que fez cessar o sacrifício e a oferta de manjares (v. 27), pelo sacrifício de si próprio. Após um ministério de três anos e meio (metade de uma semana), Jesus foi cortado da terra dos viventes. Além de nos fazer lembrar imediatamente Isaías 53:8, também nos faz lembrar as palavras de Jeremias 11:19. Eu era como manso cordeiro, que é levado ao matadouro; porque eu não sabia que tramavam projetos contra mim, dizendo: “Destruamos a árvore com o seu fruto; a ele cortemo-lo (KARATH) da terra dos viventes, e não haja mais memória do seu nome”. Os homens de Anatote procuravam a morte de Jeremias, como se com isto desaparecesse a palavra do Senhor contra eles. E este episódio faz lembrar a parábola do senhor da vinha (Mt 21). O herdeiro foi morto na tentativa dos lavradores para se apossarem da herança.

Jesus foi morto pela condenação do Sinédrio. Foi julgado e condenado, tendo sido falsamente acusado de blasfémia (Mt 26:64-66), cuja consequência era a pena de morte (Ex 22:28; Lv 24:15-16). O sumo-sacerdote achou que Jesus amaldiçoou o príncipe (nas’i) do povo, quando declarou que desde agora vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do céu (Mt 26:64). A vinda do Filho do homem sobre as nuvens significava julgamento sobre Israel.

Mas o verbo KARATH usado por Daniel implica mais do que simplesmente a pena de morte. KARATH expressa a excomunhão, o corte definitivo da comunhão com Deus e da pertença à comunidade da aliança. Uma alma que não cumpria a circuncisão, ou que profanava o sábado, ou que comesse sangue, ou fizesse certas outras coisas definidas na lei, era eliminada (KARATH) do seu povo (Gn 17:14; Ex 12:15, 19; 31:14; Lv 7:20, 21, 25; 17:4, 9; 20:18). Portanto guardareis o sábado, porque é santo para vós; aquele que o profanar morrerá; pois qualquer que nele fizer alguma obra será eliminado (KARATH) do meio do seu povo (Ex 31:14).

O Ungido foi, de facto, eliminado, como o dá a entender o uso do verbo KARATH. Mas como é isto possível se Ele era sem pecado?

Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos. Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro […] Por juízo opressor foi arrebatado (Is 53:6-7)

Sendo “cortado”, Jesus ficaria sem nada, sem descendência, sem nome. Mesmo Deus o desamparou naquela hora (Mt 27:46). Aos olhos dos judeus, daqueles que não perceberam o que estava a passar-se diante dos seus olhos, Jesus não tinha nada.

Pela opressão e pelo juízo foi arrebatado; e quem dentre os da sua geração considerou que ele fora cortado [3] da terra dos viventes, ferido por causa da transgressão do meu povo? (Is 53:8)

De sua linhagem, quem dela cogitou? Quem pode falar dos seus descendentes? (outras versões de Is 53:8).

Verdadeiramente, Jesus foi eliminado e excomungado como se fosse um transgressor da lei, e achado sem descendência quando levou sobre ele todas as nossas transgressões. Mas ele venceu. Tanto que Isaías 53:10-11 diz que verá a sua posteridade e o fruto do penoso trabalho de sua alma e prolongará os seus dias. A Igreja, que é o seu corpo, é a sua posteridade, o fruto do seu trabalho.


Cortar a aliança: a circuncisão de Cristo


O verbo KARATH, que significa simplesmente cortar, como cortar uma árvore, cortar com uma faca, é especialmente usado na expressão “cortar uma aliança” (alguns exemplos: Gn 15:18; Ex 24:8; Dt 4:23; Jr 34:8, 18; 2 Cr 21:7; Is 55:3). Certamente que o “cortar” do Ungido está também relacionado com o “cortar” da aliança.

Na cruz, Jesus “cortou” a aliança no seu próprio sangue. O cálice que Jesus entregou aos seus discípulos para beberem na última ceia representava o seu sangue, o sangue da Nova Aliança, derramado em favor de muitos, para remissão dos pecados (Mt 26:28).

Na morte do Ungido está, essencialmente, o cumprimento da promessa da aliança de Deus com Abraão: Por pai de numerosas nações te constitui (Gn 17:5).

Deus prometera a Abrão uma posteridade como as estrelas do céu. Embora ele não tivesse filhos, Abrão creu (Gn 15:1-6). Mais tarde, Deus converteu a sua promessa numa aliança (Gn 17):

Farei uma aliança entre mim e ti, e te multiplicarei extraordinariamente […] Quanto a mim, será contigo a minha aliança; serás pai de numerosas nações. Abrão já não será o teu nome, e, sim, Abraão; porque por pai de numerosas nações te constitui. […] Guardarás a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal da aliança entre mim e vós (Gn 17:2-11).

