03/01/2024

ANNO HOMINIS (AH) OU ANNO MUNDI (AM) ?

 6 dias ou milhões de anos?

A questão da origem e idade do universo tem ocupado o ser humano desde sempre, começando com os antigos mitos, passando pelos filósofos, às teorias científicas. Hoje, diríamos que há dois grandes campos de opinião: os evolucionistas e os criacionistas. A principal diferença entre uns e outros está na rejeição ou aceitação de um Criador, um ser inteligente, na origem do universo e da vida. Sem Criador, a ciência não tem uma explicação para a origem da matéria/espaço/tempo.

Mas não vamos entrar neste debate.

No campo dos criacionistas, também há dois campos: os que acreditam que Deus criou o mundo em 6 dias de 24 horas – os criacionistas de terra jovem - e os que apoiam uma duração mais longa – os criacionistas de terra velha.

Não havendo (não tendo) dúvidas sobre a verdade fundamental de que Deus é a causa da existência do universo e do ser humano, como afirma a Bíblia, é mais complicada a questão de quanto tempo durou a obra da criação. E com isso a questão da idade do universo. Evitei o assunto durante muito tempo, procurando saber mais, com a mente aberta às duas hipóteses. O leitor do blog poderá ter observado que usei AH (ANNO HOMINIS), mas também AM (ANNO MUNDI). O uso de AM subentende que Deus criou os céus e a terra em 6 dias de 24 horas. Ao usar AH deixei esta sensível questão em aberto.

Ao usar AH (Anno Hominis), começamos a cronologia com a criação do homem. Neste caso, quanto à idade do ser humano, a Bíblia deixa indicações claras e informação cronológica que nos permitem calcular o tempo desde a criação de Adão até Jesus. É o que temos procurado verificar neste blogue.

Mas voltando aos dias da criação.

Uma justificação para a criação em 6 dias apoia-se na instituição, por Moisés, da semana de 7 dias. “Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do Senhor” (Ex 20:9-10) – Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou” (Êxodo 20:11).

Porque os nossos dias, de sol a sol, têm 24 horas, infere-se que os dias da criação – “e foi a tarde e a manhã o dia …” – também só tinham 24 horas.

Uma justificação para uma terra velha apoia-se em 2Pedro 3:8 “que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”. Mil, usado como hipérbole (figura de estilo que consiste no exagero de expressão, ampliando a verdadeira dimensão das coisas) permite um tempo muito mais longo, indefinido.

De acordo com os mais recentes dados científicos, o universo tem aproximadamente 13,8 bilhões de anos.


Mas o que nos diz a Palavra?

Nota: Grande parte do texto que segue devo-o a uma inspiradora conferência de John Lennox, 7 days that divide the world.  John Lennox: "Seven Days That Divide the World" - YouTube 

Será que não há uma relação metafórica entre Gn 1 e Ex 20:11? [1]

Um claro exemplo de uma metáfora na Bíblia é quando Jesus diz “eu sou a porta” (João 10:9). Não fazemos o erro de pensar que Ele é uma porta física, de madeira ou de ferro. Mas a nossa experiência do mundo natural, da realidade que nos rodeia, permite-nos interpretar e compreender esta metáfora. Jesus é, efetivamente, a “porta” para a salvação; é através dele que temos acesso a Deus.

Outra metáfora usa terminologia relativa à construção de uma casa, para explicar, entre outros, a criação da terra: “Ele lançou os fundamentos da terra, para que vacile em tempo algum (Salmo 194:5). “Do Senhor são os alicerces (ou pilares) da terra, e assentou sobre eles o mundo“ (1Samuel 2:8) – e outros numerosos versículos em que a criação da terra é assemelhada à construção de uma casa com “fundamentos”, “colunas” ou “pilares”, que fazem com que a casa está segura e não se move, senão pela ira de Deus (Sl 75:3; 82:5; 102:25; 104:5; Pv 8:29; Is 13:13; 48:13).

Se interpretássemos estes versos literalmente, continuaríamos a apoiar a teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu, defendida até ao século XVI pela comunidade científica, que a terra estava parada no centro do universo enquanto os corpos celestes orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor. Esta teoria foi desafiada primeiro por Copérnico (1473-1543), depois por Galileo (1564-1642) e Keppler (1571-1630) até que a teoria heliocêntrica (a terra move-se em volta do sol) que defendiam foi comprovada cientificamente no século XVIII por James Bradley. [2]

Assim, 1Sam 2:8 pode, sem problemas, ser considerado uma expressão metafórica, que compreendemos com base em nosso conhecimento, científico, da realidade. Embora não sendo fixa e fundada em pilares, a terra, de facto, está fixa e segura pela força da gravidade que a mantém em posição em relação aos outros astros e planetas.

Agora, quanto à metáfora dos dias da criação. Só Deus, o Criador, podia ter narrado a Adão como o mundo foi criado. Esta narrativa não é pormenorizada, mas estabelece alguns elementos fundamentais para a nossa compreensão. Criado há poucos dias, Adão não conheceria nem compreenderia o conceito de milhões de anos. Então Deus usou o termo “dia”, que era uma unidade de tempo que Adão conhecia pela experiência. Moisés, em Ex 20:11, simplesmente usou a referência à narrativa da criação. O importante não é a duração do “dia”, mas o facto de uma obra que evolui em direção a um descanso.


O uso da palavra “dia” em Génesis.

O que é que Génesis diz realmente? Como é usada a palavra “dia” (IOM)?

Verificamos que só em Gn 1 a palavra “dia” - IOM - é utilizada com vários sentidos diferentes.

No primeiro dia, Deus cria a luz, à qual chama Dia. E às trevas chamou Noite. O uso de “Dia” está aqui apenas para descrever luz, e isto em contraste com trevas/noite. Nada há que indique tratar-se de uma unidade de tempo. “Dia”, nesta passagem, é luz.

Luz/dia e trevas/noite é um conceito anterior ao fenómeno celestial cósmico da rotação da terra sobre o seu próprio eixo em volta do sol.


Só a partir do quarto dia, quando Deus cria os luminares na expansão dos céus para haver separação entre o dia e a noite, e com isso também a relação orbital entre a terra e os astros, que se torna possível entender um dia como um período de 24 horas. Mas será que a velocidade em que a terra e os planetas se movem sempre foi a mesma?

A luz (Gn 1:3) é anterior à luz do sol e dos astros. A luz é de Deus; a luz é o próprio Deus. «O Senhor é a minha luz e a minha salvação» (Salmo 27:1). Jesus é a luz que resplandeceu nas trevas, incompreendida» (João1:1-9). «Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida» (João 8:12). No final da história, na Nova Jerusalém, a cidade não necessita de sol nem de lua, não haverá mais noite e não necessitarão de lâmpada, nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumia; o Cordeiro é a sua lâmpada (Ap 21:23; 22:5).

Ao criar os “luminares” no quarto dia, Deus gerou uma analogia entre a luz verdadeira, espiritual, e a luz solar, natural, para que pudéssemos compreender (um pouco) a primeira.


Na frase “E foi a tarde e a manhã o dia … “ (Gn 1:5, 8, 13, 19, 23, 31), “dia” representa um ciclo em que se observa uma sequência de um período de dia e um período de noite, mas nada dá a entender que se trata de um período de tempo definido. Interpretar esta frase como um período de 24 horas é uma dedução de Ex 20:11, da experiência e do conhecimento da duração – atual – da rotação da terra sobre o seu eixo.

