11/08/2015

A PROFECIA DAS 70 SEMANAS DE DANIEL (1) - a oração de Daniel

Antes de entrarmos na análise da questão cronológica associada à profecia de Daniel, convém compreender de que fala esta profecia e que indicações cronológicas fornece.

A profecia (Dn 9:23-27) veio em resposta à oração de Daniel, no primeiro ano de Dario o medo (que numa mensagem anterior identificámos como sendo a mesma pessoa que Ciro), quando ele recordou os termos em que Jeremias escrevera aos exilados no princípio do reinado de Zedequias, a seguir à deportação do rei Joaquim:
Logo que se cumprirem para Babilónia setenta anos, atentarei para vós e cumprirei para convosco a minha boa palavra, tornando a trazer-vos para este lugar […] Então me invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração. Serei achado de vós, diz o Senhor, e farei mudar a vossa sorte; congregar-vos-ei de todas as nações, e de todos os lugares para onde vos lancei, diz o Senhor, e tornarei a trazer-vos ao lugar donde vos mandei para o exílio (Jr 29:10-14).


A oração da aliança
Israel estava no exílio porque quebrara a aliança com Deus. O que lhe sobreveio estava previsto nas maldições da lei (Lv 26; Dt 28:15-68). Daniel confessa-o: Sim, todo o Israel transgrediu a tua lei, desviando-se, para não obedecer à tua voz; por isso a maldição e imprecações que estão escritas na lei de Moisés, servo de Deus, se derramaram sobre nós; porque temos pecado contra ele (Dn 9:11).

O último e maior castigo era perecerem da terra e serem espalhados pelas nações, quando o pecado se tivesse acumulado do tal maneira que mais nada havia a fazer. Mas não importava para onde tivessem sido desterrados: de lá buscareis ao Senhor teu Deus, e o acharás, quando o buscares de todo o teu coração e de toda a tua alma. Quando estiveres em angústia, e todas estas coisas te sobrevierem nos últimos dias, e te voltares para o Senhor teu Deus, e lhe atenderes a voz, então o Senhor teu Deus não te desamparará, porquanto é Deus misericordioso, nem te destruirá, nem se esquecerá da aliança que jurou a teus pais (Dt 4:29-31).

Daniel busca a Deus; confessa o seu pecado e o do seu povo; admite que fizeram mal, que não obedeceram a Deus; e aceita o castigo, que considera justo: Por isso, o SENHOR cuidou em trazer sobre nós o mal, e o fez vir sobre nós; pois justo é o SENHOR, nosso Deus, em todas as suas obras, que fez, pois não obedecemos à sua voz (Dn 9:14).

A oração que Daniel fez (Dn 9:3-19) é uma oração que está em conformidade com Levítico 26:40-43:

Mas se confessarem a sua iniquidade, e a iniquidade de seus pais, na infidelidade que cometeram contra mim; como também que andaram contrariamente para comigo, pelo que também fui contrário a eles, e os fiz entrar na terra dos seus inimigos;

Se o seu coração incircunciso se humilhar, e tomarem eles por bem o castigo da sua iniquidade, então me lembrarei da minha aliança com Jacob, e também da minha aliança com Isaque, e também da minha aliança com Abraão, e da terra me lembrarei.

Mas a terra na sua assolação, deixada por eles, folgará nos seus sábados; e tomarão eles por bem o castigo da sua iniquidade, visto que rejeitaram os meus juízos e a sua alma se aborreceu dos meus estatutos.

Mesmo assim, estando eles na terra dos seus inimigos, não os rejeitarei nem me aborrecerei deles, para consumi-los e invalidar a minha aliança com eles, porque eu sou o SENHOR seu Deus. Antes por amor deles me lembrarei da aliança com os seus antepassados, que tirei do Egipto à vista das nações, para lhes ser por Deus: Eu sou o SENHOR (Lv 26:40-45).

Este tipo de oração é chamado uma oração Todah[1], e é um pré-requisito para Deus renovar a sua aliança e restaurar as bênçãos: Então me lembrarei da minha aliança.
É à aliança que Daniel faz apelo no princípio da sua oração: Ah! Senhor! Deus grande e temível, que guardas a aliança e a misericórdia para com os que te amam e guardam os teus mandamentos (Dn 9:4).

A aliança é o cerne da oração de Daniel, porque são as alianças que regem o relacionamento entre Deus e os homens. Era a aliança que fez de Israel povo peculiar de Deus de entre todos os povos (Ex 19:5). Era pela aliança que Deus era o seu Senhor e habitava no meio deles.