O ato ritual da circuncisão, executado por Abraão e a sua casa, expressava fé na promessa de Deus. A circuncisão era uma aliança de fé (Rm 4:11). Daí que o incircunciso era eliminado (cortado) do seu povo (Gn 17:14).

Abraão recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os que crêem, embora não circuncidados, a fim de que lhes fosse imputada a justiça (Rm 4:11).

Ismael foi concebido antes da instituição da circuncisão; Ismael é o filho segundo a carne. Isaac nasceu depois da instituição da circuncisão. Então lhe deu a aliança da circuncisão; assim nasceu Isaac (At 7:8). Isaac é o filho da promessa, que nasceu segundo o Espírito (Gl 4:23, 29). Através dele, Deus cumpriria a sua palavra (Gn 18:21; 21:12), mas não sem antes pôr à prova a fé de Abraão, para ver se, mesmo ordenado de sacrificar o seu filho no altar – aquele filho especial há longo tempo desejado e através de quem a promessa seria realizada –, Abraão ainda continuaria a crer. Abraão passou a prova e as promessas foram confirmadas (Gn 22).

Porque escolheu Deus o ritual da circuncisão para ratificar a sua aliança?

Antes de mais nada, o rito da circuncisão – como qualquer outro rito de “cortar aliança” – representa um juramento, em sinal de submissão ao Senhor, aos termos da sua aliança e a sua autoridade judicial. Era a parte que o homem devia fazer como expressão da sua fidelidade e fé na promessa de Deus. Era o sinal de ratificação da aliança por parte de Abraão e de todos os que depois seriam circuncidados.

Além disso, o tipo de ritual praticado para fazer uma aliança evoca as sanções no caso de quebra da aliança. A ação ritual de cortar retrata a maldição da aliança: a morte. No caso da circuncisão, o corte feito no órgão através do qual filhos são gerados, significa que é sobre o descendente que vai recair o castigo do julgamento. Paulo, em Colossenses 2:11, interpreta a circuncisão como morrer e sofrer a ira de Deus. Entende a crucificação de Cristo como a circuncisão de Cristo:

Nele também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo (Cl 2:11).

A circuncisão era um ato simbólico de passar debaixo do julgamento, do juízo de Deus. Ele sofreu a maldição. Ele passou debaixo do julgamento. Nele foi aperfeiçoada, ou completada, a circuncisão, não por um corte simbólico, mas pelo corte de todo o corpo da carne, objetivamente, na morte.

Mas Jesus venceu e ressuscitou, porque a morte não o podia reter. Praticada ao oitavo dia, a circuncisão é também sinal de ressurreição e nova vida. Foi no oitavo dia que Jesus ressuscitou.




[1] Nm 8:23-26 diz que os levitas são entregues por Deus para fazer o serviço na tenda da congregação a partir dos 25 anos, mas só a partir dos 30 anos de idade são contados. Este período de 5 anos era possivelmente um período de preparação antes de entrar no serviço pleno.
[2] Nas’i, também traduzido príncipe, é mais frequentemente utilizado para os príncipes do povo, os príncipes das tribos de Israel. Em Ezequiel 44 a 48, nas’i é aplicado ao sumo-sacerdote que oficia no templo visionário. At 23:3-5, ao referir-se a Ex 22:28, indica que nas’i é utilizado para o sumo-sacerdote.
O termo nagiyd é utilizado para oficiais e sacerdotes encarregados de determinadas tarefas no templo ou sobre determinados grupos de pessoas, mas não é aplicado ao sumo-sacerdote naquela qualidade, pelo que é afastada qualquer interpretação que vê no Príncipe da profecia Daniel algum sumo-sacerdote descendente da casa de Aarão.
[3] O verbo nesta passagem não é KARATH mas GAZAR. É um verbo muito menos frequente do que KARATH, mas tem um sentido semelhante: separado, excluído.

22/08/2015

A PROFECIA DAS 70 SEMANAS DE DANIEL (3) – os propósitos a cumprir


Setenta semanas estão determinadas … para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia, e para ungir o Santo dos Santos (Dn 9:24).


No entendimento de Daniel, os seis propósitos que se deviam cumprir no período de tempo de 10 jubileus – o perfeito e completo jubileu messiânico – não podiam senão dizer respeito à obra que seria realizada pelo Messias quando viesse.

