A duração do
ministério de Jesus, desde o seu batismo até à crucificação, é outra questão
controversa. Tanto tem sido escrito sobre esta questão, com o foco nas
contradições entre os evangelhos sinópticos e João, que tenho receio de
enveredar-me neste caminho.
Há várias
teorias, que vão de um ministério de um só ano até cinco anos, e mesmo mais. A
teoria mais generalizada é que foram cerca de 3 anos e meio. Também há desacordo
sobre qual o ano em que Jesus começou o seu ministério e o ano em que foi
crucificado. Entram em linha de conta cálculos astronómicos de calendários e a
datação de eventos como o 15º ano de Tibério, os 46 anos da construção do templo
(Jo 2:20), a morte de João Batista ligada à questão de Herodias (Lc 3:19) e
outros.
Face a todas
as teorias e tentativas de resolver a questão, fiquei no entanto com a
impressão de que foi posta de lado a simplicidade do relato bíblico – apesar de
este revelar algumas contradições - e passaram a ser elementos extra-bíblicos a
dominarem o debate e datas da cronologia secular a procurar definir a cronologia
bíblica, fazendo esquecer o que está escrito e tentando ler e inscrever no
texto o que não está mas é sugerido por datas calculadas.
Convém analisar
primeiro a nossa fonte primária, o Novo Testamento.
Os
evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) dão pouca informação
cronológica. Apenas mencionam uma Páscoa, que é a última quando Jesus foi
crucificado. Por isso, alguns dizem que o ministério de Jesus não durou mais do
que um ano.
O evangelho
de João dá-nos informações mais específicas. João menciona expressamente várias
festas ao longo do ministério de Jesus, sendo a festa da Páscoa determinante na
compreensão da cronologia. A não ser que o evangelista tenha omitido uma ou
mais Páscoas (mas por que razão?), o relato contém apenas 3 Páscoas,
significando que o seu ministério só durou pouco mais de 2 anos, com o batismo
algum tempo antes da primeira Páscoa.
Com base no
evangelho de João, acrescido de alguns dados dos outros evangelhos, procurei
construir uma cronologia para tentar descobrir a duração do ministério de Jesus:
- O batismo
de Jesus foi imediatamente seguido de 40 dias no deserto (Mc 1:12).
- Depois da
temporada no deserto, Jesus regressa onde João Batista está a batizar (Jo
1:36); e este o vê passar. Dois dos discípulos de João vão atrás de Jesus e
ficam com ele aquele dia (Jo 1:37-42).
- No dia
seguinte, Jesus quis ir a Galileia (Jo 1:43), e
- No
terceiro dia, ele já está presente nas bodas em Caná da Galileia (Jo 2:1).
João
batizava em Betânia, da outra banda do Jordão (Jo 1:28). Esta Betânia deve
situar-se no Jordão, não muito longe do mar da Galileia, porque em apenas dois
dias Jesus já estava em Caná.
- Depois,
desceu a Cafarnaum (que é a norte do mar da Galileia), onde ficou “não muitos
dias” (Jo 2:12).
- E estava
próxima a páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém (Jo 2:13).
Esta é a primeira páscoa no
ministério de Jesus.
Não sabemos quantos dias são “não muitos dias”, mas João
não menciona nenhum acontecimento entre o ter descido a Cafarnaum e a subida a
Jerusalém, por isso penso que foi um período breve, não tendo Jesus ainda
começado a pregar. Penso que pouco mais de 50/60 dias terão decorrido desde o batismo
até à primeira páscoa.
- Depois da purificação do templo, os sinais durante a festa,
a conversa com Nicodemos, Jesus foi com os seus discípulos para a terra da
Judeia, onde estava ali com eles e batizava (Jo 3:22).
Naquele tempo, João batizava em Enon; ainda não tinha sido
lançado na prisão (Jo 3:24).
- Depois Jesus deixou a Judeia e foi outra vez para a
Galileia, passando por Samaria (Jo 4:3).
