A profecia (Dn 9:23-27) veio em resposta à
oração de Daniel, no primeiro ano de Dario o medo (que numa mensagem anterior
identificámos como sendo a mesma pessoa que Ciro), quando ele recordou os
termos em que Jeremias escrevera aos exilados no princípio do reinado de
Zedequias, a seguir à deportação do rei Joaquim:
Logo que se cumprirem para Babilónia setenta anos,
atentarei para vós e cumprirei para convosco a minha boa palavra, tornando a
trazer-vos para este lugar […] Então me
invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso
coração. Serei achado de vós, diz o Senhor, e farei mudar a vossa sorte;
congregar-vos-ei de todas as nações, e de todos os lugares para onde vos
lancei, diz o Senhor, e tornarei a trazer-vos ao lugar donde vos mandei para o
exílio (Jr 29:10-14).
A
oração da aliança
Israel estava no exílio porque quebrara a aliança
com Deus. O que lhe sobreveio estava previsto nas maldições da lei (Lv 26; Dt
28:15-68). Daniel confessa-o: Sim, todo o
Israel transgrediu a tua lei, desviando-se, para não obedecer à tua voz; por
isso a maldição e imprecações que estão escritas na lei de Moisés, servo de
Deus, se derramaram sobre nós; porque temos pecado contra ele (Dn 9:11).O último e maior castigo era perecerem da terra e serem espalhados pelas nações, quando o pecado se tivesse acumulado do tal maneira que mais nada havia a fazer. Mas não importava para onde tivessem sido desterrados: de lá buscareis ao Senhor teu Deus, e o acharás, quando o buscares de todo o teu coração e de toda a tua alma. Quando estiveres em angústia, e todas estas coisas te sobrevierem nos últimos dias, e te voltares para o Senhor teu Deus, e lhe atenderes a voz, então o Senhor teu Deus não te desamparará, porquanto é Deus misericordioso, nem te destruirá, nem se esquecerá da aliança que jurou a teus pais (Dt 4:29-31).
Daniel busca a Deus; confessa o seu pecado e o do seu povo; admite que fizeram mal, que não obedeceram a Deus; e aceita o castigo, que considera justo: Por isso, o SENHOR cuidou em trazer sobre nós o mal, e o fez vir sobre nós; pois justo é o SENHOR, nosso Deus, em todas as suas obras, que fez, pois não obedecemos à sua voz (Dn 9:14).
A oração que Daniel fez (Dn 9:3-19) é uma oração que está em conformidade com Levítico 26:40-43:
Mas se confessarem a sua iniquidade, e a iniquidade de seus pais, na
infidelidade que cometeram contra mim; como também que andaram contrariamente
para comigo, pelo que também fui contrário a eles, e os fiz entrar na terra dos
seus inimigos;
Se
o seu coração incircunciso se humilhar, e tomarem eles por bem o castigo da sua
iniquidade, então me
lembrarei da minha aliança com Jacob, e também da minha aliança com Isaque,
e também da minha aliança com Abraão, e da terra me lembrarei.
Mas a terra na sua assolação,
deixada por eles, folgará nos seus sábados; e
tomarão eles por bem o castigo da sua iniquidade, visto que rejeitaram os
meus juízos e a sua alma se aborreceu dos meus estatutos.
Mesmo assim, estando eles na
terra dos seus inimigos, não os rejeitarei nem me aborrecerei deles, para
consumi-los e invalidar a minha aliança com eles, porque eu sou o SENHOR seu
Deus. Antes por amor deles me lembrarei da aliança com os seus antepassados,
que tirei do Egipto à vista das nações, para lhes ser por Deus: Eu sou o SENHOR
(Lv 26:40-45).
Este tipo de oração é chamado uma oração Todah[1],
e é um pré-requisito para Deus renovar a sua aliança e restaurar as bênçãos: Então me lembrarei da minha aliança.
É à aliança que Daniel faz apelo no princípio da
sua oração: Ah! Senhor! Deus grande e
temível, que guardas a aliança e a misericórdia para com os que te amam e
guardam os teus mandamentos (Dn 9:4). A aliança é o cerne da oração de Daniel, porque são as alianças que regem o relacionamento entre Deus e os homens. Era a aliança que fez de Israel povo peculiar de Deus de entre todos os povos (Ex 19:5). Era pela aliança que Deus era o seu Senhor e habitava no meio deles.
Mas é Deus, como Criador e Senhor, que estabelece
os termos e condições da aliança. Todas as alianças de Deus contêm uma
promessa, mas também contêm mandamentos. Uma aliança pressupõe lealdade e
fidelidade de ambas as partes. Deus cumpre a sua promessa; o homem obedece aos
mandamentos.