Mas é Deus, como Criador e Senhor, que estabelece os termos e condições da aliança. Todas as alianças de Deus contêm uma promessa, mas também contêm mandamentos. Uma aliança pressupõe lealdade e fidelidade de ambas as partes. Deus cumpre a sua promessa; o homem obedece aos mandamentos.

Efésios 2:12 fala das alianças da promessa. Qual é a promessa? A promessa foi dada, logo após a queda do homem, em Génesis 3:15. É a promessa de um Redentor. A promessa é garantida através da fidelidade e obediência às condições (mandamentos) da aliança.

Basicamente, há apenas duas alianças: a aliança com Adão e a aliança com Cristo, o segundo Adão. A promessa era: Tenha ele domínio (Gn 1:26). E o mandamento era cultivar e guardar o jardim, onde estava uma árvore da qual não podia comer (Gn 2:15-17). Mas o primeiro homem falhou em guardar a santidade do jardim, deixando entrar a corrupção. Não foi fiel à aliança. A quebra da aliança pelo primeiro homem afetou toda a humanidade. O segundo Adão veio para reconquistar o que o primeiro perdeu. A vinda e vitória do segundo Adão é a promessa contida em Génesis 3:15. Todas as alianças posteriores, com os patriarcas e com a nação de Israel, foram feitas para assegurar a realização da promessa, que foi cumprida por Jesus, o segundo Adão.

A Abraão, Deus prometeu que na sua descendência/semente estaria a bênção para todas as nações da terra (isto é: toda a humanidade afetada pelo pecado de Adão). Bênção é o oposto da maldição a que a criação ficou sujeita depois do pecado de Adão. Bênção é a restauração das condições do Éden. A promessa feita por Deus a Abraão ficou segura pela fé. Abraão creu e isto lhe foi imputado como justiça.

É a aliança com Abraão que estabeleceu os fundamentos de Israel.

A aliança do Sinai, que veio muito tempo depois, estabeleceu Israel como reino de sacerdotes e nação santa (Ex 19:6). Enquanto propriedade particular e povo sacerdotal de Deus, Israel devia dar o exemplo, refletir o nome de Deus, ser o modelo para as outras nações (Dt 28: 9-10; 2 Sm 7:23). Isto implicava a obediência e fidelidade a determinadas regras e condições. Estas condições estavam estipuladas nos mandamentos da Lei (de Moisés). Obediência trazia bênção, desobediência maldição. As bênçãos refletem a condição ideal do Éden.

Na aliança do Sinai, o sumo-sacerdote, como representante do povo, era o “segundo outorgante” da aliança, uma figura de Cristo com quem a última (nova) aliança havia de ser feita. Mas, à semelhança de Adão, os sacerdotes falharam na sua missão de guardar a santidade do santuário e do povo. O copo do pecado transbordou no tempo dos filhos de Eli (1 Sm 2:12-36). As abominações cometidas por eles no tabernáculo e no serviço do Senhor fizeram com que a arca fosse tomada pelos filisteus (1 Sm 4). O próprio Deus foi como que em cativeiro.

A incapacidade de Israel cumprir a lei obrigava a que se renovasse constantemente a aliança. O homem podia não ser fiel, mas Deus é fiel e cumpre a sua promessa. Assim, quando Israel quebrava a aliança, a aliança era renovada com o “remanescente fiel”.

A aliança de Deus com Israel foi renovada na pessoa de David, homem segundo o coração de Deus (2 Sm 7). Porém, também os descendentes de David no trono de Israel, a começar com Salomão, quebraram a lei de Deus. Do último rei (legal) Joaquim/Jeconias, o Senhor disse: Registai este como se não tivera filhos; homem que não prosperará nos seus dias, e nenhum dos seus filhos prosperará, para se assentar no trono de David, e ainda reinar em Judá (Jr 22:30). Mais nenhum descendente de Joaquim se sentaria no trono de Israel (Zedequias não era filho, mas tio de Joaquim, e só obteve o trono porque Nabucodonosor o colocou lá).

Israel falhara na sua missão sacerdotal. Acumulou pecado sobre pecado e as piores maldições acabaram por cair sobre a nação. Deus usou Nabucodonosor para executar os seus juízos. Ele invadiu Jerusalém, queimou-a e arrasou o templo. O povo foi levado para o exílio e espalhado pelas nações.

Esta era a situação dramática em que Daniel e seu povo se encontravam. Estava agora tudo perdido? O que era feito da aliança? O que era feito das promessas de Deus? Daniel percebeu que era necessário outra vez renovar a aliança, e é disso que ele lembra ao Senhor.

