21/09/2017

A DURAÇÃO DO MINISTÉRIO DE JESUS

A duração do ministério de Jesus, desde o seu batismo até à crucificação, é outra questão controversa. Tanto tem sido escrito sobre esta questão, com o foco nas contradições entre os evangelhos sinópticos e João, que tenho receio de enveredar-me neste caminho.

Há várias teorias, que vão de um ministério de um só ano até cinco anos, e mesmo mais. A teoria mais generalizada é que foram cerca de 3 anos e meio. Também há desacordo sobre qual o ano em que Jesus começou o seu ministério e o ano em que foi crucificado. Entram em linha de conta cálculos astronómicos de calendários e a datação de eventos como o 15º ano de Tibério, os 46 anos da construção do templo (Jo 2:20), a morte de João Batista ligada à questão de Herodias (Lc 3:19) e outros.

Face a todas as teorias e tentativas de resolver a questão, fiquei no entanto com a impressão de que foi posta de lado a simplicidade do relato bíblico – apesar de este revelar algumas contradições - e passaram a ser elementos extra-bíblicos a dominarem o debate e datas da cronologia secular a procurar definir a cronologia bíblica, fazendo esquecer o que está escrito e tentando ler e inscrever no texto o que não está mas é sugerido por datas calculadas.

Convém analisar primeiro a nossa fonte primária, o Novo Testamento.

Os evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) dão pouca informação cronológica. Apenas mencionam uma Páscoa, que é a última quando Jesus foi crucificado. Por isso, alguns dizem que o ministério de Jesus não durou mais do que um ano.

O evangelho de João dá-nos informações mais específicas. João menciona expressamente várias festas ao longo do ministério de Jesus, sendo a festa da Páscoa determinante na compreensão da cronologia. A não ser que o evangelista tenha omitido uma ou mais Páscoas (mas por que razão?), o relato contém apenas 3 Páscoas, significando que o seu ministério só durou pouco mais de 2 anos, com o batismo algum tempo antes da primeira Páscoa.

Com base no evangelho de João, acrescido de alguns dados dos outros evangelhos, procurei construir uma cronologia para tentar descobrir a duração do ministério de Jesus:

- O batismo de Jesus foi imediatamente seguido de 40 dias no deserto (Mc 1:12).

- Depois da temporada no deserto, Jesus regressa onde João Batista está a batizar (Jo 1:36); e este o vê passar. Dois dos discípulos de João vão atrás de Jesus e ficam com ele aquele dia (Jo 1:37-42).

- No dia seguinte, Jesus quis ir a Galileia (Jo 1:43), e

- No terceiro dia, ele já está presente nas bodas em Caná da Galileia (Jo 2:1).

João batizava em Betânia, da outra banda do Jordão (Jo 1:28). Esta Betânia deve situar-se no Jordão, não muito longe do mar da Galileia, porque em apenas dois dias Jesus já estava em Caná.

- Depois, desceu a Cafarnaum (que é a norte do mar da Galileia), onde ficou “não muitos dias” (Jo 2:12).

- E estava próxima a páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém (Jo 2:13).

Esta é a primeira páscoa no ministério de Jesus. 
Não sabemos quantos dias são “não muitos dias”, mas João não menciona nenhum acontecimento entre o ter descido a Cafarnaum e a subida a Jerusalém, por isso penso que foi um período breve, não tendo Jesus ainda começado a pregar. Penso que pouco mais de 50/60 dias terão decorrido desde o batismo até à primeira páscoa.

- Depois da purificação do templo, os sinais durante a festa, a conversa com Nicodemos, Jesus foi com os seus discípulos para a terra da Judeia, onde estava ali com eles e batizava (Jo 3:22).
Naquele tempo, João batizava em Enon; ainda não tinha sido lançado na prisão (Jo 3:24).

- Depois Jesus deixou a Judeia e foi outra vez para a Galileia, passando por Samaria (Jo 4:3).

Marcos 1:14 diz que Jesus foi para Galileia depois que João foi entregue à prisão.
Em Samaria Jesus disse: Não dizeis vós que ainda há quatro meses até que venha a ceifa? (Jo 4:35)
Havia várias ceifas ao ano em Israel. Mas dado que a páscoa (1º mês) fora pouco tempo antes, a colheita em causa tem que ser a da saída do ano, que era seguida da festa dos tabernáculos (Ex 23:16) no 7º mês (agosto-setembro).

- Dois dias depois partiu de Samaria e foi para a Galileia (Jo 4:43).
Jo 4:45 – Chegando à Galileia, os galileus o receberam, vistas todas as coisas que fizera em Jerusalém no dia da festa; porque também eles tinham ido à festa.

Deduzo do encadeamento de eventos que a festa a que se referem os galileus é a primeira páscoa. Agora começa verdadeiramente o ministério de Jesus na Galileia.

O primeiro ano do seu ministério, Jesus passa principalmente na Galileia, indo uma vez a Jerusalém para uma festa (Jo 5:1): - Depois disto, havia uma festa entre os judeus, e Jesus subiu a Jerusalém (Jo 5.1). Esta pode ser uma de várias festas entre a primeira páscoa e a seguinte. Páscoa é sempre indicada como a festa.