Em todos estes versículos, Deus fala algo em existência. “E disse Deus: haja ...”. O dia pode referir-se apenas ao momento em que Deus falou. Falando, iniciou um processo que pode ter durado milhões de anos, ou meros segundos.


O sétimo dia. Se consideramos todos os dias da criação como unidades de tempo com a mesma duração (quer de 24 horas na teoria de uns, quer de milhares de anos segundo a teoria de outros), o que fazemos com o sétimo dia? Do primeiro ao sexto dia, a narrativa é concluída com “E foi a tarde e a manhã o dia …”. Mas já repararam que no sétimo dia não há tarde e manhã? O sétimo dia seria então um dia muito muito longo … A ausência de “tarde e manhã” deita por terra a teoria de que todos os dias teriam literalmente uma duração igual desde o princípio da criação.

Compreendemos o sétimo dia num sentido espiritual (descanso). Na instituição da semana, é introduzida uma analogia com a criação: os dias de trabalho, como a obra de Deus, culminam em descanso, após avaliação (juízo).

Mas o nosso tempo é o tempo da terra, o tempo dos homens. Se, para Deus, mil anos é como um dia, significa que o tempo de Deus é diferente.


No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas (Gn 1:1-2). Isto (o princípio) aconteceu antes do “primeiro dia”, antes de Deus dizer “Haja luz”. O princípio é um momento indefinido no passado. Não é dito quanto tempo passou entre Gn 1:1 e Gn 1:3.


Gn 2:4 – Estas são as origens (TOLEDOT) dos céus e da terra, quando foram criados: no dia (IOM) em que o Senhor fez a terra e os céus  

Este versículo introduz a primeira secção TOLEDOT (ver ELLEH TOLEDOT). Nesta frase, a palavra “dia” refere-se ao conjunto de dias da criação, não a um único dia.


- E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia (Gn 3:8).

Esta expressão é geralmente interpretada, um pouco romanticamente, que Deus costumava passear no jardim no final do dia, quando aparece a brisa refrescante da tardinha, para ter comunhão com o homem. Mas será este o verdadeiro significado?

Literalmente, esta frase pode ser traduzida assim: Deus passeava no jardim no espírito/sopro/vento (RUAH) do dia (IOM). A palavra RUAH aparece aqui pela segunda vez no texto. A primeira é em Gn 1:2 – o Espírito (RUAH) de Deus se movia sobre a face das águas.

O espírito (RUAH) movia-se sobre a face das águas, nas trevas, e sobre a terra sem forma e vazia (v.2); e a seguir surge a luz (v.3). Em Gn 3:8, o espírito (RUAH) aparece sobre o caos provocado pelo pecado de Adão e Eva. O “dia” traz luz sobre as coisas. O dia, sendo luz, revela tudo (Lc 12:2-3). Nesta passagem, o “dia” é um dia de juízo sobre o teste a que o homem fora submetido (Gn 2:15-17). Em toda a Bíblia, há numerosas passagens sobre o “dia do Senhor”, em que “dia” não significa uma duração, mas um acontecimento que pode ser um momento como pode durar muitos dias.


Conclusão:

O uso da palavra “dia” em Génesis com diferentes sentidos (luz, um ciclo de dia e noite, um conjunto de “dias”, um acontecimento/julgamento) não parece apoiar a possibilidade de dias de 24 horas e deixa claramente aberta a porta a uma interpretação longa.

A Bíblia não discute a idade do universo, nem da terra, em lugar algum. Não é importante. Se fosse importante, não teria Deus dito exatamente qual a duração dos “dias” da criação? Não é assunto que deva levantar disputas entre crentes.

O que não quer dizer que não possamos procurar saber. “E apliquei o meu coração a esquadrinhar, e a informar-me, com sabedoria, de tudo quanto sucede debaixo do céu: esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens, para nela os exercitar” (Ecl 1:13).

Génesis não diz quando, mas diz-nos como esta criação aconteceu: Deus criou por palavras de comando. O Salmo 33 confirma Génesis: Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca … Porque falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu (Sl 33:6, 9). Se o texto não dissesse como criou, não teríamos a compreensão de que havia um Criador. O como define a criação. A vida não surgiu da matéria autonomamente. Os céus e a terra e tudo o que há neles surgiram de maneira sobrenatural. No princípio (e antes do princípio) estava o Criador.

 

Notas:

[1] Metáfora:
recurso expressivo que consiste em usar um termo ou uma ideia com o sentido de outro com o qual mantém uma relação de semelhança (Porto Editora – metáfora no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-12-24 16:22:42]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/metáfora

'Tropo em que a significação natural de uma palavra se transporta para outra em virtude da relação de semelhança que se subentende; imagem; figura. 'in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/algumas-figuras-de-estilo/14744 [consultado em 24-12-2023].

[2] Embora os autores bíblicos usem metáforas, não eram ignorantes. Por exemplo:

Job 26:7 [ele] suspende a terra sobre o nada

Is 40:22 Ele é o que está assentado sobre o globo da terra

 

13/06/2023

A BÍBLIA: UM LIVRO DE HISTÓRIA

Porque é que a Bíblia é história? Porque é que a Bíblia tem de ser história?

 Mesmo entre cristãos, as opiniões dividem-se quanto à historicidade de muitas partes da Bíblia, particularmente do livro de Génesis, deixando-se levar pelos argumentos da “ciência”, de biólogos, geólogos e cosmólogos, de arqueólogos e historiadores.

Os evolucionistas ridicularizam o relato da criação e o criacionismo. A geologia uniformitarista defende que a terra tem bilhões de anos e rejeita um dilúvio universal. Os historiadores afirmam que eventos descritos na Bíblia nunca ocorreram, que pessoas não existiram, ou pelo menos não da maneira como está escrito e quando. O êxodo do Egipto, a conquista da terra de Canaã, a existência de Abraão e dos patriarcas Isaac e Jacob, e até a existência de David e Salomão é posta em causa.

Tudo o que é “anormal” e “sobrenatural”, tudo o que desafia as alegadas constantes da física é descartado como mito, lenda e ficção (as pragas do Egipto, a passagem pelo mar … e, no Novo Testamento, Jesus transformando água em vinho, Jesus andando sobre a água, Jesus calando a tempestade, a multiplicação dos pães, as curas, a ressurreição …).

Mas é no evento mais inacreditável e sobrenatural que reside a salvação e o fundamento da nossa fé.

Paulo afirma que «se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé … se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens (1Cor 15:17,19).

Se os eventos narrados na Bíblia não são verdade histórica, não têm consequências para a vida.

A razão da nossa fé está baseada neste facto histórico e ponto culminante do plano de Deus que se desenvolveu desde “antes da fundação do mundo” (Ap 13:8): Jesus ressuscitou!

«Se Cristo não ressuscitou, se os mortos não ressuscitam, que nos aproveita isso?» Quem não crê nisto, seja coerente: «Comamos e bebamos que amanhã morreremos» (1Cor 15:32).

Por outro lado, se a ressurreição é verdade, não será também todo o resto narrado na Bíblia?

