O livro de Génesis é estruturado em volta da fórmula
hebraica “elleh TOLEDOT”, traduzida na maior parte dos casos “estas são as gerações
de”. A fórmula aparece 10 vezes em Génesis (na realidade, 11 vezes, mas duas
tratam das gerações de Esaú): Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19;
36:1 e 8; 37:2.
Não é, porém, claro, nem consensual, o que TOLEDOT significa
exatamente. Deriva do verbo YALAD, que significa: dar à luz, nascer, engendrar,
gerar, conduzindo à tradução clássica de “gerações”. Mas, porque nem sempre a
palavra “gerações” parece ser a mais adequada ao contexto, algumas traduções
modernas usam por vezes outras palavras. Por exemplo:
Gn
2:4 – Esta é a génese/origem/história (toledot) dos céus e da terra
Gn
6:9 – Esta é a história (toledot) de Noé.
Gn 10:1 – Esta é a
posteridade/descendência (toledot) dos filhos de Noé
É geralmente admitido que “elleh toledot” é um indicador estrutural que divide o livro em secções, e que funciona como fórmula introdutória – uma espécie de título de capítulo –, e/ou como fórmula de transição, uma maneira de conectar uma secção à outra.
Ainda outra teoria designa a fórmula como uma subscrição ou
resumo do que veio antes. Em 1936, Wiseman[1]
sugeriu que as ocorrências de TOLEDOT em Génesis eram, em todos os casos,
cólofones. As fontes dos textos de Génesis seriam 11 tabuletas de barro, cada
uma delas terminando com um cólofon assinalando a conclusão da unidade. Wiseman
observara que as tabuletas mesopotâmicas tinham uma espécie de “ficha técnica”,
uma assinatura, que identificava o autor da tabuleta através de uma árvore ou
referência genealógica colocada no final do texto, um cólofon. No caso de múltiplas tabuletas sequenciais, havia uma
frase que conectava uma tabuleta com a outra a seguir. Muitos destes registos
eram histórias sobre origens familiares. Wiseman achou ver uma semelhança com
as secções do livro de Génesis. O texto que precede a
frase “esta é a genealogia de …” teria informação sobre os eventos que o homem
nomeado nesta frase teria conhecido. Ou seja, o livro de Génesis seria o
resultado da compilação e redação por Moisés de uma sequência de tabuletas,
cada uma escrita por uma testemunha ocular dos eventos nelas descritos.
Para uma abordagem mais pormenorizada sobre a Hipótese de
Wiseman, e a divisão de Génesis com a fórmula TOLEDOT
como cólofon, remeto à mensagem Quem escreveu Génesis. Na altura, considerei uma possível explicação, mas
após nova análise trago aqui uma explicação que me parece mais adequada.
Faço referência a esta teoria porque ela apresenta alguns
problemas e porque nos permite contrastá-la com a leitura mais natural da
fórmula ELLEH TOLEDOT (estas [são as] TOLEDOT)
[2]
como introdutória e, simultaneamente, de transição.
Há cinco casos em que a fórmula claramente precede uma lista
de descendentes (não podendo nunca ser visto como um cólofon): 5:1 (Adão), 10:1
(os filhos de Noé); 11:10 (Sem); 25:12 (Ismael); 36:1 (Esaú). Fora do livro de
Génesis, as duas ocorrências com o mesmo padrão apoia a leitura como título:
Num 3:1 (as gerações de Aarão e de Moisés) e Ruth 4:18 (as gerações de Perez, o
filho de Judá, até David).
Na teoria de Wiseman, a primeira vez que aparece a expressão
ELLEH TOLEDOT, as TOLEDOT dos céus e da terra (Gn 2:4) referem-se à história da
criação na primeira secção de Génesis (1:1 a 2:4a), e as TOLEDOT de Adão
encerram outros pormenores da criação, a criação da mulher, a queda, as
maldições, a promessa de um salvador e a história de Caim (Gn 2:4b a 5:1a). E
toda a descendência de Adão até Noé está na história/gerações de Noé (de 5:1 a
6:9). Se, eventualmente, 2:4a, 5:1 e 6:9 possam ser compreendidos como cólofon,
referindo-se à narrativa que precede, noutros casos, tal interpretação não é lógica.
Por exemplo: inscrever a história de Abraão (11:28 a 25:11) sob a assinatura de
Ismael, as “gerações de Ismael” (25:2), não faz sentido de todo,
historicamente. Seria mais lógico se as TOLEDOT de Isaac fechassem a história
de Abraão. Mas, então, as TOLEDOT de Isaac são o registo da genealogia de
Ismael? Os apoiantes da teoria do cólofon tentam dar a volta à dificuldade
explicando que a secção sobre Ismael é uma subsecção nas “TOLEDOT de Isaac”. A
informação sobre os filhos de Ismael terá sido dada a Isaac quando os dois
irmãos se juntaram por ocasião do sepultamento de seu pai Abraão. Mas esta
explicação não é coerente, porque a fórmula “as TOLEDOT de Ismael” precede a
genealogia de Ismael e a leitura natural é de uma introdução à lista de
descendentes. O mesmo problema levanta-se em relação às gerações de Esaú em
36:1.
Se a origem da palavra TOLEDOT vem do verbo YALAD, = gerar, a
palavra TOLEDOT contem a ideia de sequência e consequência, o que resulta de
algo, o que alguém produz ou gera. E aponta para frente e não para trás.
