Setenta
semanas estão determinadas … para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos
pecados, para expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna, para selar a
visão e a profecia, e para ungir o Santo dos Santos (Dn 9:24).
No entendimento de Daniel, os seis propósitos
que se deviam cumprir no período de tempo de 10 jubileus – o perfeito e
completo jubileu messiânico – não podiam senão dizer respeito à obra que seria realizada
pelo Messias quando viesse.
Se a profecia das Setenta Semanas tem tido
uma conotação algo negativa, é porque muitos estudos e comentários põem em
evidência “a cidade e o povo” e as consequências desastrosas da rejeição do
Messias, pelo povo judeu, para “a cidade e o povo”. Mas, na realidade, a
profecia começa numa nota de esperança sem par. É a mais concreta mensagem de
esperança que Israel recebeu até então: dentro de 70 semanas, o Messias virá e
realizará tudo o que foi prometido! E embora Jerusalém e o templo fossem outra
vez destruídos, Israel ainda cumpriria a sua missão como povo sacerdotal, povo
no meio do qual viria a nascer o Redentor, a semente de Abraão a quem foram feitas
as promessas (Gl 3:16). Como disse o próprio Jesus: a salvação vem dos judeus (Jo 4:22).
Completar a
transgressão
Dentro de um
período de 70 semanas, a transgressão seria completada. Transgressão é um termo
geral, não significando pecados individuais, mas rebeldia em geral.
O verbo KHALA’ significa fechar, restringir, refrear,
proibir, reter. A tradução grega na Septuaginta é sunteleio (συντελεω): levar ao fim, completar, terminar, fechar. A
rebeldia de Israel contra Deus chegou ao seu cúmulo quando rejeitou e
crucificou o seu Rei e Messias. A transgressão foi levada até ao fim. Disse
assim Jesus aos fariseus: Enchei vós,
pois, a medida dos vossos pais … uns matareis e crucificareis; outros
açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade (Mt
23:32-34).
A parábola do dono da vinha é esclarecedora
(Mt 21:33-45). Os lavradores maus mataram, primeiro, os servos e, no fim, o
filho que veio buscar os frutos. Respondendo a Jesus quando este perguntou «quando vier o senhor da vinha, que fará aos
lavradores?», os próprios sacerdotes e fariseus selaram o seu destino,
respondendo «Fará perecer horrivelmente a
estes malvados, e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe remetam os
frutos nos seus devidos tempos». Encheram a medida dos seus pecados, rejeitando
a principal pedra de esquina. Por isso, o reino ser-lhes-ia tirado e incendiada
a sua cidade (Mt 21:43; 22:7).
Mas o Messias não veio só para Israel. Nem a
rebeldia é só por parte de Israel. Toda a humanidade é responsável pela morte
de Jesus. Porque se enfureceram os
gentios, e os povos imaginaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra e as
autoridades ajuntaram-se à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido (Sl
2:1-2); porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo
Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de
Israel (At 4:25-27).
A transgressão completada e levada ao
extremo na morte do Ungido significa, ao mesmo tempo, que a transgressão foi
refreada (ver o significado do verbo KHALA’).
Pela cruz de Jesus, o pecado não mais nos pode ser imputado e utilizado contra
nós (os que crêem) em justiça. O poder da transgressão foi quebrado em Jesus.
Selar os
pecados
O verbo TAMAM
usado aqui quer dizer terminar, completar, aperfeiçoar, dando a esta frase mais
ou menos o mesmo significado que à anterior. Mas, numa leitura alternativa do
texto[1],
os escribas hebraicos usavam o verbo CHATTAM,
que significa selar, autenticar com selo.
Paulo escreveu aos Gálatas que a Escritura encerrou tudo sob o pecado,
para que mediante a fé em Jesus Cristo, fosse a promessa concedida aos que
crêem (Gl 3:22) e aos Romanos, que Deus a todos
encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (Rm
11:32).
É interessante, também, observar o
significado das palavras “transgressão” e “pecados”. No hebraico, incluem, além
do próprio sentido de transgressão e pecado, o significado de oferta ou
sacrifício pelo pecado. Oferecendo-se ele próprio como sacrifício pelo pecado,
Jesus levou ao fim os sacrifícios, aperfeiçoou os sacrifícios, fazendo e sendo
ele mesmo o último sacrifício necessário, dando assim fim à necessidade de
sacrifícios animais (Hb 10:1-12).
Cristo é o cordeiro que, à semelhança dos
animais sobre quem a culpa era transferida, levou sobre ele o pecado do mundo
(Jo 1:29). Daniel conhecia o livro de Isaías, que diz: ele foi traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas
iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas
pisaduras fomos sarados […] o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós
todos (Is 53:5-6). Os pecados foram fechados e selados e colocados sobre
ele, e ele os levou à cruz. Carregando
ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados (1 Pe 2:24).
Cancelou o escrito de dívida que era contra nós, removeu-o e cravou-o na cruz
(Cl 2:14). Jesus aniquilou, aboliu o pecado pelo sacrifício de si mesmo (Hb 9:26).