A verdadeira fé cristã está fundamentada em factos históricos, não em invenções e fábulas. Se a Bíblia não é verdade, se os eventos descritos na Bíblia não são factos históricos, a nossa fé não vale nada. Tudo não passa de uma grande ilusão.

Se Deus não é o Criador, todo o resto é irrelevante. Não reconhecer o Deus Criador, não reconhecer que Deus criou o homem/Adão (e que este não é evolução de símio, de acaso e de seleção natural), abandonar um Adão histórico e negar a queda do homem, o pecado e o juízo é negar a razão por que Jesus veio à terra para redimir a humanidade: a cruz e a ressurreição de Jesus não fazem, então, sentido.

Por mais estranhas e impossíveis que algumas partes da bíblia possam parecer aos nossos olhos do século 21, impregnados com toda a informação que vem do mundo, da ciência, da filosofia, da literatura, do cinema, da televisão, das redes sociais, a Bíblia é história, é facto.

O nosso fundamento tem de ser a autoridade da Palavra de Deus, a verdade mais alta. Afinal, vem do nosso Deus que é o Criador de todas as coisas. É nele, em Cristo, que estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.

«E digo isto, para que ninguém vos engane com palavras persuasivas … Tendo cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs subtilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo» (Col 2: 3-4, 8).


Quanto à autoridade das Escrituras, cito Herman C. Hanko (Issues in Hermeneutics. (Protestant Reformed Theological Journal, April and November, 1990, and April and November, 1991 http://www.prca.org/articles/issues_in_hermeneutics.html):

«A Escritura é diferente de qualquer outro livro. Não veio até nós para verificação. Não apresenta o seu caso para ser examinado através provas externas a ela para determinar se é ou não é credível. Não é um texto sobre a filosofia da história que apresenta opiniões extraordinárias sobre como devemos explicar a história; não apresenta opiniões que estão abertas a exame e questionamento. É a Palavra de Deus que vem para o homem como “assim diz o Senhor”. A Palavra traz com ela a autoridade do próprio Deus soberano perante quem todos os homens devem curvar-se em humildade. Depende dela o desfecho de céu ou inferno».

Quando Deus não é reconhecido, quando a autoridade das Escrituras é negada, há lugar a todo o tipo de interpretações.

… Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem, pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inexcusáveis, porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos (Rom 1:20-22).

Amontoarão para si doutores, conforme as suas próprias concupiscências. Desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas (2Tim 4:3-4).

 

As afirmações bíblicas, dizem (alguns), devem ser verificadas pela ciência. Isto significa colocar a criatura acima do Criador, a razão da mente humana acima de Deus, estabelecer a mente humana como norma e árbitro da verdade e do conhecimento.

O que o Senhor responde a esta presunção será porventura a mesma pergunta que fez a Job?

 -- Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? … (Job 38:4-5)

– Quem guiou o Espírito do Senhor? E que conselheiro o ensinou? Com quem tomou conselho, para que desse entendimento, e lhe mostrasse as veredas do juízo e lhe ensinasse sabedoria, e lhe fizesse notório o caminho da ciência? […] A quem, pois, fareis semelhante a Deus? Ou com que o comparareis? […] Ele é o que está assentado sobre o globo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos: ele é o que estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda para neles habitar (Isaías 40:13-14,18, 22).


06/04/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 2)

Na mensagem anterior (parte 1), chegámos à conclusão que a fórmula ELLEH TOLEDOT no livro de Génesis é uma frase introdutória de uma secção, marcando, ao mesmo tempo, a transição de uma secção para a seguinte. Pareceu-nos bem a proposta de Michael Harbin de traduzir a fórmula da seguinte maneira (em vez de “estas são as gerações ou origens de”):

[this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

A fórmula ELLEH TOLEDOT aparece 11 vezes em Génesis: 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2. Mas consideramos apenas 10, porque Gn 36:1 e 8 referem-se ambos a Esaú no mesmo contexto.

Parece que há, assim, 10 secções. Mas, na realidade, podemos observar que há apenas 5 secções principais, e 5 subsecções.

Como assim?

Devido à presença ou ausência da conjunção WAW (ו) no início de uma frase.

WAW (equivalente à nossa letra “v” ou “u”) é traduzido geralmente pela conjunção “e” e, por vezes, por “pois”, ”então”, “porém”, “ora”, “mas”, ”assim”, “mais”, “também”, “porque” … O WAW hebraico indica sempre uma conexão; liga uma cláusula numa sequência com outra. Uma estrutura ou unidade que começa com WAW não sugere o começo de uma história. A ausência da conjunção assinala o começo de uma nova história (e também pode ocorrer no início de uma unidade parentética explicativa dentro de uma unidade primária).

Por exemplo, o primeiro versículo da Bíblia começa com “no princípio, Deus …”. Não tem WAW. Porque não há nada antes. Só Elohim/Deus, na eternidade (Sl 90:2). Mas reparem que todos os versículos/frases seguintes começam por “e” (WAW), significando que se trata de uma narrativa contínua, uma sequência de versículos que formam uma unidade, de Gn 1:1 até Gn 2:3.

O versículo seguinte (Gn 2:4) – Estas são as TOLEDOT dos céus e da terra – não começa com WAW, o que significa que está no início de uma nova unidade de texto.

Nota: esta será outra razão porque a teoria de cólofon de Wiseman (ver mensagem anterior) não pode estar correta porque 2:4 não está conectada ao versículo anterior por WAW.

Agora vejamos as secções TOLEDOT em Génesis e onde ocorre WAW e onde não ocorre.

1

-

Estas são as TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 – 4:26)

2

-

Este é o livro das TOLEDOT de Adão (5:1 – 6:8)

3

-

waw

Estas são as TOLEDOT de Noé (6:9 – 9:29)


Estas, pois, são as TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 – 11:9)

4

-

waw

waw

waw

waw

Estas são as TOLEDOT de Sem (11:10 – 11:26)


E estas são as TOLEDOT de Terah (11:27 – 25:11)


Estas, porém, são as TOLEDOT de Ismael (25:12 – 18)


E estas são as TOLEDOT de Isaac (25:19 – 35:29)


E estas são as TOLEDOT de Esaú (36:1 – 37:1)

5

-

Estas são as TOLEDOT de Jacob (Gn 37:2 – Ex 19:1)

Vemos que há 5 unidades principais, sem WAW inicial. As outras, com WAW inicial, são subsecções.

O que nos contam?

A primeira secção TOLEDOT, dos céus e da terra, distingue-se das seguintes por não se tratar de uma pessoa humana como complemento de TOLEDOT, colocando esta secção à parte das seguintes. É uma secção introdutória. Retoma em pormenor alguns temas da criação, a formação do Éden, do homem e da mulher. Explica as origens da história da humanidade e da presente condição humana: como entrou o pecado no mundo, a morte, o mal e as suas consequências. Mas, também, anuncia a graça e misericórdia de Deus na promessa de um Salvador (3:15).

Gn 3:15 estabelece logo duas linhas genealógicas alternativas e concorrentes: a semente da serpente e a semente da mulher, os rebeldes que se afastam de Deus e os que confiam em Deus, os rejeitados e os escolhidos.

Com a rejeição de Caim, o primogénito, e a morte de Abel, a promessa (Gn 3:15) passa através de um novo filho de Adão e Eva: Seth – uma outra semente em vez de Abel (4:25; 5:3). Com Seth, começa-se a invocar o nome do Senhor (Gn 4:26).