Anos antes, ainda Nabucodonosor estava às portas de Jerusalém, Deus prometera uma nova aliança. Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá … Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei … não ensinará jamais cada um ao seu próximo … porque todos me conhecerão (Jr 31:31-34). A referência a este versículo em Hb 8:8-11 indica que esta promessa aponta para a nova aliança em Jesus. Perdoarei as suas iniquidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei (Jr 31:34) aponta para a cruz.

Esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias (Jr 31:33; Hb 10:16), isto é, depois dos dias que Israel passaria debaixo da governação gentia, que duraria quatro impérios (Babilónia, Pérsia, Grécia e Roma).

A oração de Daniel era para que Deus se lembrasse da sua promessa, incluída na nova aliança que vinha sendo anunciada ainda antes da queda de Jerusalém às mãos da Babilónia. A profecia designada como a das “Setenta Semanas” é a resposta de Deus ao pedido de Daniel e à oração Todah de confissão e arrependimento. A mensagem do anjo é a confirmação da promessa da Nova Aliança, na vinda do Ungido para cumprir a bênção de Abraão, expiando o pecado e trazendo a justiça eterna. A profecia confirma a renovação da aliança por mais 70 semanas (490 anos) até à manifestação do Ungido, que confirmará a aliança na sua morte, no seu sangue.


A cidade e o santuário

Depois de apelar à aliança, confessar o pecado do seu povo e reconhecer a justiça de Deus, Daniel intercede especificamente pela cidade de Jerusalém e pela casa de Deus que estavam em ruínas à vista de todas as nações em redor.

Aparte-se a tua ira e o teu furor da tua cidade de Jerusalém, do teu santo monte … e sobre o teu santuário assolado faz resplandecer o teu rosto (Dn 9:16-17).

A desolação de Jerusalém era motivo de profunda tristeza (ver Lamentações de Jeremias). Qual era o significado e a importância da cidade e do templo para Israel, por estes estarem no âmago das preocupações de Daniel?
Quando Israel saiu do Egipto, Deus disse: E me farão um santuário para que eu possa habitar no meio deles (Ex 25:8), e mostrou a Moisés o modelo do tabernáculo a ser levantado. O tabernáculo era erguido no meio do acampamento, no meio do povo, e ia adiante de Israel em todas as suas caminhadas.

O tabernáculo, e mais tarde o templo, era a habitação de Deus no meio do seu povo. Não que Deus morasse em casas construídas por homens (1Rs 8:27), mas o templo simbolizava a presença de Deus, como testemunho da aliança entre Ele e o povo.

No tempo dos Juízes, quando os filhos de Eli conspurcaram o templo e fizeram ofensa ao nome do Senhor do templo (1Sm 2), vieram os filisteus contra Israel. Israel perdeu a batalha e os filisteus tomaram a arca, que foi para o cativeiro. Deus sobremodo se aborreceu de Israel. Por isso abandonou o tabernáculo de Silo, a tenda da sua morada entre os homens, e passou a arca da sua força ao cativeiro, e a sua glória, à mão do adversário (Sl 78:59-60). Deus é Santo. Não havendo santidade na casa da sua habitação, Deus não podia lá ficar, para não deixar mal o seu nome. A arca, o objeto central e mais importante no Santo dos Santos, representava o trono de Deus[2].

Depois daquele episódio, a arca da presença de Deus nunca mais voltou ao tabernáculo. Mais tarde, não sabemos quando, o tabernáculo foi destruído (Jr 7:12-14; 26:6, 9). Passados sete meses entre os filisteus, a arca foi devolvida a Israel e ficou na casa de Abinadabe durante muitos anos, até David a querer levar para Jerusalém. Depois da tentativa falhada de David, a arca ainda ficou três meses em casa de Obede-Edom antes de ser introduzida na tenda que armou para ela em Jerusalém (2Sm 6).

Quando Israel passasse o Jordão e entrasse na terra prometida, tinham que buscar o lugar que o Senhor escolheria para ali pôr o seu nome e a sua habitação (Dt 12:5-14). A aliança renovada com David implicava uma nova casa, uma nova habitação, como testemunho da aliança e símbolo da presença de Deus. Esta casa havia de estar em Jerusalém e seria o lugar onde ofereceriam os holocaustos, sacrifícios, dízimos e ofertas. Lá comereis perante o Senhor vosso Deus, e vos alegrareis em tudo em que puserdes a vossa mão, vós e as vossas casas, no que vos tiver abençoado o Senhor vosso Deus (Dt 12:7).