Jesus deu fim aos pecados e aos sacrifícios pelos pecados.
Naqueles
dias, e naquele tempo, diz o SENHOR, buscar-se-á a iniquidade de Israel, e já
não haverá; os pecados de Judá, mas não se acharão; porque perdoarei aos
remanescentes que eu deixar (Jr 20:20).
Eis
aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança […] esta é a aliança que
firmarei com a casa de Israel […] Perdoarei as suas iniquidades, e dos seus
pecados jamais me lembrarei (Jr 31:31-34)
Expiar a
iniquidade
O verbo KAPHAR
é geralmente traduzido expiar, fazer reconciliação. Mas, basicamente, significa
cobrir. O pecado é coberto com o sangue exigido pela justiça de Deus.
A cerimónia mais importante no calendário
litúrgico de Israel era o Dia da Expiação (Yom Kippur), literalmente, o Dia de
“cobrir”. Kippur vem do verbo KAPHAR. Naquele dia todos os pecados do
ano de toda a congregação de Israel eram como que ajuntados e selados, e expiados
(Lv 16:16, 17). Porque naquele dia se
fará expiação (KAPHAR) por vós, para vos purificar; e sereis purificados de
todos os vossos pecados perante o Senhor (Lv 16:30).
Naquele dia, dois bodes eram trazidos
perante o Senhor. Um era o bode da oferta do pecado, que era morto para
satisfazer a justiça de Deus. O outro era enviado para o deserto, levando sobre
ele as iniquidades para longe, como sinal da remissão do pecado pela graça de
Deus (Lv 16).
Naquele dia, e só naquele dia, o
sumo-sacerdote entrava no Santo dos Santos, como figura e sombra de Jesus (Hb
8-10) que, não por meio de sangue de
bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos,
uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção (Hb 9:12).
O dia da crucificação de Jesus foi o último e
verdadeiro Dia da Expiação. Jesus expiou a iniquidade, passando ele próprio
pelo juízo em nosso lugar.
Não terá também passado despercebido a
Daniel que era no Dia da Expiação que se soava a trombeta que inaugurava o ano
do jubileu, o ano de libertação e de restituição, o ano aceitável do Senhor (Is
61).
Então
no mês sétimo, aos dez do mês, farás passar a trombeta vibrante: no dia da
expiação fareis passar a trombeta por toda a vossa terra. Santificareis o ano
quinquagésimo, e proclamareis liberdade na terra a todos os seus moradores: ano
de jubileu vos será, e tornareis, cada um à sua possessão, e cada um à sua
família (Lv 25:9-10)
Trazer a
justiça eterna
Israel aguardava um reino firmado mediante o
juízo e a justiça (Is 9:7). Mas ninguém podia ser justificado perante Deus
pelas obras da lei (Rm 3:19-10). E os sacrifícios traziam uma justiça
imperfeita e temporária. Israel aguardava a justiça perfeita. Na cruz, Jesus
expiou o pecado e o resultado foi a justiça eterna.
Mas
agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus … mediante a fé em Jesus Cristo
… mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu
sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter
Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos;
tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente … (Rom 3:21-26).
Selar a
visão e a profecia
A ideia de selar, fechar com selo (aqui é utilizado
o verbo CHATTAM) pode ter várias
implicações.
Um selo posto sobre um documento sanciona,
confirma, autentica o que nele está escrito. A função da profecia e dos
profetas era anunciar o Messias. Os profetas falaram, mas quando veio o filho,
calaram-se; não havia mais necessidade de o anunciar (Hb 1:1). Foi o próprio
Filho quem falou. A primeira vinda de Cristo, a sua morte e ressurreição foi a
confirmação de tudo o que fora anteriormente predito. Cristo selou toda a visão e profecia; ele é o “sim e amem”, o selo de autenticação de toda
a profecia. Em Cristo são cumpridas e confirmadas todas as promessas (2 Co
1:20).
Eis
que subimos para Jerusalém e vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito
por intermédio dos profetas, no tocante ao filho do homem (Lc 18:31; ver também
Lc 24:44; At 3:18)
Todos
os profetas e a lei profetizaram até João, a partir de então é anunciado
o evangelho,
isto é: as boas novas (Mt 11:13; Lc 16:16). Com Jesus, tinha chegado a plenitude dos tempos (Gl 4:4), que
Paulo também chamou os fins dos séculos
(1 Co 10:11).
Nas Escrituras, o verbo “selar” é usado
noutras ocasiões para indicar que algo é fechado de maneira que não pode ser
visto ou compreendido (Is 29:11).
Toda
a visão já se vos tornou como as palavras dum livro selado, que se dá ao que
sabe ler, dizendo: Lê isto, peço-te; e ele responde: Não posso, porque está
selado; e dá-se o livro ao que não sabe ler, dizendo: Lê isto, peço-te; e ele
responde: Não sei ler (Is 29:11-12).