A segunda secção TOLEDOT, o livro das gerações de Adão, traz a genealogia de Adão através de Seth (Gn 5) e o que aconteceu a toda aquela civilização que se desenvolveu depois de Adão ter sido expulso do jardim do Éden (Gn 6:1-7). Vemos que também a linhagem de Seth ficou corrompida, visto que apenas um homem achou graça aos olhos do Senhor (Gn 6:8).

A terceira secção TOLEDOT principal, as gerações de Noé, narra como o dilúvio destrói toda a terra e toda a humanidade, como Noé e a sua família são salvos na arca, e o pacto que o Senhor faz com Noé e toda a alma vivente de toda a carne, que está sobre a terra (Gn 9:9-10, 16).

A secção termina com a história de Canaan (Gn 9:20-27), onde aparece novamente esta separação entre os rebeldes e rejeitados e a linhagem da semente da promessa através de Sem, o povo do Nome (SHEM significa “nome”).

A secção TOLEDOT dos filhos de Noé, Sem, Cam e Jafeth (Gn 10:1 a 11:9) é uma subsecção das gerações de Noé. Da família salva do dilúvio procederam 70 nações. Os três filhos de Noé fundaram todas as nações e subgrupos raciais da nossa presente civilização.

No seu último cântico, Moisés refere-se a este acontecimento: «Lembra-te dos dias da antiguidade; atentai para os anos de muitas gerações … Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos dos povos conforme ao número dos filhos de Israel» (Dt 32:7-8). Foram 70, os filhos de Israel que desceram ao Egipto (Gn 46:27; Dt 10:22). O número 70 antevê a missão de Israel, a missão “missionária” junto do resto do mundo enquanto povo especial e reino sacerdotal (Ex 19:4-5) de onde viria o Salvador prometido.

Mas a condição espiritual caída da humanidade continuou a manifestar-se depois do dilúvio, como já se revelou no final da secção anterior. A rebeldia tem a mais forte expressão num dos descendentes de Cam,  Nimrod (o próprio nome significa “rebelde”!), que fundou Babel em rebeldia ao Senhor: «Edifiquemos uma cidade e uma torre e façamo-nos um nome para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra» (Gn 11:4).

A secção termina como juízo de Deus sobre Babel, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra para cumprimento do seu mandamento: Enchei a terra (Gn 9:1).

Gn 11:10 introduz uma nova secção TOLEDOT primária: as gerações de Sem. De todas as nações procedentes dos três filhos de Noé, a atenção é agora dirigida para um dos três filhos. Um estreitar progressivo do foco de toda a humanidade (pós-dilúvio) a uma família.

A genealogia de Sem conduz diretamente à subsecção TOLEDOT, as gerações de Terah (Gn 11:27). Aqui, um novo estreitar do foco.

Estaríamos à espera que a genealogia de Sem conduzisse a uma secção TOLEDOT de Abraão, mas não é o caso.

Observamos que o último da linhagem de Adão, Noé, tem 3 filhos: Sem, Cam e Jafeth. Na linhagem de Sem, é Terah que também é pai de 3 filhos: Abrão, Nacor e Haran. Da família, o foco incide agora numa só pessoa: Abraão, e depois Isaac, o filho da promessa.

A secção das gerações (TOLEDOT) de Terah é uma secção muito longa (Gn 11:27 a 25:11) que narra basicamente toda a história de Abraão até à sua morte (Gn 25:11). Pouco é dito sobre Terah, mas segundo Gn 11:31 foi Terah que iniciou a caminhada para a terra prometida, porém ficou em Haran, onde morreu. As promessas foram feitas a Abraão e Abraão obedeceu e recebeu a promessa. Mas Abraão fez alguns erros, o que resultou no nascimento de Ismael antes de Isaac, que será o herdeiro da promessa. Assim, no fim da secção TOLEDOT de Terah, estão as gerações (TOLEDOT) de Ismael (25:12-18) e de Isaac (25:19).

A subsecção TOLEDOT, as gerações de Isaac, é uma excelente defesa da tradução proposta por Harbin. “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Efetivamente, o que procedeu de Isaac foram Esaú e Jacob, cuja história é narrada nesta secção, que termina com as gerações (TOLEDOT) de Esaú (Gn 36, onde a frase “são as gerações de” aparece duas vezes: 36:1 e 9).

À secção principal TOLEDOT de Sem, segue a secção de Jacob. Cronologicamente, Sem morre com 600 anos, quando Isaac já tem 50 anos, dez anos antes do nascimento de Jacob.

A última secção TOLEDOT principal, as gerações de Jacob (Gn 37:2) centra-se na história de José e em como toda a família vai ter ao Egipto para conservação da vida (50:20). José tornou-se o salvador, o meio pelo qual a família foi preservada e as promessas – dadas e reiteradas a Abraão, Isaac e Jacob – asseguradas. De um homem (Abraão) o foco passa para as 12 tribos, um povo.

O livro de Génesis termina com a morte de José (50:26). Mas a história não termina aqui, nem termina aqui a secção TOLEDOT de Jacob.

Logo a seguir a Génesis, o livro do Êxodo começa com WAW! Isto significa que, apesar de aparentemente ser um novo livro, não é uma nova história, mas a sequência natural e ininterrompida da narrativa em Génesis. “E (WAW) estes são os nomes dos filhos de Israel, que entraram no Egipto com Jacob” (Ex 1:1).

José morreu (Gn 50:26), mas a tarefa de salvar o povo, desta vez do Egipto, passou para outro descendente de Jacob: Moisés, da linhagem de Levi.

Ex 6:14-27 “Estas são as cabeças das casas dos seus pais: os filhos de Ruben …. E os filhos de Simão …. E estes são os nomes dos filhos de Levi ….”.

Ex 6:14 não começa com WAW e podia indicar uma nova secção TOLEDOT. Mas a ausência da conjunção WAW também pode ocorrer no início de uma unidade parentética explicativa dentro de uma unidade primária. Este parece ser o caso aqui. Ex 6:14-27, com a genealogia de Levi até Aarão e Moisés, aparece no meio da narrativa de como o povo de Israel saiu do Egipto, as pragas, etc.. É um parêntese na história, a explicar de qual filho de Jacob descendiam Aarão e Moisés, que foram falar a Faraó para tirar Israel do Egipto.

Creio que a secção TOLEDOT de Jacob só termina efetivamente no final do capítulo de Ex 18. Podemos observar que todas as cláusulas (exceto a parêntese de Gn 6:14) desde Ex 1:1 até 18:27 começam com WAW.

Ex 19:1 é a primeira cláusula que não tem WAW: “Ao terceiro mês da saída dos filhos de Israel da terra do Egipto no mesmo dia, vieram ao deserto de Sinai”, embora não tenha a frase introdutória “estas são as gerações de”.

Mas aqui, no deserto de Sinai, começou realmente um novo capítulo na história de Israel e da humanidade. O povo de Israel foi salvo do Egipto, e agora vão ter parte num novo concerto e receber uma nova identidade e representação.

“Agora, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os povos: porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo” (Ex 19:5-6).