Por exemplo:
O livro das TOLEDOT de Adão (Gn 5:1) descreve, através dos seus descendentes, o
que procedeu do primeiro homem, o que ele gerou. Adão foi criado à semelhança
de Deus (5:1), mas gerou um filho à sua semelhança (5:3). O que procedeu da
queda do primeiro homem terminou na corrupção geral do género humano e a
decisão do Senhor de destruir o homem que criou e a vida animal. Mas restou um
homem, Noé, que achou graça aos olhos do Senhor. Gn 6:8 faz a ligação com a
secção seguinte.
Em Gn 6:9
começam as gerações (TOLEDOT) de Noé. Esta secção diz que Noé gerou três
filhos, mas o foco da narrativa está em Noé e na preparação da arca, no dilúvio
e na aliança que Deus faz com Noé e a sua semente depois do dilúvio. Antes de
terminar com a morte de Noé (9:29), a secção finaliza com o que fizeram os
filhos de Noé (9:20-27) e a maldição de Canaan, cujas consequências se
manifestarão na secção seguinte (Gn 10:1 a 11:9).
Gn 10 apresenta o mundo pós-dilúvio através da descendência
(TOLEDOT) dos filhos de Noé (Gn
10:1), que foram introduzidos no final da secção anterior. É um novo recomeço
para a humanidade, com o renovado mandado de “frutificar, multiplicar e encher
a terra” (9:1) cumprido através de Shem, Cam e Jafeth. A secção termina com a
confusão de Babel; como Deus teve que intervir mais uma vez para desfazer os
esforços da humanidade de desobedecer às Suas orientações, mantendo-se juntos
num local em vez de encher a terra.
Até agora, já encontramos 4 secções TOLEDOT.
1)
As TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 a 4:26)
2)
O livro das TOLEDOT de Adão (5:1 a 6:8)
3)
As TOLEDOT de Noé (6:9 a 9:29)
4)
As TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 a 11:9)
Olhando para esta sequência, podemos concordar com Harbin
que, num artigo recente [3],
propõe uma tradução uniforme da fórmula ELLEH TOLEDOT. O uso repetido desta
fórmula marca-a como um indicador estrutural, o que sugere um significado
especializado e consistente, requerendo uma tradução uniforme. Como tal,
Michael Harbin propõe especificamente traduzir ELLEH TOLEDOT como: [this is
what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.
Assumindo que ELLEH TOLEDOT é, então, um título e expressão
que faz a transição entre uma secção e a seguinte, observamos que a porção
inicial de Génesis – o relato da criação (Gn 1:1 a 2:3) – não inicia com esta
mesma fórmula mas serve como prefácio
ou introdução ao livro. Afirma que Deus é o Criador de todo o universo (1:1),
descreve em breves frases o processo da criação e termina com a avaliação da
obra pelo próprio Deus – E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom (1:31), após o que Deus
descansou no sétimo dia. Sem este prefácio, sem o Criador, não aconteceria mais
nada. Não haveria história. E só o próprio Deus poderia ser o autor deste
prefácio.
Isto ajuda-nos a compreender a estrutura TOLEDOT. Se Gn 1:1
a 2:3 é um prefácio, o resto do livro trata do que aconteceu depois. Deus criou
um universo que era “muito bom”. E a primeira secção introduzida por ELLEH
TOLEDOT (Gn 2:4 a
4:26) explica o que aconteceu a este universo “muito bom”.
Portanto, Gn 2:4, em vez da tradução “estas são as origens
dos céus e da terra”, como que se referindo à secção anterior (teoria de
Wiseman), parece adequado traduzir assim: ”o que foi feito dos céus e da terra que Deus criou”,
introduzindo a narrativa que vai até 4:26. Primeiro, apresenta pormenores sobre
alguns eventos do prefácio (a criação do jardim, do homem, da mulher). Depois vem
a história da serpente e aconteceu que o homem, querendo ser autónomo, estragou
tudo, desobedeceu a Deus, e recebeu as consequências da sua ação (3:14-24). E
não só ele, mas toda a criação (v.17-18). “O que foi feito dos céus e da terra
que o Senhor criou” e avaliou «muito bom», foi que o homem transgrediu o
mandamento do Senhor e o Senhor lançou fora o homem do jardim do Éden. E
segue-se a história de Caim e seus descendentes. O final da secção (Gn 4:25-26)
fala de Seth, a semente que vai ocupar o lugar de Abel, é uma nota positiva que
faz a transição com a secção seguinte: “então se começou a invocar o nome do
Senhor”.
Na mensagem seguinte, vamos ver se a tradução proposta para
ELLEH TOLEDOT - “o que foi feito de …” “o que procedeu de
…” se aplica ao resto do livro de Génesis.
[1] P.J.
Wiseman (18 - 19) era um oficial britânico estacionado no Médio Oriente, que se
interessou pelas descobertas arqueológicas, embora não fosse formado em
história ou arqueologia. Ficou intrigado pelo estilo particular em que eram
redigidas centenas de tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia. Na sua opinião,
estas continham a chave para a escrita original do livro de Génesis. Wiseman
publicou o seu livro em 1936, que foi revisto e atualizado, em 1985, por seu
filho Donald Wiseman, professor em assiriologia e diretor do British Museum,
com o título “Ancient Records and the Structure of Genesis” (Nashville: Thomas
Nelson, Inc., 1985).
[2] A
terminação hebraica em OT é um plural feminino.
[3] Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure
of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233