Se a profecia das Setenta Semanas tem tido uma conotação algo negativa, é porque muitos estudos e comentários põem em evidência “a cidade e o povo” e as consequências desastrosas da rejeição do Messias, pelo povo judeu, para “a cidade e o povo”. Mas, na realidade, a profecia começa numa nota de esperança sem par. É a mais concreta mensagem de esperança que Israel recebeu até então: dentro de 70 semanas, o Messias virá e realizará tudo o que foi prometido! E embora Jerusalém e o templo fossem outra vez destruídos, Israel ainda cumpriria a sua missão como povo sacerdotal, povo no meio do qual viria a nascer o Redentor, a semente de Abraão a quem foram feitas as promessas (Gl 3:16). Como disse o próprio Jesus: a salvação vem dos judeus (Jo 4:22).


Completar a transgressão


Dentro de um período de 70 semanas, a transgressão seria completada. Transgressão é um termo geral, não significando pecados individuais, mas rebeldia em geral.

O verbo KHALA’ significa fechar, restringir, refrear, proibir, reter. A tradução grega na Septuaginta é sunteleio (συντελεω): levar ao fim, completar, terminar, fechar. A rebeldia de Israel contra Deus chegou ao seu cúmulo quando rejeitou e crucificou o seu Rei e Messias. A transgressão foi levada até ao fim. Disse assim Jesus aos fariseus: Enchei vós, pois, a medida dos vossos pais … uns matareis e crucificareis; outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade (Mt 23:32-34).

A parábola do dono da vinha é esclarecedora (Mt 21:33-45). Os lavradores maus mataram, primeiro, os servos e, no fim, o filho que veio buscar os frutos. Respondendo a Jesus quando este perguntou «quando vier o senhor da vinha, que fará aos lavradores?», os próprios sacerdotes e fariseus selaram o seu destino, respondendo «Fará perecer horrivelmente a estes malvados, e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe remetam os frutos nos seus devidos tempos». Encheram a medida dos seus pecados, rejeitando a principal pedra de esquina. Por isso, o reino ser-lhes-ia tirado e incendiada a sua cidade (Mt 21:43; 22:7).

Mas o Messias não veio só para Israel. Nem a rebeldia é só por parte de Israel. Toda a humanidade é responsável pela morte de Jesus. Porque se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra e as autoridades ajuntaram-se à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido (Sl 2:1-2); porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de Israel (At 4:25-27).

A transgressão completada e levada ao extremo na morte do Ungido significa, ao mesmo tempo, que a transgressão foi refreada (ver o significado do verbo KHALA’). Pela cruz de Jesus, o pecado não mais nos pode ser imputado e utilizado contra nós (os que crêem) em justiça. O poder da transgressão foi quebrado em Jesus.


Selar os pecados


O verbo TAMAM usado aqui quer dizer terminar, completar, aperfeiçoar, dando a esta frase mais ou menos o mesmo significado que à anterior. Mas, numa leitura alternativa do texto[1], os escribas hebraicos usavam o verbo CHATTAM, que significa selar, autenticar com selo.

Paulo escreveu aos Gálatas que a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que mediante a fé em Jesus Cristo, fosse a promessa concedida aos que crêem (Gl 3:22) e aos Romanos, que Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (Rm 11:32).

É interessante, também, observar o significado das palavras “transgressão” e “pecados”. No hebraico, incluem, além do próprio sentido de transgressão e pecado, o significado de oferta ou sacrifício pelo pecado. Oferecendo-se ele próprio como sacrifício pelo pecado, Jesus levou ao fim os sacrifícios, aperfeiçoou os sacrifícios, fazendo e sendo ele mesmo o último sacrifício necessário, dando assim fim à necessidade de sacrifícios animais (Hb 10:1-12).

Cristo é o cordeiro que, à semelhança dos animais sobre quem a culpa era transferida, levou sobre ele o pecado do mundo (Jo 1:29). Daniel conhecia o livro de Isaías, que diz: ele foi traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados […] o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos (Is 53:5-6). Os pecados foram fechados e selados e colocados sobre ele, e ele os levou à cruz. Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados (1 Pe 2:24). Cancelou o escrito de dívida que era contra nós, removeu-o e cravou-o na cruz (Cl 2:14). Jesus aniquilou, aboliu o pecado pelo sacrifício de si mesmo (Hb 9:26). Jesus deu fim aos pecados e aos sacrifícios pelos pecados.