Efésios 2:12 fala das alianças da promessa. Qual é a promessa? A promessa foi dada, logo
após a queda do homem, em Génesis 3:15. É a promessa de um Redentor. A promessa
é garantida através da fidelidade e obediência às condições (mandamentos) da
aliança.
Basicamente, há apenas duas alianças: a aliança com
Adão e a aliança com Cristo, o segundo Adão. A promessa era: Tenha ele domínio (Gn 1:26). E o
mandamento era cultivar e guardar o jardim, onde estava uma árvore da qual não
podia comer (Gn 2:15-17). Mas o
primeiro homem falhou em guardar a santidade do jardim, deixando entrar a
corrupção. Não foi fiel à aliança. A quebra da aliança pelo primeiro homem afetou
toda a humanidade. O segundo Adão veio para reconquistar o que o primeiro
perdeu. A vinda e vitória do segundo Adão é a promessa contida em Génesis 3:15.
Todas as alianças posteriores, com os patriarcas e com a nação de Israel, foram
feitas para assegurar a realização da promessa, que foi cumprida por Jesus, o
segundo Adão.
A Abraão, Deus prometeu que na sua
descendência/semente estaria a bênção para todas as nações da terra (isto é:
toda a humanidade afetada pelo pecado de Adão). Bênção é o oposto da maldição a
que a criação ficou sujeita depois do pecado de Adão. Bênção é a restauração
das condições do Éden. A promessa feita por Deus a Abraão ficou segura pela fé.
Abraão creu e isto lhe foi imputado como justiça.
É a aliança com Abraão que estabeleceu os fundamentos de Israel.
A aliança do Sinai, que veio muito tempo depois,
estabeleceu Israel como reino de sacerdotes e nação santa (Ex 19:6). Enquanto propriedade particular
e povo sacerdotal de Deus, Israel devia dar o exemplo, refletir o nome de Deus,
ser o modelo para as outras nações (Dt 28: 9-10; 2 Sm 7:23). Isto implicava a
obediência e fidelidade a determinadas regras e condições. Estas condições
estavam estipuladas nos mandamentos da Lei (de Moisés). Obediência trazia
bênção, desobediência maldição. As bênçãos refletem a condição ideal do Éden.
Na
aliança do Sinai, o sumo-sacerdote, como representante do povo, era o “segundo
outorgante” da aliança, uma figura de Cristo com quem a última (nova) aliança
havia de ser feita. Mas, à semelhança de Adão, os sacerdotes falharam na sua
missão de guardar a santidade do santuário e do povo. O copo do pecado
transbordou no tempo dos filhos de Eli (1 Sm 2:12-36). As abominações cometidas
por eles no tabernáculo e no serviço do Senhor fizeram com que a arca fosse
tomada pelos filisteus (1 Sm 4). O próprio Deus foi como que em cativeiro.
A
incapacidade de Israel cumprir a lei obrigava a que se renovasse constantemente
a aliança. O homem podia não ser fiel, mas Deus é fiel e cumpre a sua promessa.
Assim, quando Israel quebrava a aliança, a aliança era renovada com o
“remanescente fiel”.
A
aliança de Deus com Israel foi renovada na pessoa de David, homem segundo o
coração de Deus (2 Sm 7). Porém, também os descendentes de David no trono de
Israel, a começar com Salomão, quebraram a lei de Deus. Do último rei (legal)
Joaquim/Jeconias, o Senhor disse: Registai
este como se não tivera filhos; homem que não prosperará nos seus dias, e
nenhum dos seus filhos prosperará, para se assentar no trono de David, e ainda
reinar em Judá (Jr 22:30). Mais nenhum descendente de Joaquim se sentaria
no trono de Israel (Zedequias não era filho, mas tio de Joaquim, e só obteve o
trono porque Nabucodonosor o colocou lá).
Israel
falhara na sua missão sacerdotal. Acumulou pecado sobre pecado e as piores
maldições acabaram por cair sobre a nação. Deus usou Nabucodonosor para
executar os seus juízos. Ele invadiu Jerusalém, queimou-a e arrasou o templo. O
povo foi levado para o exílio e espalhado pelas nações.
Esta
era a situação dramática em
que Daniel e seu povo se encontravam. Estava agora tudo
perdido? O que era feito da aliança? O que era feito das promessas de Deus?
Daniel percebeu que era necessário outra vez renovar a aliança, e é disso que
ele lembra ao Senhor.
