27/02/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 1)

 

O livro de Génesis é estruturado em volta da fórmula hebraica “elleh TOLEDOT”, traduzida na maior parte dos casos “estas são as gerações de”. A fórmula aparece 10 vezes em Génesis (na realidade, 11 vezes, mas duas tratam das gerações de Esaú): Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2.

Não é, porém, claro, nem consensual, o que TOLEDOT significa exatamente. Deriva do verbo YALAD, que significa: dar à luz, nascer, engendrar, gerar, conduzindo à tradução clássica de “gerações”. Mas, porque nem sempre a palavra “gerações” parece ser a mais adequada ao contexto, algumas traduções modernas usam por vezes outras palavras. Por exemplo:

Gn 2:4 – Esta é a génese/origem/história (toledot) dos céus e da terra

Gn 6:9 – Esta é a história (toledot) de Noé.

Gn 10:1 – Esta é a posteridade/descendência (toledot) dos filhos de Noé

É geralmente admitido que “elleh toledot” é um indicador estrutural que divide o livro em secções, e que funciona como fórmula introdutória – uma espécie de título de capítulo –, e/ou como fórmula de transição, uma maneira de conectar uma secção à outra.

Ainda outra teoria designa a fórmula como uma subscrição ou resumo do que veio antes. Em 1936, Wiseman[1] sugeriu que as ocorrências de TOLEDOT em Génesis eram, em todos os casos, cólofones. As fontes dos textos de Génesis seriam 11 tabuletas de barro, cada uma delas terminando com um cólofon assinalando a conclusão da unidade. Wiseman observara que as tabuletas mesopotâmicas tinham uma espécie de “ficha técnica”, uma assinatura, que identificava o autor da tabuleta através de uma árvore ou referência genealógica colocada no final do texto, um cólofon. No caso de múltiplas tabuletas sequenciais, havia uma frase que conectava uma tabuleta com a outra a seguir. Muitos destes registos eram histórias sobre origens familiares. Wiseman achou ver uma semelhança com as secções do livro de Génesis. O texto que precede a frase “esta é a genealogia de …” teria informação sobre os eventos que o homem nomeado nesta frase teria conhecido. Ou seja, o livro de Génesis seria o resultado da compilação e redação por Moisés de uma sequência de tabuletas, cada uma escrita por uma testemunha ocular dos eventos nelas descritos.

Para uma abordagem mais pormenorizada sobre a Hipótese de Wiseman, e a divisão de Génesis com a fórmula TOLEDOT como cólofon, remeto à mensagem Quem escreveu Génesis. Na altura, considerei uma possível explicação, mas após nova análise trago aqui uma explicação que me parece mais adequada.

Faço referência a esta teoria porque ela apresenta alguns problemas e porque nos permite contrastá-la com a leitura mais natural da fórmula ELLEH TOLEDOT (estas [são as] TOLEDOT) [2] como introdutória e, simultaneamente, de transição.

Há cinco casos em que a fórmula claramente precede uma lista de descendentes (não podendo nunca ser visto como um cólofon): 5:1 (Adão), 10:1 (os filhos de Noé); 11:10 (Sem); 25:12 (Ismael); 36:1 (Esaú). Fora do livro de Génesis, as duas ocorrências com o mesmo padrão apoia a leitura como título: Num 3:1 (as gerações de Aarão e de Moisés) e Ruth 4:18 (as gerações de Perez, o filho de Judá, até David).

Na teoria de Wiseman, a primeira vez que aparece a expressão ELLEH TOLEDOT, as TOLEDOT dos céus e da terra (Gn 2:4) referem-se à história da criação na primeira secção de Génesis (1:1 a 2:4a), e as TOLEDOT de Adão encerram outros pormenores da criação, a criação da mulher, a queda, as maldições, a promessa de um salvador e a história de Caim (Gn 2:4b a 5:1a). E toda a descendência de Adão até Noé está na história/gerações de Noé (de 5:1 a 6:9). Se, eventualmente, 2:4a, 5:1 e 6:9 possam ser compreendidos como cólofon, referindo-se à narrativa que precede, noutros casos, tal interpretação não é lógica. Por exemplo: inscrever a história de Abraão (11:28 a 25:11) sob a assinatura de Ismael, as “gerações de Ismael” (25:2), não faz sentido de todo, historicamente. Seria mais lógico se as TOLEDOT de Isaac fechassem a história de Abraão. Mas, então, as TOLEDOT de Isaac são o registo da genealogia de Ismael? Os apoiantes da teoria do cólofon tentam dar a volta à dificuldade explicando que a secção sobre Ismael é uma subsecção nas “TOLEDOT de Isaac”. A informação sobre os filhos de Ismael terá sido dada a Isaac quando os dois irmãos se juntaram por ocasião do sepultamento de seu pai Abraão. Mas esta explicação não é coerente, porque a fórmula “as TOLEDOT de Ismael” precede a genealogia de Ismael e a leitura natural é de uma introdução à lista de descendentes. O mesmo problema levanta-se em relação às gerações de Esaú em 36:1.

Se a origem da palavra TOLEDOT vem do verbo YALAD, = gerar, a palavra TOLEDOT contem a ideia de sequência e consequência, o que resulta de algo, o que alguém produz ou gera. E aponta para frente e não para trás.