A secção TOLEDOT de Jacob engloba todo o tempo que Israel esteve no Egipto, bem como a saída do Egipto. Dos patriarcas, Abraão, Isaac e Jacob, o foco incide agora num povo na sua função missionária no mundo.

Começando em Ex 19:1, todo o resto do Velho Testamento é, de certa forma, TOLEDOT – “o que procedeu” do povo do concerto depois da saída dos filhos de Israel da terra do Egipto – o tempo da Lei – até Jesus, que veio cumprir todas as promessas. Com Jesus, o foco volta abrir para toda a humanidade (João3:16-17).


Bibliografia

Jason S. DEROUCHIE (2013). The Blessing-Commission, the Promised Offspring, and the Toledot Structure of Genesis. Journal of the Evangelical Theological Society 56/2 219-47.

Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233


27/02/2023

ELLEH TOLEDOT: a estrutura de Génesis (parte 1)

 

O livro de Génesis é estruturado em volta da fórmula hebraica “elleh TOLEDOT”, traduzida na maior parte dos casos “estas são as gerações de”. A fórmula aparece 10 vezes em Génesis (na realidade, 11 vezes, mas duas tratam das gerações de Esaú): Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 11:27; 25:12; 25:19; 36:1 e 8; 37:2.

Não é, porém, claro, nem consensual, o que TOLEDOT significa exatamente. Deriva do verbo YALAD, que significa: dar à luz, nascer, engendrar, gerar, conduzindo à tradução clássica de “gerações”. Mas, porque nem sempre a palavra “gerações” parece ser a mais adequada ao contexto, algumas traduções modernas usam por vezes outras palavras. Por exemplo:

Gn 2:4 – Esta é a génese/origem/história (toledot) dos céus e da terra

Gn 6:9 – Esta é a história (toledot) de Noé.

Gn 10:1 – Esta é a posteridade/descendência (toledot) dos filhos de Noé

É geralmente admitido que “elleh toledot” é um indicador estrutural que divide o livro em secções, e que funciona como fórmula introdutória – uma espécie de título de capítulo –, e/ou como fórmula de transição, uma maneira de conectar uma secção à outra.

Ainda outra teoria designa a fórmula como uma subscrição ou resumo do que veio antes. Em 1936, Wiseman[1] sugeriu que as ocorrências de TOLEDOT em Génesis eram, em todos os casos, cólofones. As fontes dos textos de Génesis seriam 11 tabuletas de barro, cada uma delas terminando com um cólofon assinalando a conclusão da unidade. Wiseman observara que as tabuletas mesopotâmicas tinham uma espécie de “ficha técnica”, uma assinatura, que identificava o autor da tabuleta através de uma árvore ou referência genealógica colocada no final do texto, um cólofon. No caso de múltiplas tabuletas sequenciais, havia uma frase que conectava uma tabuleta com a outra a seguir. Muitos destes registos eram histórias sobre origens familiares. Wiseman achou ver uma semelhança com as secções do livro de Génesis. O texto que precede a frase “esta é a genealogia de …” teria informação sobre os eventos que o homem nomeado nesta frase teria conhecido. Ou seja, o livro de Génesis seria o resultado da compilação e redação por Moisés de uma sequência de tabuletas, cada uma escrita por uma testemunha ocular dos eventos nelas descritos.

Para uma abordagem mais pormenorizada sobre a Hipótese de Wiseman, e a divisão de Génesis com a fórmula TOLEDOT como cólofon, remeto à mensagem Quem escreveu Génesis. Na altura, considerei uma possível explicação, mas após nova análise trago aqui uma explicação que me parece mais adequada.

Faço referência a esta teoria porque ela apresenta alguns problemas e porque nos permite contrastá-la com a leitura mais natural da fórmula ELLEH TOLEDOT (estas [são as] TOLEDOT) [2] como introdutória e, simultaneamente, de transição.

Há cinco casos em que a fórmula claramente precede uma lista de descendentes (não podendo nunca ser visto como um cólofon): 5:1 (Adão), 10:1 (os filhos de Noé); 11:10 (Sem); 25:12 (Ismael); 36:1 (Esaú). Fora do livro de Génesis, as duas ocorrências com o mesmo padrão apoia a leitura como título: Num 3:1 (as gerações de Aarão e de Moisés) e Ruth 4:18 (as gerações de Perez, o filho de Judá, até David).

Na teoria de Wiseman, a primeira vez que aparece a expressão ELLEH TOLEDOT, as TOLEDOT dos céus e da terra (Gn 2:4) referem-se à história da criação na primeira secção de Génesis (1:1 a 2:4a), e as TOLEDOT de Adão encerram outros pormenores da criação, a criação da mulher, a queda, as maldições, a promessa de um salvador e a história de Caim (Gn 2:4b a 5:1a). E toda a descendência de Adão até Noé está na história/gerações de Noé (de 5:1 a 6:9). Se, eventualmente, 2:4a, 5:1 e 6:9 possam ser compreendidos como cólofon, referindo-se à narrativa que precede, noutros casos, tal interpretação não é lógica. Por exemplo: inscrever a história de Abraão (11:28 a 25:11) sob a assinatura de Ismael, as “gerações de Ismael” (25:2), não faz sentido de todo, historicamente. Seria mais lógico se as TOLEDOT de Isaac fechassem a história de Abraão. Mas, então, as TOLEDOT de Isaac são o registo da genealogia de Ismael? Os apoiantes da teoria do cólofon tentam dar a volta à dificuldade explicando que a secção sobre Ismael é uma subsecção nas “TOLEDOT de Isaac”. A informação sobre os filhos de Ismael terá sido dada a Isaac quando os dois irmãos se juntaram por ocasião do sepultamento de seu pai Abraão. Mas esta explicação não é coerente, porque a fórmula “as TOLEDOT de Ismael” precede a genealogia de Ismael e a leitura natural é de uma introdução à lista de descendentes. O mesmo problema levanta-se em relação às gerações de Esaú em 36:1.

Se a origem da palavra TOLEDOT vem do verbo YALAD, = gerar, a palavra TOLEDOT contem a ideia de sequência e consequência, o que resulta de algo, o que alguém produz ou gera. E aponta para frente e não para trás.

Por exemplo:

O livro das TOLEDOT de Adão (Gn 5:1) descreve, através dos seus descendentes, o que procedeu do primeiro homem, o que ele gerou. Adão foi criado à semelhança de Deus (5:1), mas gerou um filho à sua semelhança (5:3). O que procedeu da queda do primeiro homem terminou na corrupção geral do género humano e a decisão do Senhor de destruir o homem que criou e a vida animal. Mas restou um homem, Noé, que achou graça aos olhos do Senhor. Gn 6:8 faz a ligação com a secção seguinte.

Em Gn 6:9 começam as gerações (TOLEDOT) de Noé. Esta secção diz que Noé gerou três filhos, mas o foco da narrativa está em Noé e na preparação da arca, no dilúvio e na aliança que Deus faz com Noé e a sua semente depois do dilúvio. Antes de terminar com a morte de Noé (9:29), a secção finaliza com o que fizeram os filhos de Noé (9:20-27) e a maldição de Canaan, cujas consequências se manifestarão na secção seguinte (Gn 10:1 a 11:9).

