03/01/2024

ANNO HOMINIS (AH) OU ANNO MUNDI (AM) ?

 6 dias ou milhões de anos?

A questão da origem e idade do universo tem ocupado o ser humano desde sempre, começando com os antigos mitos, passando pelos filósofos, às teorias científicas. Hoje, diríamos que há dois grandes campos de opinião: os evolucionistas e os criacionistas. A principal diferença entre uns e outros está na rejeição ou aceitação de um Criador, um ser inteligente, na origem do universo e da vida. Sem Criador, a ciência não tem uma explicação para a origem da matéria/espaço/tempo.

Mas não vamos entrar neste debate.

No campo dos criacionistas, também há dois campos: os que acreditam que Deus criou o mundo em 6 dias de 24 horas – os criacionistas de terra jovem - e os que apoiam uma duração mais longa – os criacionistas de terra velha.

Não havendo (não tendo) dúvidas sobre a verdade fundamental de que Deus é a causa da existência do universo e do ser humano, como afirma a Bíblia, é mais complicada a questão de quanto tempo durou a obra da criação. E com isso a questão da idade do universo. Evitei o assunto durante muito tempo, procurando saber mais, com a mente aberta às duas hipóteses. O leitor do blog poderá ter observado que usei AH (ANNO HOMINIS), mas também AM (ANNO MUNDI). O uso de AM subentende que Deus criou os céus e a terra em 6 dias de 24 horas. Ao usar AH deixei esta sensível questão em aberto.

Ao usar AH (Anno Hominis), começamos a cronologia com a criação do homem. Neste caso, quanto à idade do ser humano, a Bíblia deixa indicações claras e informação cronológica que nos permitem calcular o tempo desde a criação de Adão até Jesus. É o que temos procurado verificar neste blogue.

Mas voltando aos dias da criação.

Uma justificação para a criação em 6 dias apoia-se na instituição, por Moisés, da semana de 7 dias. “Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do Senhor” (Ex 20:9-10) – Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou” (Êxodo 20:11).

Porque os nossos dias, de sol a sol, têm 24 horas, infere-se que os dias da criação – “e foi a tarde e a manhã o dia …” – também só tinham 24 horas.

Uma justificação para uma terra velha apoia-se em 2Pedro 3:8 “que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”. Mil, usado como hipérbole (figura de estilo que consiste no exagero de expressão, ampliando a verdadeira dimensão das coisas) permite um tempo muito mais longo, indefinido.

De acordo com os mais recentes dados científicos, o universo tem aproximadamente 13,8 bilhões de anos.


Mas o que nos diz a Palavra?

Nota: Grande parte do texto que segue devo-o a uma inspiradora conferência de John Lennox, 7 days that divide the world.  John Lennox: "Seven Days That Divide the World" - YouTube 

Será que não há uma relação metafórica entre Gn 1 e Ex 20:11? [1]

Um claro exemplo de uma metáfora na Bíblia é quando Jesus diz “eu sou a porta” (João 10:9). Não fazemos o erro de pensar que Ele é uma porta física, de madeira ou de ferro. Mas a nossa experiência do mundo natural, da realidade que nos rodeia, permite-nos interpretar e compreender esta metáfora. Jesus é, efetivamente, a “porta” para a salvação; é através dele que temos acesso a Deus.

Outra metáfora usa terminologia relativa à construção de uma casa, para explicar, entre outros, a criação da terra: “Ele lançou os fundamentos da terra, para que vacile em tempo algum (Salmo 194:5). “Do Senhor são os alicerces (ou pilares) da terra, e assentou sobre eles o mundo“ (1Samuel 2:8) – e outros numerosos versículos em que a criação da terra é assemelhada à construção de uma casa com “fundamentos”, “colunas” ou “pilares”, que fazem com que a casa está segura e não se move, senão pela ira de Deus (Sl 75:3; 82:5; 102:25; 104:5; Pv 8:29; Is 13:13; 48:13).