Por exemplo:

O livro das TOLEDOT de Adão (Gn 5:1) descreve, através dos seus descendentes, o que procedeu do primeiro homem, o que ele gerou. Adão foi criado à semelhança de Deus (5:1), mas gerou um filho à sua semelhança (5:3). O que procedeu da queda do primeiro homem terminou na corrupção geral do género humano e a decisão do Senhor de destruir o homem que criou e a vida animal. Mas restou um homem, Noé, que achou graça aos olhos do Senhor. Gn 6:8 faz a ligação com a secção seguinte.

Em Gn 6:9 começam as gerações (TOLEDOT) de Noé. Esta secção diz que Noé gerou três filhos, mas o foco da narrativa está em Noé e na preparação da arca, no dilúvio e na aliança que Deus faz com Noé e a sua semente depois do dilúvio. Antes de terminar com a morte de Noé (9:29), a secção finaliza com o que fizeram os filhos de Noé (9:20-27) e a maldição de Canaan, cujas consequências se manifestarão na secção seguinte (Gn 10:1 a 11:9).

Gn 10 apresenta o mundo pós-dilúvio através da descendência (TOLEDOT) dos filhos de Noé (Gn 10:1), que foram introduzidos no final da secção anterior. É um novo recomeço para a humanidade, com o renovado mandado de “frutificar, multiplicar e encher a terra” (9:1) cumprido através de Shem, Cam e Jafeth. A secção termina com a confusão de Babel; como Deus teve que intervir mais uma vez para desfazer os esforços da humanidade de desobedecer às Suas orientações, mantendo-se juntos num local em vez de encher a terra.

Até agora, já encontramos 4 secções TOLEDOT.

1)      As TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 a 4:26)

2)      O livro das TOLEDOT de Adão (5:1 a 6:8)

3)      As TOLEDOT de Noé (6:9 a 9:29)

4)      As TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 a 11:9)

Olhando para esta sequência, podemos concordar com Harbin que, num artigo recente [3], propõe uma tradução uniforme da fórmula ELLEH TOLEDOT. O uso repetido desta fórmula marca-a como um indicador estrutural, o que sugere um significado especializado e consistente, requerendo uma tradução uniforme. Como tal, Michael Harbin propõe especificamente traduzir ELLEH TOLEDOT como: [this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Assumindo que ELLEH TOLEDOT é, então, um título e expressão que faz a transição entre uma secção e a seguinte, observamos que a porção inicial de Génesis – o relato da criação (Gn 1:1 a 2:3) – não inicia com esta mesma fórmula mas serve como prefácio ou introdução ao livro. Afirma que Deus é o Criador de todo o universo (1:1), descreve em breves frases o processo da criação e termina com a avaliação da obra pelo próprio Deus – E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom (1:31), após o que Deus descansou no sétimo dia. Sem este prefácio, sem o Criador, não aconteceria mais nada. Não haveria história. E só o próprio Deus poderia ser o autor deste prefácio.

Isto ajuda-nos a compreender a estrutura TOLEDOT. Se Gn 1:1 a 2:3 é um prefácio, o resto do livro trata do que aconteceu depois. Deus criou um universo que era “muito bom”. E a primeira secção introduzida por ELLEH TOLEDOT (Gn 2:4 a 4:26) explica o que aconteceu a este universo “muito bom”.

Portanto, Gn 2:4, em vez da tradução “estas são as origens dos céus e da terra”, como que se referindo à secção anterior (teoria de Wiseman), parece adequado traduzir assim: ”o que foi feito dos céus e da terra que Deus criou”, introduzindo a narrativa que vai até 4:26. Primeiro, apresenta pormenores sobre alguns eventos do prefácio (a criação do jardim, do homem, da mulher). Depois vem a história da serpente e aconteceu que o homem, querendo ser autónomo, estragou tudo, desobedeceu a Deus, e recebeu as consequências da sua ação (3:14-24). E não só ele, mas toda a criação (v.17-18). “O que foi feito dos céus e da terra que o Senhor criou” e avaliou «muito bom», foi que o homem transgrediu o mandamento do Senhor e o Senhor lançou fora o homem do jardim do Éden. E segue-se a história de Caim e seus descendentes. O final da secção (Gn 4:25-26) fala de Seth, a semente que vai ocupar o lugar de Abel, é uma nota positiva que faz a transição com a secção seguinte: “então se começou a invocar o nome do Senhor”.

Na mensagem seguinte, vamos ver se a tradução proposta para ELLEH TOLEDOT - “o que foi feito de …” “o que procedeu de …” se aplica ao resto do livro de Génesis.



[1] P.J. Wiseman (18 - 19) era um oficial britânico estacionado no Médio Oriente, que se interessou pelas descobertas arqueológicas, embora não fosse formado em história ou arqueologia. Ficou intrigado pelo estilo particular em que eram redigidas centenas de tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia. Na sua opinião, estas continham a chave para a escrita original do livro de Génesis. Wiseman publicou o seu livro em 1936, que foi revisto e atualizado, em 1985, por seu filho Donald Wiseman, professor em assiriologia e diretor do British Museum, com o título “Ancient Records and the Structure of Genesis” (Nashville: Thomas Nelson, Inc., 1985).

[2] A terminação hebraica em OT é um plural feminino.

[3] Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233