Gn 10 apresenta o mundo pós-dilúvio através da descendência (TOLEDOT) dos filhos de Noé (Gn 10:1), que foram introduzidos no final da secção anterior. É um novo recomeço para a humanidade, com o renovado mandado de “frutificar, multiplicar e encher a terra” (9:1) cumprido através de Shem, Cam e Jafeth. A secção termina com a confusão de Babel; como Deus teve que intervir mais uma vez para desfazer os esforços da humanidade de desobedecer às Suas orientações, mantendo-se juntos num local em vez de encher a terra.

Até agora, já encontramos 4 secções TOLEDOT.

1)      As TOLEDOT dos céus e da terra (2:4 a 4:26)

2)      O livro das TOLEDOT de Adão (5:1 a 6:8)

3)      As TOLEDOT de Noé (6:9 a 9:29)

4)      As TOLEDOT dos filhos de Noé (10:1 a 11:9)

Olhando para esta sequência, podemos concordar com Harbin que, num artigo recente [3], propõe uma tradução uniforme da fórmula ELLEH TOLEDOT. O uso repetido desta fórmula marca-a como um indicador estrutural, o que sugere um significado especializado e consistente, requerendo uma tradução uniforme. Como tal, Michael Harbin propõe especificamente traduzir ELLEH TOLEDOT como: [this is what became of …] em inglês, o que em português será algo como “o que foi feito de …” “o que procedeu de …”.

Assumindo que ELLEH TOLEDOT é, então, um título e expressão que faz a transição entre uma secção e a seguinte, observamos que a porção inicial de Génesis – o relato da criação (Gn 1:1 a 2:3) – não inicia com esta mesma fórmula mas serve como prefácio ou introdução ao livro. Afirma que Deus é o Criador de todo o universo (1:1), descreve em breves frases o processo da criação e termina com a avaliação da obra pelo próprio Deus – E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom (1:31), após o que Deus descansou no sétimo dia. Sem este prefácio, sem o Criador, não aconteceria mais nada. Não haveria história. E só o próprio Deus poderia ser o autor deste prefácio.

Isto ajuda-nos a compreender a estrutura TOLEDOT. Se Gn 1:1 a 2:3 é um prefácio, o resto do livro trata do que aconteceu depois. Deus criou um universo que era “muito bom”. E a primeira secção introduzida por ELLEH TOLEDOT (Gn 2:4 a 4:26) explica o que aconteceu a este universo “muito bom”.

Portanto, Gn 2:4, em vez da tradução “estas são as origens dos céus e da terra”, como que se referindo à secção anterior (teoria de Wiseman), parece adequado traduzir assim: ”o que foi feito dos céus e da terra que Deus criou”, introduzindo a narrativa que vai até 4:26. Primeiro, apresenta pormenores sobre alguns eventos do prefácio (a criação do jardim, do homem, da mulher). Depois vem a história da serpente e aconteceu que o homem, querendo ser autónomo, estragou tudo, desobedeceu a Deus, e recebeu as consequências da sua ação (3:14-24). E não só ele, mas toda a criação (v.17-18). “O que foi feito dos céus e da terra que o Senhor criou” e avaliou «muito bom», foi que o homem transgrediu o mandamento do Senhor e o Senhor lançou fora o homem do jardim do Éden. E segue-se a história de Caim e seus descendentes. O final da secção (Gn 4:25-26) fala de Seth, a semente que vai ocupar o lugar de Abel, é uma nota positiva que faz a transição com a secção seguinte: “então se começou a invocar o nome do Senhor”.

Na mensagem seguinte, vamos ver se a tradução proposta para ELLEH TOLEDOT - “o que foi feito de …” “o que procedeu de …” se aplica ao resto do livro de Génesis.



[1] P.J. Wiseman (18 - 19) era um oficial britânico estacionado no Médio Oriente, que se interessou pelas descobertas arqueológicas, embora não fosse formado em história ou arqueologia. Ficou intrigado pelo estilo particular em que eram redigidas centenas de tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia. Na sua opinião, estas continham a chave para a escrita original do livro de Génesis. Wiseman publicou o seu livro em 1936, que foi revisto e atualizado, em 1985, por seu filho Donald Wiseman, professor em assiriologia e diretor do British Museum, com o título “Ancient Records and the Structure of Genesis” (Nashville: Thomas Nelson, Inc., 1985).

[2] A terminação hebraica em OT é um plural feminino.

[3] Michael A. HARBIN (2021). The Toledot Structure of Genesis. Creation Research Society Quarterly 57:223-233

 


25/12/2020

CRONOLOGIA DA DEDICAÇÃO DO TEMPLO

 

QUANDO OCORRE A DEDICAÇÃO DO TEMPLO DE SALOMÃO ?

 

Elementos cronológicos:

1Rs 6:1 – No ano de 480 depois de saírem os filhos de Israel do Egipto, no ano 4º do reinado de Salomão sobre Israel, no mês de Ziv (este é o mês 2º), começou a edificar a casa do Senhor.

1Rs 6:37 – No ano 4º se pôs o fundamento da casa do Senhor, no mês de Ziv.

1Rs 6:38 – No ano 11º, no mês de Bul, que é o mês 8º, se acabou esta casa, com todas as suas dependências, e com tudo o que lhe convinha; e a edificou em 7 anos.

1Rs 8:1-2 - Então congregou Salomão os anciãos de Israel, e todos os cabeças das tribos, os príncipes dos pais, de entre os filhos de Israel, diante de si, em Jerusalém, para fazerem subir a arca do concerto do Senhor, da cidade de David, que é Sião. E todos os homens se juntaram na festa, ao rei Salomão, no mês de Etanim, que é o 7º mês.

 

Questão:

À primeira vista estas datas não apresentam dificuldades. Contudo, estranhamos que, se a obra da casa terminou no 8º mês do 11º ano de Salomão, porque é que a dedicação ocorre no 7º mês, aparentemente antes de terminar a obra?

A questão que geralmente se coloca é: se o templo não estava acabado até ao 8º mês, como podia Salomão convidar para a festa de dedicação no 7º mês? Por isso, todos os comentários apontam para o 7º mês do ano seguinte, o 12º ano de Salomão, quase um ano depois de terminar a obra. Atribuem este atraso a vários motivos: o desejo de Salomão de encontrar a melhor oportunidade em que haveria um grande número de pessoas em Jerusalém, ou porque ainda havia um grande número de objetos a produzir ou preparativos a fazer, ou porque o ano seguinte seria um ano de jubileu.

A dedicação do templo foi feito em paralelo com a festa dos tabernáculos. Mas para ter muito povo em Jerusalém, não haveria necessidade de esperar quase um ano pela festa dos tabernáculos no 7º mês. E não me parece lógico esperar quase um ano para dedicar o tempo.  Podiam tê-lo feito numa ocasião mais próxima, a Páscoa, no 1º mês, que era aliás o mês em que fora dedicado o tabernáculo no deserto no tempo de Moisés (Ex 40:17).

E não há nenhuma indicação no texto bíblico de que era o início de um ano de jubileu.

 

Proposta de solução:

A dedicação ocorreu no 7º mês do 11º ano de Salomão.

Diz em 1Rs 6:38 que, no ano 11º, no mês 8º, se acabou (verbo KALAH, forma Qal perfeito) esta casa, com todas as suas dependências, e com tudo o que lhe convinha.