- E a páscoa, a festa dos judeus, estava próxima (Jo 6:4).

Esta é a segunda páscoa no ministério de Jesus.

Nesse período situa-se a multiplicação dos pães (Jo 6; que corresponde à segunda multiplicação de Mc 8 e Mt 15).

Nesta segunda páscoa, não há menção de Jesus ter ido a Jerusalém. Ele está na região de Tiberíade (Jo 6:23), junto ao mar da Galileia (também conhecido como o lago de Tiberíade). Ele faz o discurso do pão da vida na sinagoga de Cafarnaum (Jo 6:22-59), cujo conteúdo está referenciado ao tempo que os israelitas saíram do Egipto, celebraram a primeira páscoa e receberam o maná. Um discurso que parece adequado à época.

A partir de então muitos discípulos tornam para trás (Jo 6:66).
Pedro crê e reconhece que Jesus é o Cristo (Jo 6:67-69) e Jesus anuncia pela primeira vez a sua paixão (Lc 9:22; Mc8:31-33).– A partir dessa época Jesus começou a mostrar ser necessário ir a Jerusalém (Mt 16:21).

- Depois disto, Jesus andava pela Galileia, e já não queria andar pela Judeia, pois os judeus procuravam matá-lo (Jo 7:1).

Marcos 8:27 situa a confissão de Pedro quando estavam em Cesareia de Filipe, depois de terem passado por Tiro e Sidon, Decápolis e Betsaida (Mc 7 e 8).

- 8 dias depois, tem lugar a transfiguração (Lc 9:29).

O segundo anúncio da paixão foi quando caminhavam na Galileia (Mc 9:30-32; Mt 17:22; Lc 9:44).
A certo momento, completando-se os dias para a sua assunção, Jesus manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém (Lc 9:51). Depois, Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e caminhando para Jerusalém (Lc 13:22).

- E estava próxima a festa dos judeus, a dos tabernáculos (Jo 7:1-2), e Jesus subiu à festa (Jo 7:10) e ensinava no templo durante a festa (Jo 7:14; 8:2).

Passaram-se sete meses entre a páscoa no 1º mês (Abib) e a festa dos tabernáculos no 7º mês (aprox. setembro). Sete meses em que Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e caminhando para Jerusalém.

- Depois da festa dos tabernáculos, Jesus parece ter continuado em Jerusalém, a ensinar no templo (Jo 9), onde o encontramos na festa da dedicação, no inverno (Jo 10:22).
Esta festa foi instituída em 164 a.C. por Judas Macabeu depois que Jerusalém foi recuperada aos sírios, o templo purificado e um novo altar reconstruído, depois de profanado por Antíoco Epífanes. Trata-se da festa de Hanukkah celebrada no mês de Quisleu (dezembro).

- Procuravam prendê-lo mas ele escapou-se e retirou-se para além do Jordão, para o lugar onde João tinha primeiramente batizado, e ali ficou. (Jo 10:39-40).

Depois temos a ressurreição de Lázaro (Jo 11:1-45) e o conselho dos principais dos sacerdotes e fariseus para o matar (Jo 11:46-53). Por isso Jesus retirou-se para uma cidade chamada Efraim junto do deserto (Jo 11: 54).

- E estava próxima a páscoa dos judeus (Jo 11:55) …

Esta é a terceira e última páscoa do ministério de Jesus, quando foi crucificado.

Baseado nestes elementos do evangelho de João, podemos deduzir que o ministério de Jesus teve uma duração de pouco mais de 2 anos, com o batismo cerca de dois meses antes da primeira páscoa, e a crucificação na terceira páscoa.

A leitura que faço é demasiado simples ou simplista? Há outros elementos que apoiam isto e que podem confirmar os dois anos de ministério?
Porque há teorias que sugerem 3 anos e meio, ou 5 anos, se o relato de João parece tão simples de interpretar?

O problema do calendário calculado.

Há vários autores que têm calculado astronomicamente as datas para aquele período. Muito utilizados são os cálculos de J.K. Fotheringham (1934) e de Parker & Dubberstein (1956), e às quais Finegan (§ 616) atribui um elevado grau de probabilidade.
Estão em causa os anos 30 a 34.

É quase consensual que a crucificação teve lugar numa sexta-feira (na mensagem anterior O SÁBADO DA RESSURREIÇÃO, julho 2017, eu defendo uma quinta-feira). 

Segundo os cálculos de Fotheringham, nos anos 30 e 33, o dia 14 de Nisan calha numa sexta-feira. Por isso, se Jesus começou o seu ministério em 29 ou 30 (a primeira páscoa), 30 dá 1 ano, e 33 dá 3 anos e uns meses para o ministério de Jesus.

Por isso alega-se geralmente que o relato de João não é completo e que omitiu uma ou mais páscoas. Mas pergunto, porque João teria tido o cuidado de distinguir cada uma destas festas se ele não tivesse uma boa razão?