Se interpretássemos estes versos literalmente, continuaríamos a apoiar a teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu, defendida até ao século XVI pela comunidade científica, que a terra estava parada no centro do universo enquanto os corpos celestes orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor. Esta teoria foi desafiada primeiro por Copérnico (1473-1543), depois por Galileo (1564-1642) e Keppler (1571-1630) até que a teoria heliocêntrica (a terra move-se em volta do sol) que defendiam foi comprovada cientificamente no século XVIII por James Bradley. [2]

Assim, 1Sam 2:8 pode, sem problemas, ser considerado uma expressão metafórica, que compreendemos com base em nosso conhecimento, científico, da realidade. Embora não sendo fixa e fundada em pilares, a terra, de facto, está fixa e segura pela força da gravidade que a mantém em posição em relação aos outros astros e planetas.

Agora, quanto à metáfora dos dias da criação. Só Deus, o Criador, podia ter narrado a Adão como o mundo foi criado. Esta narrativa não é pormenorizada, mas estabelece alguns elementos fundamentais para a nossa compreensão. Criado há poucos dias, Adão não conheceria nem compreenderia o conceito de milhões de anos. Então Deus usou o termo “dia”, que era uma unidade de tempo que Adão conhecia pela experiência. Moisés, em Ex 20:11, simplesmente usou a referência à narrativa da criação. O importante não é a duração do “dia”, mas o facto de uma obra que evolui em direção a um descanso.


O uso da palavra “dia” em Génesis.

O que é que Génesis diz realmente? Como é usada a palavra “dia” (IOM)?

Verificamos que só em Gn 1 a palavra “dia” - IOM - é utilizada com vários sentidos diferentes.

No primeiro dia, Deus cria a luz, à qual chama Dia. E às trevas chamou Noite. O uso de “Dia” está aqui apenas para descrever luz, e isto em contraste com trevas/noite. Nada há que indique tratar-se de uma unidade de tempo. “Dia”, nesta passagem, é luz.

Luz/dia e trevas/noite é um conceito anterior ao fenómeno celestial cósmico da rotação da terra sobre o seu próprio eixo em volta do sol.


Só a partir do quarto dia, quando Deus cria os luminares na expansão dos céus para haver separação entre o dia e a noite, e com isso também a relação orbital entre a terra e os astros, que se torna possível entender um dia como um período de 24 horas. Mas será que a velocidade em que a terra e os planetas se movem sempre foi a mesma?

A luz (Gn 1:3) é anterior à luz do sol e dos astros. A luz é de Deus; a luz é o próprio Deus. «O Senhor é a minha luz e a minha salvação» (Salmo 27:1). Jesus é a luz que resplandeceu nas trevas, incompreendida» (João1:1-9). «Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida» (João 8:12). No final da história, na Nova Jerusalém, a cidade não necessita de sol nem de lua, não haverá mais noite e não necessitarão de lâmpada, nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumia; o Cordeiro é a sua lâmpada (Ap 21:23; 22:5).

Ao criar os “luminares” no quarto dia, Deus gerou uma analogia entre a luz verdadeira, espiritual, e a luz solar, natural, para que pudéssemos compreender (um pouco) a primeira.


Na frase “E foi a tarde e a manhã o dia … “ (Gn 1:5, 8, 13, 19, 23, 31), “dia” representa um ciclo em que se observa uma sequência de um período de dia e um período de noite, mas nada dá a entender que se trata de um período de tempo definido. Interpretar esta frase como um período de 24 horas é uma dedução de Ex 20:11, da experiência e do conhecimento da duração – atual – da rotação da terra sobre o seu eixo.

Em todos estes versículos, Deus fala algo em existência. “E disse Deus: haja ...”. O dia pode referir-se apenas ao momento em que Deus falou. Falando, iniciou um processo que pode ter durado milhões de anos, ou meros segundos.


O sétimo dia. Se consideramos todos os dias da criação como unidades de tempo com a mesma duração (quer de 24 horas na teoria de uns, quer de milhares de anos segundo a teoria de outros), o que fazemos com o sétimo dia? Do primeiro ao sexto dia, a narrativa é concluída com “E foi a tarde e a manhã o dia …”. Mas já repararam que no sétimo dia não há tarde e manhã? O sétimo dia seria então um dia muito muito longo … A ausência de “tarde e manhã” deita por terra a teoria de que todos os dias teriam literalmente uma duração igual desde o princípio da criação.

Compreendemos o sétimo dia num sentido espiritual (descanso). Na instituição da semana, é introduzida uma analogia com a criação: os dias de trabalho, como a obra de Deus, culminam em descanso, após avaliação (juízo).