O pecado tornou os judeus cegos à
compreensão da mensagem dos profetas e do próprio Jesus. Jesus disse dos seus
contemporâneos (Mt 13:14,15; Jo 12:39-40) que neles se cumpriu a profecia de
Isaías (Is 6:9-13).
Vai,
e diz a este povo: Ouvi, ouvi, e não entendais; vede, vede, mas não percebais.
Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhes os
olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos, e a
entender com o coração, e se converta e seja salvo.
Então
disse eu: Até quando, Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas
as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores, e a terra
seja de todo assolada, e o Senhor afaste dela os homens e no meio da terra seja
grande o desamparo. Mas se ainda ficar a décima parte dela tornará a ser
destruída. Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derrubados,
ainda fica o toco, assim a santa semente é o seu toco (Is 6:9-13)
Esta profecia de Isaías é esclarecedora. Ela
alia o tema da profecia de Daniel à situação em que os judeus se encontravam no
primeiro ano de Ciro, para dali tirar uma ilação. Jerusalém tinha sido
destruída por Nabucodonosor, mas uma parte fiel permaneceu e recebeu uma nova
oportunidade (regresso à terra), que desta vez os conduziria até à vinda do
Messias. Mas como o pecado se iria repetir novamente, a terra seria novamente
destruída. E não o compreenderam.
Ungir o
santo dos santos
O templo (a casa de Deus) era a habitação de
Deus, o sinal da presença de Deus no meio do seu povo, como testemunho da sua aliança.
Na história de Israel, duas casas de Deus já haviam sido edificadas e
posteriormente destruídas: o tabernáculo e o templo de Salomão, porque Israel
quebrara a aliança. Dentro em breve, uma nova casa seria edificada por
Zorobabel (ver o livro de Esdras). E, dentro de 70 semanas, o santo dos santos
seria ungido. Que significa isto?
O santo dos santos era o lugar onde se
encontrava a arca, que simbolizava a presença e o trono do Senhor. O propósito
da unção (ungir) é dedicação e consagração, para ser santo (separado) para o
Senhor. Nas estipulações da lei (Ex 40:9), o tabernáculo com o santo dos santos
devia ser ungido para ser consagrado.
Mas o santo dos santos que seria consagrado
dentre de 490 anos da profecia não seria outro templo de pedra.
Jesus era, ele próprio, o templo. Sim,
porque ele veio como Emanuel, Deus connosco, presença de Deus entre os homens. Jesus
disse de si próprio que ele era o templo. No dia do seu batismo, à semelhança
dos sacerdotes, Jesus foi ungido e consagrado para o ministério. Depois destruíram
o santuário (do seu corpo) e em três dias ele o reconstruiu (Jo 2:19-21).
Depois de ressuscitado e de ascender ao céu,
enviou o Espírito Santo para ungir a Igreja representativamente nos discípulos
no dia de Pentecostes, ungindo assim o templo espiritual da Nova Aliança (Atos
2:1-4, 17), formado por Cristo e a sua Igreja, o seu povo, o Novo Israel.
Mas
aquele que nos confirma convosco em Cristo, e nos ungiu, é Deus, que também nos selou e nos deu o penhor do
Espírito em nossos corações (2 Cor 1:21-22).
A presença do Espírito em nós faz de nós
“templo de Deus”, habitação de Deus no Espírito (Ef 2:19-22). Não sabeis que sois santuário de Deus, e que
o Espírito de Deus habita em vós? (1 Co 3:16; e também 6:19).
O templo espiritual da Nova Aliança é o
verdadeiro e último templo, que não está nem em Jerusalém, nem em Samaria ou em
Roma, mas está onde estão os verdadeiros adoradores que o adoram em espírito e
em verdade (Jo 4:21-24). Este é o verdadeiro “santo dos santos”.
Daniel não podia compreender em toda a sua
plenitude tudo o que a profecia implicava, o significado do “verdadeiro santo
dos santos”. Mesmo os discípulos de Jesus só começaram a entender a nova
realidade depois da sua morte. E se nós hoje podemos compreender a realidade
deste templo espiritual, porque há tantos ainda à espera de um templo de pedra reconstruído
em Jerusalém??! Não há maior graça que Deus nos pode conceder do que habitar em
nós.
Tudo neste versículo 24 – que é de uma
riqueza extraordinária, que aqui só tocámos ao de leve – aponta para a obra de
Jesus Cristo e, finalmente, para a Nova Aliança com o seu novo templo, a Igreja
de Cristo. Os seis propósitos que deviam ser cumpridos no quadro da septuagésima
semana estão todos relacionados uns com os outros e cumpridos em Jesus, o
Messias. É este significado messiânico que não podemos de maneira alguma perder
de visto quando avançamos para a interpretação dos restantes versículos!
[1] Na Bíblia hebraica, os
escribas não alteravam o texto quando achavam que uma palavra tinha sido
copiada incorrectamente, mas anotavam na margem o que consideravam ser
correcto. Esta variante anotada chama-se KHETIV.
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