Naqueles dias, e naquele tempo, diz o SENHOR, buscar-se-á a iniquidade de Israel, e já não haverá; os pecados de Judá, mas não se acharão; porque perdoarei aos remanescentes que eu deixar (Jr 20:20).

Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança […] esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel […] Perdoarei as suas iniquidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei (Jr 31:31-34)


Expiar a iniquidade


O verbo KAPHAR é geralmente traduzido expiar, fazer reconciliação. Mas, basicamente, significa cobrir. O pecado é coberto com o sangue exigido pela justiça de Deus.

A cerimónia mais importante no calendário litúrgico de Israel era o Dia da Expiação (Yom Kippur), literalmente, o Dia de “cobrir”. Kippur vem do verbo KAPHAR. Naquele dia todos os pecados do ano de toda a congregação de Israel eram como que ajuntados e selados, e expiados (Lv 16:16, 17). Porque naquele dia se fará expiação (KAPHAR) por vós, para vos purificar; e sereis purificados de todos os vossos pecados perante o Senhor (Lv 16:30).

Naquele dia, dois bodes eram trazidos perante o Senhor. Um era o bode da oferta do pecado, que era morto para satisfazer a justiça de Deus. O outro era enviado para o deserto, levando sobre ele as iniquidades para longe, como sinal da remissão do pecado pela graça de Deus (Lv 16).

Naquele dia, e só naquele dia, o sumo-sacerdote entrava no Santo dos Santos, como figura e sombra de Jesus (Hb 8-10) que, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção (Hb 9:12).

O dia da crucificação de Jesus foi o último e verdadeiro Dia da Expiação. Jesus expiou a iniquidade, passando ele próprio pelo juízo em nosso lugar.

Não terá também passado despercebido a Daniel que era no Dia da Expiação que se soava a trombeta que inaugurava o ano do jubileu, o ano de libertação e de restituição, o ano aceitável do Senhor (Is 61).

Então no mês sétimo, aos dez do mês, farás passar a trombeta vibrante: no dia da expiação fareis passar a trombeta por toda a vossa terra. Santificareis o ano quinquagésimo, e proclamareis liberdade na terra a todos os seus moradores: ano de jubileu vos será, e tornareis, cada um à sua possessão, e cada um à sua família (Lv 25:9-10)

Trazer a justiça eterna


Israel aguardava um reino firmado mediante o juízo e a justiça (Is 9:7). Mas ninguém podia ser justificado perante Deus pelas obras da lei (Rm 3:19-10). E os sacrifícios traziam uma justiça imperfeita e temporária. Israel aguardava a justiça perfeita. Na cruz, Jesus expiou o pecado e o resultado foi a justiça eterna.

Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus … mediante a fé em Jesus Cristo … mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente … (Rom 3:21-26).


Selar a visão e a profecia


A ideia de selar, fechar com selo (aqui é utilizado o verbo CHATTAM) pode ter várias implicações.

Um selo posto sobre um documento sanciona, confirma, autentica o que nele está escrito. A função da profecia e dos profetas era anunciar o Messias. Os profetas falaram, mas quando veio o filho, calaram-se; não havia mais necessidade de o anunciar (Hb 1:1). Foi o próprio Filho quem falou. A primeira vinda de Cristo, a sua morte e ressurreição foi a confirmação de tudo o que fora anteriormente predito. Cristo selou toda a visão e profecia; ele é o “sim e amem”, o selo de autenticação de toda a profecia. Em Cristo são cumpridas e confirmadas todas as promessas (2 Co 1:20).

Eis que subimos para Jerusalém e vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas, no tocante ao filho do homem (Lc 18:31; ver também Lc 24:44; At 3:18)

Todos os profetas e a lei profetizaram até João, a partir de então é anunciado o evangelho, isto é: as boas novas (Mt 11:13; Lc 16:16). Com Jesus, tinha chegado a plenitude dos tempos (Gl 4:4), que Paulo também chamou os fins dos séculos (1 Co 10:11).


Nas Escrituras, o verbo “selar” é usado noutras ocasiões para indicar que algo é fechado de maneira que não pode ser visto ou compreendido (Is 29:11).

Toda a visão já se vos tornou como as palavras dum livro selado, que se dá ao que sabe ler, dizendo: Lê isto, peço-te; e ele responde: Não posso, porque está selado; e dá-se o livro ao que não sabe ler, dizendo: Lê isto, peço-te; e ele responde: Não sei ler (Is 29:11-12).

O pecado tornou os judeus cegos à compreensão da mensagem dos profetas e do próprio Jesus. Jesus disse dos seus contemporâneos (Mt 13:14,15; Jo 12:39-40) que neles se cumpriu a profecia de Isaías (Is 6:9-13).