Mas o nosso tempo é o tempo da terra, o tempo dos homens. Se, para Deus, mil anos é como um dia, significa que o tempo de Deus é diferente.


No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas (Gn 1:1-2). Isto (o princípio) aconteceu antes do “primeiro dia”, antes de Deus dizer “Haja luz”. O princípio é um momento indefinido no passado. Não é dito quanto tempo passou entre Gn 1:1 e Gn 1:3.


Gn 2:4 – Estas são as origens (TOLEDOT) dos céus e da terra, quando foram criados: no dia (IOM) em que o Senhor fez a terra e os céus  

Este versículo introduz a primeira secção TOLEDOT (ver ELLEH TOLEDOT). Nesta frase, a palavra “dia” refere-se ao conjunto de dias da criação, não a um único dia.


- E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia (Gn 3:8).

Esta expressão é geralmente interpretada, um pouco romanticamente, que Deus costumava passear no jardim no final do dia, quando aparece a brisa refrescante da tardinha, para ter comunhão com o homem. Mas será este o verdadeiro significado?

Literalmente, esta frase pode ser traduzida assim: Deus passeava no jardim no espírito/sopro/vento (RUAH) do dia (IOM). A palavra RUAH aparece aqui pela segunda vez no texto. A primeira é em Gn 1:2 – o Espírito (RUAH) de Deus se movia sobre a face das águas.

O espírito (RUAH) movia-se sobre a face das águas, nas trevas, e sobre a terra sem forma e vazia (v.2); e a seguir surge a luz (v.3). Em Gn 3:8, o espírito (RUAH) aparece sobre o caos provocado pelo pecado de Adão e Eva. O “dia” traz luz sobre as coisas. O dia, sendo luz, revela tudo (Lc 12:2-3). Nesta passagem, o “dia” é um dia de juízo sobre o teste a que o homem fora submetido (Gn 2:15-17). Em toda a Bíblia, há numerosas passagens sobre o “dia do Senhor”, em que “dia” não significa uma duração, mas um acontecimento que pode ser um momento como pode durar muitos dias.


Conclusão:

O uso da palavra “dia” em Génesis com diferentes sentidos (luz, um ciclo de dia e noite, um conjunto de “dias”, um acontecimento/julgamento) não parece apoiar a possibilidade de dias de 24 horas e deixa claramente aberta a porta a uma interpretação longa.

A Bíblia não discute a idade do universo, nem da terra, em lugar algum. Não é importante. Se fosse importante, não teria Deus dito exatamente qual a duração dos “dias” da criação? Não é assunto que deva levantar disputas entre crentes.

O que não quer dizer que não possamos procurar saber. “E apliquei o meu coração a esquadrinhar, e a informar-me, com sabedoria, de tudo quanto sucede debaixo do céu: esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens, para nela os exercitar” (Ecl 1:13).

Génesis não diz quando, mas diz-nos como esta criação aconteceu: Deus criou por palavras de comando. O Salmo 33 confirma Génesis: Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca … Porque falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu (Sl 33:6, 9). Se o texto não dissesse como criou, não teríamos a compreensão de que havia um Criador. O como define a criação. A vida não surgiu da matéria autonomamente. Os céus e a terra e tudo o que há neles surgiram de maneira sobrenatural. No princípio (e antes do princípio) estava o Criador.

 

Notas:

[1] Metáfora:
recurso expressivo que consiste em usar um termo ou uma ideia com o sentido de outro com o qual mantém uma relação de semelhança (Porto Editora – metáfora no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-12-24 16:22:42]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/metáfora

'Tropo em que a significação natural de uma palavra se transporta para outra em virtude da relação de semelhança que se subentende; imagem; figura. 'in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/algumas-figuras-de-estilo/14744 [consultado em 24-12-2023].

[2] Embora os autores bíblicos usem metáforas, não eram ignorantes. Por exemplo:

Job 26:7 [ele] suspende a terra sobre o nada

Is 40:22 Ele é o que está assentado sobre o globo da terra

 

3 comentários:

  1. Ótima reflexão. Conheci um autor brasileiro que é teólogo e cientista que tem um livro bem interessante onde aborda os tipos de criacionismo e peculiaridades do hebraico. A obra se chama Genesis 1 e 2, da Editora Fiel

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