Mas este lugar só existiria depois de habitarem na terra e terem alcançado descanso dos seus inimigos (Dt 12:10-12). Por isso o templo não foi edificado por David (embora este preparasse o plano e todos os materiais), mas por Salomão. Foi construído quando a terra estava em descanso (1 Rs 8:56). David conquistara toda a terra conforme prometido a Abraão e Josué, até ao Eufrates (Gn 15:18; Dt 1:17; 11:24; Js 1:4; 2 Cr 9:26). Assim o templo está associado, não somente com a presença de Deus no meio do seu povo, mas também com a posse da terra. Passareis o Jordão, e habitareis na terra que vos fará herdar o Senhor vosso Deus; e vos dará descanso de todos os vossos inimigos em redor, e morareis seguros. Então haverá um lugar que escolherá o Senhor vosso Deus, para ali fazer habitar o seu nome (Dt 12:10-11).

E o Senhor avisou a Salomão: Se vos desviardes, e deixardes os meus estatutos e os meus mandamentos, que vos prescrevi, e fordes e servirdes a outros deuses, e os adorardes, então vos arrancarei da minha terra que vos dei, e esta casa, que santifiquei ao meu nome, lançarei longe da minha presença e a tornarei em provérbio e motejo entre todos os povos (2 Cr 7:19-20; 1 Rs 9:6-8).

Deste modo podemos ligar o templo ao sábado. O sábado (descanso) era o sinal da aliança através do qual era provada a fidelidade do vassalo. Não guardar o sábado é não respeitar o repouso. O templo é construído a seguir ao repouso. Portanto, sem repouso, não há templo/presença de Deus. Israel era constantemente acusado de não guardar o sábado. E foi a falta de guardar o sábado que lhes valeu 70 anos de cativeiro.

Os reis da linhagem de Salomão não foram fiéis à aliança davídica. Pouco a pouco foram perdendo os domínios conquistados por David. Pouco a pouco os tesouros do templo foram entregues ao inimigo, como tributo ou pagamento de proteção, porque não confiavam na força do seu Deus. Também os sacerdotes não foram fiéis à aliança. Ezequiel (capítulos 8 a 11) descreve como os próprios sacerdotes cometiam abominações no meio do templo e como, em consequência disto, a glória do Senhor se retirou do santuário, saiu do templo e, a seguir, saiu da cidade. A glória do Senhor passou a estar com os exilados na Babilónia (Ez 1:28; 3:23), onde Deus tinha enviado o seu povo para preservação da vida.

Era grande vergonha para Israel, Deus abandonar e destruir o seu templo à vista de todas as nações (Dn 9:16). Era vital para Israel que Deus retirasse a sua ira de sobre a cidade. Significava misericórdia e benevolência de Deus para com Israel. Embora a glória de Deus estivesse com o seu povo no exílio, eles não deixavam de ver Jerusalém como o lugar que Deus escolheu para ali fazer habitar o seu nome, porque a tua cidade e o teu povo são chamados pelo teu nome (Dn 9:19).

Por isso, a cidade e o templo constituíam a grande preocupação de Daniel.

Estando Daniel ainda a orar, apareceu-lhe o anjo Gabriel. As palavras faladas pelo anjo são a resposta à oração de súplicas de Daniel.

No princípio das tuas súplicas, saiu a ordem, e eu vim, para to declarar, porque és mui amado, considera, pois, a coisa e entende a visão (Dn 9:23).

No princípio das suas súplicas pela restauração da cidade, do templo e do povo, saíra a palavra (dabhar, traduzido ordem) de Deus. Saíra a ordem (dabhar) para restaurar e edificar Jerusalém (v.25). E o anjo fora enviado para lho explicar. A resposta do anjo tratará, portanto, da restauração acerca da qual Daniel tinha estado a orar.

Através das palavras do anjo, Deus deu descanso e esperança a Daniel, tal como aconteceu com Jeremias anos antes, quando Deus lhe dissera para efetuar a escritura de compra de um terreno na hora em que a cidade estava a ser sitiada por Nabucodonosor. Eis que eu os congregarei de todas as terras, para onde os lancei na minha ira, no meu furor e na minha grande indignação; tornarei a trazê-los a este lugar, e farei que nele habitem seguramente (Jr 32:37). Agora Deus responde a Daniel, confirmando que o seu povo voltaria à sua terra e que o templo e a cidade seriam reedificados, embora isto acontecesse em tempos angustiosos (Dn 9:25).

Sabe, e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Ungido, ao Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas: as praças e as circunvalações se reedificarão, mas em tempos angustiosos (Dn 9:25).




[1] Desenvolvimento da oração Todah em Meredith G. Kline. The Covenant of the Seventieth Week. The Law and the Prophets. (1974), pp. 452-469.
[2] Artigo de Peter J. Leithart, The Holy City Revisited, Biblical Horizons nº 59 (1994).

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