Marcos 1:14 diz que Jesus foi para Galileia depois que João
foi entregue à prisão.
Em Samaria Jesus disse: Não dizeis vós que ainda há quatro
meses até que venha a ceifa? (Jo 4:35)
Havia várias ceifas ao ano em Israel. Mas dado que a páscoa
(1º mês) fora pouco tempo antes, a colheita em causa tem que ser a da saída do
ano, que era seguida da festa dos tabernáculos (Ex 23:16) no 7º mês
(agosto-setembro).
- Dois dias depois partiu de Samaria e foi para a Galileia
(Jo 4:43).
Jo 4:45 – Chegando à Galileia, os galileus o receberam, vistas
todas as coisas que fizera em Jerusalém no
dia da festa; porque também eles tinham ido à festa.
Deduzo do encadeamento de eventos que a festa a que se
referem os galileus é a primeira páscoa. Agora começa verdadeiramente o
ministério de Jesus na Galileia.
O primeiro ano do seu ministério, Jesus passa principalmente
na Galileia, indo uma vez a Jerusalém para uma festa (Jo 5:1): - Depois disto,
havia uma festa entre os judeus, e Jesus subiu a Jerusalém (Jo 5.1).
Esta pode ser uma de várias festas entre a primeira páscoa e a seguinte. Páscoa
é sempre indicada como a festa.
- E a páscoa, a festa dos judeus, estava próxima (Jo
6:4).
Esta é a segunda
páscoa no ministério de Jesus.
Nesse período situa-se a multiplicação dos pães (Jo 6; que
corresponde à segunda multiplicação de Mc 8 e Mt 15).
Nesta segunda páscoa, não há menção de Jesus ter ido a
Jerusalém. Ele está na região de Tiberíade (Jo 6:23), junto ao mar da Galileia
(também conhecido como o lago de Tiberíade). Ele faz o discurso do pão da vida
na sinagoga de Cafarnaum (Jo 6:22-59), cujo conteúdo está referenciado ao tempo
que os israelitas saíram do Egipto, celebraram a primeira páscoa e receberam o
maná. Um discurso que parece adequado à época.
A partir de então muitos discípulos tornam para trás (Jo
6:66).
Pedro crê e reconhece que Jesus é o Cristo (Jo 6:67-69) e
Jesus anuncia pela primeira vez a sua paixão (Lc 9:22; Mc8:31-33).– A partir dessa época Jesus começou a mostrar
ser necessário ir a Jerusalém (Mt 16:21).
- Depois disto, Jesus andava pela Galileia, e já não queria
andar pela Judeia, pois os judeus procuravam matá-lo (Jo 7:1).
Marcos 8:27 situa a confissão de Pedro quando estavam em
Cesareia de Filipe, depois de terem passado por Tiro e Sidon, Decápolis e
Betsaida (Mc 7 e 8).
- 8 dias depois, tem lugar a transfiguração (Lc 9:29).
O segundo anúncio da paixão foi quando caminhavam na Galileia
(Mc 9:30-32; Mt 17:22; Lc 9:44).
A certo momento, completando-se
os dias para a sua assunção, Jesus manifestou o firme propósito de ir a
Jerusalém (Lc 9:51). Depois, Jesus atravessava cidades e povoados,
ensinando e caminhando para Jerusalém (Lc 13:22).
- E estava próxima a festa dos judeus, a dos tabernáculos
(Jo 7:1-2), e Jesus subiu à festa (Jo 7:10) e ensinava no templo durante a
festa (Jo 7:14; 8:2).
Passaram-se sete meses entre a páscoa no 1º mês (Abib) e a
festa dos tabernáculos no 7º mês (aprox. setembro). Sete meses em que Jesus
atravessava cidades e povoados, ensinando e caminhando para Jerusalém.