Anos
antes, ainda Nabucodonosor estava às portas de Jerusalém, Deus prometera uma
nova aliança. Eis aí vêm dias, diz o
Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá …
Na mente lhes imprimirei as minhas leis,
também no coração lhas inscreverei … não ensinará jamais cada um ao seu próximo
… porque todos me conhecerão (Jr 31:31-34). A referência a este versículo
em Hb 8:8-11 indica que esta promessa aponta para a nova aliança em Jesus. Perdoarei
as suas iniquidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei (Jr 31:34) aponta
para a cruz.
Esta é a aliança que farei com eles, depois
daqueles dias (Jr 31:33; Hb
10:16), isto é, depois dos dias que Israel passaria debaixo da governação
gentia, que duraria quatro impérios (Babilónia, Pérsia, Grécia e Roma).
A
oração de Daniel era para que Deus se lembrasse da sua promessa, incluída na
nova aliança que vinha sendo anunciada ainda antes da queda de Jerusalém às
mãos da Babilónia. A profecia designada como a das “Setenta Semanas” é a
resposta de Deus ao pedido de Daniel e à oração Todah de confissão e arrependimento. A mensagem do anjo é a
confirmação da promessa da Nova Aliança, na vinda do Ungido para cumprir a
bênção de Abraão, expiando o pecado e trazendo a justiça eterna. A profecia
confirma a renovação da aliança por mais 70 semanas (490 anos) até à
manifestação do Ungido, que confirmará a aliança na sua morte, no seu sangue.
A cidade e o santuário
Depois
de apelar à aliança, confessar o pecado do seu povo e reconhecer a justiça de
Deus, Daniel intercede especificamente pela cidade de Jerusalém e pela casa de
Deus que estavam em ruínas à vista de todas as nações em redor.
Aparte-se
a tua ira e o teu furor da tua cidade de Jerusalém, do teu santo monte …
e sobre o teu santuário assolado faz resplandecer o teu rosto (Dn
9:16-17).
A
desolação de Jerusalém era motivo de profunda tristeza (ver Lamentações de
Jeremias). Qual era o significado e a importância da cidade e do templo para
Israel, por estes estarem no âmago das preocupações de Daniel?
Quando
Israel saiu do Egipto, Deus disse: E me
farão um santuário para que eu possa habitar no meio deles (Ex 25:8), e
mostrou a Moisés o modelo do tabernáculo a ser levantado. O tabernáculo era
erguido no meio do acampamento, no meio do povo, e ia adiante de Israel em
todas as suas caminhadas.
O
tabernáculo, e mais tarde o templo, era a habitação de Deus no meio do seu
povo. Não que Deus morasse em casas construídas por homens (1Rs 8:27), mas o
templo simbolizava a presença de Deus, como testemunho da aliança entre Ele e o
povo.
No
tempo dos Juízes, quando os filhos de Eli conspurcaram o templo e fizeram
ofensa ao nome do Senhor do templo (1Sm 2), vieram os filisteus contra Israel.
Israel perdeu a batalha e os filisteus tomaram a arca, que foi para o
cativeiro. Deus sobremodo se aborreceu de
Israel. Por isso abandonou o tabernáculo de Silo, a tenda da sua morada entre
os homens, e passou a arca da sua força ao cativeiro, e a sua glória, à mão do
adversário (Sl 78:59-60). Deus é Santo. Não havendo santidade na casa da
sua habitação, Deus não podia lá ficar, para não deixar mal o seu nome. A arca,
o objeto central e mais importante no Santo dos Santos, representava o trono de
Deus[2].
Depois
daquele episódio, a arca da presença de Deus nunca mais voltou ao tabernáculo.
Mais tarde, não sabemos quando, o tabernáculo foi destruído (Jr 7:12-14; 26:6,
9). Passados sete meses entre os filisteus, a arca foi devolvida a Israel e
ficou na casa de Abinadabe durante muitos anos, até David a querer levar para
Jerusalém. Depois da tentativa falhada de David, a arca ainda ficou três meses
em casa de Obede-Edom antes de ser introduzida na tenda que armou para ela em
Jerusalém (2Sm 6).
Quando
Israel passasse o Jordão e entrasse na terra prometida, tinham que buscar o
lugar que o Senhor escolheria para ali pôr o seu nome e a sua habitação (Dt
12:5-14). A aliança renovada com David implicava uma nova casa, uma nova
habitação, como testemunho da aliança e símbolo da presença de Deus. Esta casa havia
de estar em Jerusalém e seria o lugar onde ofereceriam os holocaustos,
sacrifícios, dízimos e ofertas. Lá
comereis perante o Senhor vosso Deus, e vos alegrareis em tudo em que puserdes
a vossa mão, vós e as vossas casas, no que vos tiver abençoado o Senhor vosso
Deus (Dt 12:7).