Se a dedicação fosse feita no 7º mês do ano seguinte (12º ano), não se poderia dizer que no 8º mês do 11º ano a casa se acabou com todas as suas dependências, e com tudo o que lhe convinha (1Rs 6:38). Porque a casa não estava completa, faltava o principal: a arca que foi trazida na festa que Salomão organizou no 7º mês para fazer subir a arca ao templo (1Rs 8:1-2).

Depois de uma descrição extensa das obras do templo nos capítulos 1Rs 6 e 7, é concluído – Assim se acabou (verbo SHALAM forma Qal imperfeito) toda a obra que fez o rei Salomão para a casa do Senhor: então trouxe Salomão as coisas santas do seu pai, David; a prata, e o ouro, e os vasos, pôs entre os tesouros da casa do Senhor (1Rs 7:51).

Então congregou Salomão os anciãos de Israel, e todos os cabeças das tribos, os príncipes dos pais, de entre os filhos de Israel, diante de si, em Jerusalém, para fazerem subir a arca do concerto do Senhor, da cidade de David, que é Sião. E todos os homens se juntaram na festa, ao rei Salomão, no mês de Etanim, que é o 7º mês (1Rs 8:1-2).

Parece-me que a obra terminou (mas sem o templo estar completo) antes do 7º mês, talvez no 5º ou 6º, e o templo foi dedicado no 7º mês. Como a arca e os vasos sagrados foram colocados no templo no 7º mês, só no 8º mês, depois da dedicação e da colocação da arca, se pode dizer que o templo estava completo, e que se acabou (verbo KALAH, forma Qal perfeito) esta casa, com todas as suas dependências, e com tudo o que lhe convinha.

22/12/2020

Ester na história


Muito poucos acreditam na historicidade do livro de Ester. O livro é geralmente considerado uma história de ficção, uma fábula oriental, não um documento histórico. Além de alegadamente não ser histórico, também é criticado por sua aparente ausência de valor religioso.

Defendo a historicidade do livro de Ester. E quanto à ausência do nome de Deus no livro, isto não significa que Deus esteja ausente da história. Basta olhar para Ester 6.1. Foi coincidência se o rei não conseguia dormir naquela noite (a noite anterior ao dia em que Haman planeou enforcar Mardoqueu) e leu que Mardoqueu tinha evitado uma conspiração contra ele? Apesar de Deus não ser mencionado, o seu controlo sobre todas as coisas é visível. Ainda, o livro de Ester tem o seu lugar entre os outros livros. O projeto de Haman de matar todos os judeus (3:6) constituía uma ameaça à preservação da linhagem do Salvador prometido em Génesis.

Quando defendemos a historicidade de Ester, levanta-se uma questão fundamental, que é uma questão cronológica: onde se encaixa Ester, ou seja: qual é a identidade do rei chamado Assuero no livro de Ester?

A grande maioria dos comentadores e historiadores identifica Assuero com Xerxes. Outros, como Josefo, com Artaxerxes Longimano (Ant. 11.cap 6) [1]

Alguns identificam o Assuero de Ester com Dario, como já era o caso de Ussher. Esta é também a minha posição, já apresentada em várias mensagens deste blog. Com isso defendo que o Artaxerxes de Esdras e Neemias também é Dario, o que resulta numa cronologia internamente lógica, inteligível e justificável dos livros de Esdras-Neemias-Ester [2]

Para melhor compreensão, uma lista dos reis persas que nos interessam:

Ciro        (559-530)

Cambyses  (530-522)

Bardya (outros nomes: o Mago, Gaumata, Pseudo-Smérdis)

Dario     (521-486)

Xerxes  (486-465)

Artaxerxes                                                                              

 Resumimos também a cronologia dos factos dos livros de Esdras-Neemias-Ester, que se passam todos no tempo de Dario:

No 2º ano de Dario, os profetas Ageu e Zacarias incitam os judeus a retomarem a construção do templo (que estava parada há vários anos devido à oposição). Uma ordem do rei Dario autorizou a construção com base no decreto de Ciro. O templo é terminado no 6º ano de Dario. No 7º ano, Esdras regressa a Jerusalém, com a incumbência de ornar o templo com prata e ouro que trouxe da Babilónia. Por este tempo, Ester chega à fortaleza de Susan e no 7º ano de Assuero/Dario, Ester é levada ao rei. Recebe a coroa real e feita rainha em lugar de Vasti. No ano 12º de Assuero/Dario, Haman começa a por em ação a sua vingança contra Mardoqueu e os judeus. No 14º ano dá-se o pogrom e a vitória dos judeus que deu origem à festa do Purim. No 20º ano de Artaxerxes/Dario, Neemias vai para Jerusalém para restaurar o muro. No ano seguinte, quando este é terminado e as portas assentes, celebra-se e dedicação dos muros. Neemias regressa à Susan junto do rei no 32º ano de Artaxerxes/Dario.

 

Quem era Ester na história?

Poderá ela ser Artístone (transliteração grega do nome Artastana ou Irtasduna em elamita) identificada pelo historiador grego Heródoto como a rainha preferida de Dario I e filha de Ciro, irmã ou meia-irmã de Atossa? Artístone seria alegadamente a Irtasduna dos arquivos de Persépolis

Tentei coligir alguma informação sobre esta personagem. Nomeadamente, o que escreve o historiador Heródoto em Histórias; o que encontramos em fontes persas primárias, nomeadamente os arquivos de Persépolis; e o que dizem alguns estudos recentes sobre esta personagem.

 

Heródoto

A história do império persa aqueménida é principalmente conhecida através de autores gregos, como Ésquilo, Xénofon, Ctesias e, especialmente, Heródoto na sua obra ”Histórias”, produzida entre 440 e 430 a.C.. Eles tinham a sua informação geralmente de fontes secundárias (note-se que Dario reinou de 521 a 486 a.C.).

O que nos diz Heródoto sobre Artístone é o seguinte:

Quando foi proclamado rei, Dario casou com duas princesas, Atossa e Artístone, que eram filhas de Ciro. Atossa já tinha sido a mulher de Cambyses e também de Gaumata. Artístone era virgem. Casando com elas, Dario cimentou o seu direito legítimo ao trono do Império Persa, pois na realidade a sua ascensão ao trono resultou de uma tomada violenta do poder com o assassinato do usurpador Gaumata, o falso Bardiya (Hdt 3.78, 88).

Heródoto menciona o comandante de tropas Arsames, que era filho de Dario e sua mãe era a filha de Ciro, Artístone, a mulher favorita de Dario, que mandou fazer uma estátua dela em ouro (Hdt 7.69).

O casal tinha três filhos: Arsames, Gobryas e Artozostre (filha).


Arquivo de Persépolis

No Arquivo de Persépolis (Persepolis Fortification Tablets), uma fonte primária, aparece uma mulher chamada Irtasduna, que terá sido mulher de Dario e que parece ter sido uma das mulheres mais influentes na corte aqueménida.

O Arquivo de Persépolis é constituído por milhares de tabuletas administrativas. Há dois grupos de arquivos, segundo o local onde foram encontradas, são designadas como Fortification Tablets (PF), que datam de 509-494 a.C. (aprox. do 14º ao 28º ano de Dario) e Treasury Tables (PT) de 492-458 a.C. (do 30º ano de Dario ao princípio do reinado de Artaxerxes). Estes arquivos registam a alocação e distribuição de bens alimentares dos armazéns reais a administradores, trabalhadores agrícolas, artistas, pessoas da corte, sacerdotes e membros da família real. O arquivo é escrito em elamita cuneiforme.