- Depois da festa dos tabernáculos, Jesus parece ter
continuado em Jerusalém, a ensinar no templo (Jo 9), onde o encontramos na festa
da dedicação, no inverno (Jo 10:22).
Esta festa foi instituída em 164 a.C. por Judas Macabeu depois
que Jerusalém foi recuperada aos sírios, o templo purificado e um novo altar
reconstruído, depois de profanado por Antíoco Epífanes. Trata-se da festa de
Hanukkah celebrada no mês de Quisleu (dezembro).
- Procuravam prendê-lo mas ele escapou-se e retirou-se para
além do Jordão, para o lugar onde João tinha primeiramente batizado, e ali
ficou. (Jo 10:39-40).
Depois temos a ressurreição de Lázaro (Jo 11:1-45) e o
conselho dos principais dos sacerdotes e fariseus para o matar (Jo 11:46-53).
Por isso Jesus retirou-se para uma cidade chamada Efraim junto do deserto (Jo
11: 54).
- E estava próxima a páscoa dos judeus (Jo 11:55) …
Esta é a
terceira e última páscoa do ministério de Jesus, quando foi crucificado.
Baseado nestes elementos do evangelho de João, podemos deduzir que o ministério de Jesus teve uma
duração de pouco mais de 2 anos, com o batismo cerca de dois meses antes
da primeira páscoa, e a crucificação na terceira páscoa.
A leitura
que faço é demasiado simples ou simplista? Há outros elementos que apoiam isto
e que podem confirmar os dois anos de ministério?
Porque há
teorias que sugerem 3 anos e meio, ou 5 anos, se o relato de João parece tão
simples de interpretar?
O problema do
calendário calculado.
Há vários autores que têm calculado astronomicamente as datas
para aquele período. Muito utilizados são os cálculos de J.K. Fotheringham
(1934) e de Parker & Dubberstein (1956), e às quais Finegan (§ 616) atribui
um elevado grau de probabilidade.
Estão em causa os anos 30 a 34.
É quase consensual que
a crucificação teve lugar numa sexta-feira (na mensagem anterior O SÁBADO DA RESSURREIÇÃO, julho 2017, eu defendo uma
quinta-feira).
Segundo os cálculos de Fotheringham, nos anos 30 e 33, o dia 14
de Nisan calha numa sexta-feira. Por isso, se Jesus começou o seu ministério em
29 ou 30 (a primeira páscoa), 30 dá 1 ano, e 33 dá 3 anos e uns meses para o
ministério de Jesus.
Por isso alega-se geralmente que o relato de João não é
completo e que omitiu uma ou mais páscoas. Mas pergunto, porque João teria tido
o cuidado de distinguir cada uma destas festas se ele não tivesse uma boa razão?
O ano do início e do fim do
ministério de Jesus
Em minha
leitura, e tomando por certo as 3 páscoas mencionadas em João, Jesus começou o seu
ministério no ano 29 (ver mensagem O ANO QUINZE DE TIBÉRIO, julho 2017).
Portanto, a sua terceira páscoa seria no ano 31. Mas os cálculos astronómicos
de Fotheringham e de Parker & Dubberstein, e também de Newton, não
corroboram isto. No ano 31, Nisan 14 seria uma terça-feira, ou uma quarta-feira
no caso de ter havido um mês intercalar. Ainda segundo Parker & Dubberstein, supondo que tivesse havido um mês intercalar, Nisan 14 seria uma quinta-feira, apenas no ano 34, o que daria um ministério de 5 anos.
Há, contudo,
uma ressalva a fazer ao uso destes cálculos astronómicos. Roger Beckwith [i]
chama a atenção para o cuidado a ter no uso de calendários e astronomia para
determinar a cronologia da Paixão.
Fotheringham
e Schoch chegaram a uma fórmula baseada em considerações astronómicas e de
calendário para estabelecer os dias de Nisan 14 e 15 para os anos 27 a 34. Como
tem sido assumido que a crucificação ocorreu numa 6ª feira, apenas os anos 30 e
33 entraram em consideração.