Vai, e diz a este povo: Ouvi, ouvi, e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhes os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos, e a entender com o coração, e se converta e seja salvo.

Então disse eu: Até quando, Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores, e a terra seja de todo assolada, e o Senhor afaste dela os homens e no meio da terra seja grande o desamparo. Mas se ainda ficar a décima parte dela tornará a ser destruída. Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derrubados, ainda fica o toco, assim a santa semente é o seu toco (Is 6:9-13)

Esta profecia de Isaías é esclarecedora. Ela alia o tema da profecia de Daniel à situação em que os judeus se encontravam no primeiro ano de Ciro, para dali tirar uma ilação. Jerusalém tinha sido destruída por Nabucodonosor, mas uma parte fiel permaneceu e recebeu uma nova oportunidade (regresso à terra), que desta vez os conduziria até à vinda do Messias. Mas como o pecado se iria repetir novamente, a terra seria novamente destruída. E não o compreenderam.

Ungir o santo dos santos


O templo (a casa de Deus) era a habitação de Deus, o sinal da presença de Deus no meio do seu povo, como testemunho da sua aliança. Na história de Israel, duas casas de Deus já haviam sido edificadas e posteriormente destruídas: o tabernáculo e o templo de Salomão, porque Israel quebrara a aliança. Dentro em breve, uma nova casa seria edificada por Zorobabel (ver o livro de Esdras). E, dentro de 70 semanas, o santo dos santos seria ungido. Que significa isto?

O santo dos santos era o lugar onde se encontrava a arca, que simbolizava a presença e o trono do Senhor. O propósito da unção (ungir) é dedicação e consagração, para ser santo (separado) para o Senhor. Nas estipulações da lei (Ex 40:9), o tabernáculo com o santo dos santos devia ser ungido para ser consagrado.

Mas o santo dos santos que seria consagrado dentre de 490 anos da profecia não seria outro templo de pedra.

Jesus era, ele próprio, o templo. Sim, porque ele veio como Emanuel, Deus connosco, presença de Deus entre os homens. Jesus disse de si próprio que ele era o templo. No dia do seu batismo, à semelhança dos sacerdotes, Jesus foi ungido e consagrado para o ministério. Depois destruíram o santuário (do seu corpo) e em três dias ele o reconstruiu (Jo 2:19-21).

Depois de ressuscitado e de ascender ao céu, enviou o Espírito Santo para ungir a Igreja representativamente nos discípulos no dia de Pentecostes, ungindo assim o templo espiritual da Nova Aliança (Atos 2:1-4, 17), formado por Cristo e a sua Igreja, o seu povo, o Novo Israel.

Mas aquele que nos confirma convosco em Cristo, e nos ungiu, é Deus, que também nos selou e nos deu o penhor do Espírito em nossos corações (2 Cor 1:21-22).

A presença do Espírito em nós faz de nós “templo de Deus”, habitação de Deus no Espírito (Ef 2:19-22). Não sabeis que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? (1 Co 3:16; e também 6:19).

O templo espiritual da Nova Aliança é o verdadeiro e último templo, que não está nem em Jerusalém, nem em Samaria ou em Roma, mas está onde estão os verdadeiros adoradores que o adoram em espírito e em verdade (Jo 4:21-24). Este é o verdadeiro “santo dos santos”.


Daniel não podia compreender em toda a sua plenitude tudo o que a profecia implicava, o significado do “verdadeiro santo dos santos”. Mesmo os discípulos de Jesus só começaram a entender a nova realidade depois da sua morte. E se nós hoje podemos compreender a realidade deste templo espiritual, porque há tantos ainda à espera de um templo de pedra reconstruído em Jerusalém??! Não há maior graça que Deus nos pode conceder do que habitar em nós.

Tudo neste versículo 24 – que é de uma riqueza extraordinária, que aqui só tocámos ao de leve – aponta para a obra de Jesus Cristo e, finalmente, para a Nova Aliança com o seu novo templo, a Igreja de Cristo. Os seis propósitos que deviam ser cumpridos no quadro da septuagésima semana estão todos relacionados uns com os outros e cumpridos em Jesus, o Messias. É este significado messiânico que não podemos de maneira alguma perder de visto quando avançamos para a interpretação dos restantes versículos!




[1] Na Bíblia hebraica, os escribas não alteravam o texto quando achavam que uma palavra tinha sido copiada incorrectamente, mas anotavam na margem o que consideravam ser correcto. Esta variante anotada chama-se KHETIV.