Mas
este lugar só existiria depois de habitarem na terra e terem alcançado descanso
dos seus inimigos (Dt 12:10-12). Por isso o templo não foi edificado por David
(embora este preparasse o plano e todos os materiais), mas por Salomão. Foi
construído quando a terra estava em descanso (1 Rs 8:56). David conquistara
toda a terra conforme prometido a Abraão e Josué, até ao Eufrates (Gn 15:18; Dt
1:17; 11:24; Js 1:4; 2 Cr 9:26). Assim o templo está associado, não somente com
a presença de Deus no meio do seu povo, mas também com a posse da terra. Passareis o Jordão, e habitareis na terra
que vos fará herdar o Senhor vosso Deus; e vos dará descanso de todos os vossos
inimigos em redor, e morareis seguros. Então haverá um lugar que escolherá
o Senhor vosso Deus, para ali fazer habitar o seu nome (Dt 12:10-11).
E
o Senhor avisou a Salomão: Se vos
desviardes, e deixardes os meus estatutos e os meus mandamentos, que vos
prescrevi, e fordes e servirdes a outros deuses, e os adorardes, então vos
arrancarei da minha terra que vos dei, e esta casa, que santifiquei ao meu
nome, lançarei longe da minha presença e a tornarei em provérbio e motejo entre
todos os povos (2 Cr 7:19-20; 1 Rs 9:6-8).
Deste
modo podemos ligar o templo ao sábado. O sábado (descanso) era o sinal da
aliança através do qual era provada a fidelidade do vassalo. Não guardar o
sábado é não respeitar o repouso. O templo é construído a seguir ao repouso.
Portanto, sem repouso, não há templo/presença de Deus. Israel era
constantemente acusado de não guardar o sábado. E foi a falta de guardar o
sábado que lhes valeu 70 anos de cativeiro.
Os
reis da linhagem de Salomão não foram fiéis à aliança davídica. Pouco a pouco
foram perdendo os domínios conquistados por David. Pouco a pouco os tesouros do
templo foram entregues ao inimigo, como tributo ou pagamento de proteção,
porque não confiavam na força do seu Deus. Também os sacerdotes não foram fiéis
à aliança. Ezequiel (capítulos 8
a 11) descreve como os próprios sacerdotes cometiam
abominações no meio do templo e como, em consequência disto, a glória do Senhor
se retirou do santuário, saiu do templo e, a seguir, saiu da cidade. A glória
do Senhor passou a estar com os exilados na Babilónia (Ez 1:28; 3:23), onde
Deus tinha enviado o seu povo para preservação da vida.
Era
grande vergonha para Israel, Deus abandonar e destruir o seu templo à vista de
todas as nações (Dn 9:16). Era vital para Israel que Deus retirasse a sua ira
de sobre a cidade. Significava misericórdia e benevolência de Deus para com
Israel. Embora a glória de Deus estivesse com o seu povo no exílio, eles não
deixavam de ver Jerusalém como o lugar que Deus escolheu para ali fazer habitar
o seu nome, porque a tua cidade e o teu
povo são chamados pelo teu nome (Dn 9:19).
Por isso, a cidade e o templo constituíam a grande preocupação de Daniel.
Estando
Daniel ainda a orar, apareceu-lhe o anjo Gabriel. As palavras faladas pelo anjo
são a resposta à oração de súplicas de Daniel.
No princípio das tuas súplicas, saiu a ordem, e eu vim, para to declarar, porque és mui amado, considera, pois, a coisa e entende a visão (Dn 9:23).
No
princípio das suas súplicas pela restauração da cidade, do templo e do povo,
saíra a palavra (dabhar, traduzido
ordem) de Deus. Saíra a ordem (dabhar)
para restaurar e edificar Jerusalém (v.25). E o anjo fora enviado para lho
explicar. A resposta do anjo tratará, portanto, da restauração acerca da qual
Daniel tinha estado a orar.
Através das palavras do anjo, Deus deu descanso
e esperança a Daniel, tal como aconteceu com Jeremias anos antes, quando Deus
lhe dissera para efetuar a escritura de compra de um terreno na hora em que a
cidade estava a ser sitiada por Nabucodonosor. Eis que eu os congregarei de todas as terras, para onde os lancei na
minha ira, no meu furor e na minha grande indignação; tornarei a trazê-los a
este lugar, e farei que nele habitem seguramente (Jr 32:37). Agora Deus
responde a Daniel, confirmando que o seu povo voltaria à sua terra e que o
templo e a cidade seriam reedificados, embora isto acontecesse em tempos
angustiosos (Dn 9:25).
Sabe,
e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém, até
ao Ungido, ao Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas: as praças e as
circunvalações se reedificarão, mas em tempos angustiosos
(Dn 9:25).
Sem comentários:
Enviar um comentário