Mas na
Judeia daquele tempo, a astronomia não era estudada, e o ano era regulado não
por cálculo (baseado no equinócio) mas por observação.
Os judeus só
começaram a calcular a data da Páscoa astronomicamente, ou com o ciclo de 19
anos, nos séculos 4 a 7 depois de
Cristo. Muito mais tarde. Fontes de literatura rabínica dizem-nos que os meses
e as festas não eram fixados por cálculo com antecedência mas por observação
contínua. O início de cada mês era anunciado quando a lua nova era vista na
Judeia. Também a adição de um 13º mês dependia da observação – a observação de
sinais de primavera. Se os sinais não tinham aparecido, um 13º mês era
acrescentado. Os fatores considerados eram o aparecimento do primeiro grão na
cevada, o estado de crescimento das rolas e dos cordeiros (se ainda eram tenros
e pequenos demais, não podiam ser usadas no sacrifício). Se o primeiro grão
aparecia cedo, havia apenas 12 meses, mas se se aguardava o aparecimento do
primeiro grão, devia acrescentar-se um 13º mês. Estas mesmas fórmulas ainda se
aplicavam um século depois da destruição do templo.
Se o ano
novo dos judeus era governado por observação e não por cálculo, isto implica um
elevado grau de irregularidade e isto afeta a datação da crucificação de Jesus.
Se a decisão
de acrescentar um 13º mês era tomada sem atenção ao equinócio, era inevitável
que, em épocas quando os sinais de primavera chegavam cedo, o novo ano era anunciado sem
esperar pela aproximação do equinócio. Portanto, se a Páscoa calhasse com
frequência antes do equinócio da primavera, isto abre novas possibilidades para
as datas da crucificação de Jesus.
Como não
estava a ser usado um calendário calculado, é impossível sabermos quando um 13º
mês era intercalado. Nem o NT nem Josefo fornecem esta informação. E há também a questão da duração do 13º mês,
bem como a do 12º, antes de o calendário ser regulado astronomicamente, se 30
ou 29 dias.
Relativamente
aos cálculos de Humphreys and Waddington [ii],
Beckwith observa relativamente ao ano 31 --- Este é o ano favorecido por
Jeremias [iii]… que
defende que, naquele ano, Nisan 14 podia ter sido uma quinta-feira se fosse
precedida de um 13º mês e se o anúncio da lua nova de Nisan fosse adiada por
falta de visibilidade. Mas mesmo em caso de boa visibilidade, se o 13º mês
tinha uma duração fixa de 30 dias, adiar 30 dias seria em si mudar Nisan 14 de
terça-feira 27 de março para quinta-feira 26 de abril (Beckwith, pp. 197-198).
Relativamente
ao equinócio, acontece o mesmo. Se a Páscoa calhasse antes do equinócio no ano
33, Nisan 14 seria uma quinta-feira; e se a Páscoa fosse adiada por um 13º mês
em 31 ou 35, Nisan 14 seria uma quinta-feira.
Assim, visto
que temos que ter cuidado com a aplicação sem mais nem menos dos cálculos
astronómicos, sempre é possível que o ministério de Jesus tinha apenas dois
anos, como o dá a entender o evangelho de João, quando olhamos para o que está
escrito literalmente.
[i] Roger T. Beckwith, Cautionary Notes on the Use of
Calendars and Astronomy to Determine the Chronology of the Passion.
In: Jerry Vardaman, et al. Chronos, Kairos, Christos: Nativity and
Chronological Studies presented to John Finegan (1989).
[ii] Humphreys and Waddington, The date
of the crucifixion, JASA 37 (March 1985): 2-10. http://www.asa3.org/ASA/PSCF/1985/JASA3-85Humphreys.html
[iii]
Joachim
Jeremias, The Eucharistic Words of Jesus
(1935), é uma obra de referência para os estudos sobre a última Ceia.