O ano do início e do fim do ministério de Jesus

Em minha leitura, e tomando por certo as 3 páscoas mencionadas em João, Jesus começou o seu ministério no ano 29 (ver mensagem O ANO QUINZE DE TIBÉRIO, julho 2017). Portanto, a sua terceira páscoa seria no ano 31. Mas os cálculos astronómicos de Fotheringham e de Parker & Dubberstein, e também de Newton, não corroboram isto. No ano 31, Nisan 14 seria uma terça-feira, ou uma quarta-feira no caso de ter havido um mês intercalar. Ainda segundo Parker & Dubberstein, supondo que tivesse havido um mês intercalar, Nisan 14 seria uma quinta-feira, apenas no ano 34, o que daria um ministério de 5 anos.

Há, contudo, uma ressalva a fazer ao uso destes cálculos astronómicos. Roger Beckwith [i] chama a atenção para o cuidado a ter no uso de calendários e astronomia para determinar a cronologia da Paixão.

Fotheringham e Schoch chegaram a uma fórmula baseada em considerações astronómicas e de calendário para estabelecer os dias de Nisan 14 e 15 para os anos 27 a 34. Como tem sido assumido que a crucificação ocorreu numa 6ª feira, apenas os anos 30 e 33 entraram em consideração.

Mas na Judeia daquele tempo, a astronomia não era estudada, e o ano era regulado não por cálculo (baseado no equinócio) mas por observação.

Os judeus só começaram a calcular a data da Páscoa astronomicamente, ou com o ciclo de 19 anos, nos séculos 4 a 7 depois de Cristo. Muito mais tarde. Fontes de literatura rabínica dizem-nos que os meses e as festas não eram fixados por cálculo com antecedência mas por observação contínua. O início de cada mês era anunciado quando a lua nova era vista na Judeia. Também a adição de um 13º mês dependia da observação – a observação de sinais de primavera. Se os sinais não tinham aparecido, um 13º mês era acrescentado. Os fatores considerados eram o aparecimento do primeiro grão na cevada, o estado de crescimento das rolas e dos cordeiros (se ainda eram tenros e pequenos demais, não podiam ser usadas no sacrifício). Se o primeiro grão aparecia cedo, havia apenas 12 meses, mas se se aguardava o aparecimento do primeiro grão, devia acrescentar-se um 13º mês. Estas mesmas fórmulas ainda se aplicavam um século depois da destruição do templo.

Se o ano novo dos judeus era governado por observação e não por cálculo, isto implica um elevado grau de irregularidade e isto afeta a datação da crucificação de Jesus.

Se a decisão de acrescentar um 13º mês era tomada sem atenção ao equinócio, era inevitável que, em épocas quando os sinais de primavera chegavam cedo, o novo ano era anunciado sem esperar pela aproximação do equinócio. Portanto, se a Páscoa calhasse com frequência antes do equinócio da primavera, isto abre novas possibilidades para as datas da crucificação de Jesus.

Como não estava a ser usado um calendário calculado, é impossível sabermos quando um 13º mês era intercalado. Nem o NT nem Josefo fornecem esta informação. E há também a questão da duração do 13º mês, bem como a do 12º, antes de o calendário ser regulado astronomicamente, se 30 ou 29 dias.

Relativamente aos cálculos de Humphreys and Waddington [ii], Beckwith observa relativamente ao ano 31 --- Este é o ano favorecido por Jeremias [iii]… que defende que, naquele ano, Nisan 14 podia ter sido uma quinta-feira se fosse precedida de um 13º mês e se o anúncio da lua nova de Nisan fosse adiada por falta de visibilidade. Mas mesmo em caso de boa visibilidade, se o 13º mês tinha uma duração fixa de 30 dias, adiar 30 dias seria em si mudar Nisan 14 de terça-feira 27 de março para quinta-feira 26 de abril (Beckwith, pp. 197-198).

Relativamente ao equinócio, acontece o mesmo. Se a Páscoa calhasse antes do equinócio no ano 33, Nisan 14 seria uma quinta-feira; e se a Páscoa fosse adiada por um 13º mês em 31 ou 35, Nisan 14 seria uma quinta-feira.

Assim, visto que temos que ter cuidado com a aplicação sem mais nem menos dos cálculos astronómicos, sempre é possível que o ministério de Jesus tinha apenas dois anos, como o dá a entender o evangelho de João, quando olhamos para o que está escrito literalmente.



[i] Roger T. Beckwith, Cautionary Notes on the Use of Calendars and Astronomy to Determine the Chronology of the Passion. In: Jerry Vardaman, et al. Chronos, Kairos, Christos: Nativity and Chronological Studies presented to John Finegan (1989).

[ii] Humphreys and Waddington, The date of the crucifixion, JASA 37 (March 1985): 2-10. http://www.asa3.org/ASA/PSCF/1985/JASA3-85Humphreys.html

[iii] Joachim Jeremias, The Eucharistic Words of Jesus (1935), é uma obra de referência para os estudos sobre a última Ceia.