Um reduzido grupo específico (J Texts) dos Fortification Tablets representa um tipo especial por causa do elevado estatuto dos indivíduos envolvidos e as elevadas quantidades de bens transacionados ou consumidos. Distinguem-se pelo uso de uma expressão cujo sentido é “dispensado perante o rei” e “dispensado por conta/em nome do rei”.

Neste grupo, aparecem duas mulheres: Irdabama e Irtasduna. Elas têm um estatuto especial no arquivo, que parece dar-lhes autoridade de usar os mantimentos da casa real. De facto, são as únicas que tomam o lugar do rei nos J Texts. As transações são ratificadas com o seu selo pessoal, o que parece indicar que as porções foram emitidas com base na sua autoridade pessoal.

Irtasduna é referida em 27 documentos. Em duas ocasiões, o seu nome é acompanhada do título durkšiš – princesa.

O Arquivo mostra que ela detinha pelo menos três propriedades, com uma fábrica de tapeçaria e também um palácio. As suas propriedades eram geridas por mordomos e tinha mão-de-obra própria. Existem ordens de Irtasduna aos gestores das suas propriedades.

Os documentos mostram a rainha a requisitar grandes quantidades de trigo, farinha, figos e vinho, e também ovelhas. Ela não aparece apenas como recetora de um grande número de ovelhas, trigo e vinho, mas também como alguém em nome de quem se consumiam grandes quantidades de alimentos, provavelmente pessoas que estavam dependentes dela.

Irtasduna tinha o seu próprio selo. Selos eram usados no antigo Médio Oriente para ratificar transações e documentos e comprar propriedades. Selos e as impressões dos selos são elementos arqueológicos importantes.

Irtasduna viajava pelo núcleo central do império, por vezes com Irdabama e por vezes na companhia do seu filho, o príncipe Arsama.

No ano de 498 a.C. (24º ano de Dario) ela fez um banquete para Dario, às custas dele, como mostra o selo.

 

 


Figura. - Selo de Irtasduna

Imagem retirada de Garrison, M. (1991). Seals and the Elite at Persepolis: Some Observations on Early Achaemenid Persian Art. Ars Orientalis, 21, 1-29. Retrieved December 8, 2020, from http://www.jstor.org/stable/4629411

O selo mostra uma variante do encontro heróico. Um herói, com barba quadrada, uma veste do tipo assíro e uma adaga, agarra dois touros rampantes que têm cabeça humana e cornos. Na parte inferior do selo há traços do que parece ser um incensário. Do lado esquerdo, uma planta estilizada que consiste em dois (ou três) vasos ou cestos um por cima do outro dos quais emergem folhas. Por cima disto há um torso e cabeça que formam uma figura masculina contida num duplo círculo do qual irradiam raios que terminam em estrelas. A figura olha e estende ambas as mãos para sua esquerda. Na mão parece ter uma espécie de pluma ou folha de palma. Estilisticamente, o selo tem tradições assiro-babilónicas, mesopotâmicas mas também siro-palestinianas.


 Atossa

Outra personagem histórica por vezes associada com Ester é Atossa. Ussher menciona a semelhança sonora de Atossa com Hadassah.

Atossa era filha de Ciro, de acordo com Heródoto, e irmã mais velha de Arístone, segundo Heródoto. Atossa fora consorte de Cambises II e, depois da morte deste, passou para o harém de Gaumata (o Pseudo-Smerdis). Quando Dario matou este, ele também tomou posse do harém, casou com Atossa e fê-la sua consorte principal. Atossa tinha quatro filhos com Dario, sendo Xerxes o mais velho. Mas Xerxes não era seu primogénito (Dario tinha três filhos com a sua primeira mulher) e a escolha de Dario de nomear Xerxes como co-regente (em 496 a.C.) seria devida à grande influência e poder de Atossa. Durante o reino de seu filho ela manteve o importante estatuto de rainha-mãe.

Porém, a sua fama de rainha influente no reino persa como relatada por Heródoto em «Histórias» poderá ter tido origem na peça “Os Persas” do dramaturgo grego Ésquilo, encenada pela primeira vez em 472 a.C.. A peça fala da derrota de Xerxes contra a frota grega na batalha de Salamis, mas a verdadeira protagonista é a figura imponente de Atossa, a mãe de Xerxes (embora o nome dela não seja mencionado na tragédia), que está no coração da ação, em contraste com o fraco Xerxes. A imagem da poderosa Atossa é uma imagem literária e não um facto histórico comprovado.

Relativamente à questão da sucessão existe uma fonte primária. Numa inscrição em três línguas (antigo persa, acadiano e elamita), Xerxes diz que havia outros filhos de Dario, mas que era a vontade de Ahura Mazda, a divindade persa, que Dario o fez rei. O facto de mencionar outros filhos implica que a sua nomeação como sucessor não era evidente, concordando assim com Heródoto. Mas Xerxes não faz qualquer menção do papel que a sua mãe possa ter tido. A genealogia registada na inscrição nomeia apenas a linha paterna. Atossa e seu pai, Ciro, de quem Atossa teria a sua importância, não são mencionados. Contrariamente a outros registos de reis elamitas onde as rainhas eram mencionadas com nome. Também temos o exemplo de Nabonido que, em várias inscrições, honra a sua mãe Adad-guppi. Se Atossa tivesse tanto poder, porque é que Xerxes não se referiu a ela? E terá sido realmente filha de Ciro ou invenção de Heródoto?

Ainda, apesar do seu aparente papel importante na corte persa, Atossa não é mencionada no arquivo de Persépolis (nota) e a sua existência tem sido questionada.

 

Ester

O nome hebraico de Ester era Hadassah (Ester 2:7). Vem de HADAS, que significa murta.

A palavra HADAS aparece apenas 6 vezes em todo o Velho Testamento.

Em Neemias 8:15, diz que ramos de murtas estavam entre os ramos de árvores com que tinham que fazer as cabanas da festa dos tabernáculos.

Em Isaías 41:19 e 55:13, a murta está relacionada com bênção e renovação.

Is 41:18-19 – Abrirei rios em lugares altos, e fontes no meio dos vales; tornarei o deserto em tanques de águas, e a terra seca em mananciais. Plantarei no deserto ocedro, a árvore de sita, e a murta, e a oliveira … para que todos vejam, e saibam, e considerem, e juntamente entendam que a mão do Senhor fez isto.

Is 55:13 – Em lugar do espinheiro, crescerá a faia; e em lugar da sarça, crescerá a murta.

 Em Zacarias, a palavra aparece três vezes, na profecia no 2º ano de Dario (Zac 1:7-17), do homem montado num cavalo que está entre as murtas (Zac 1:8, 10, 11). A mensagem desta profecia é de esperança – Nós andámos pela terra, e eis que toda a terra está tranquila e em descanso (1:11). E o Senhor diz assim: Voltei-me para Jerusalém com misericórdia; a minha casa nela será edificada (1:16).  

A presença das murtas parece particularmente oportuna (ou será apenas coincidência?) neste preciso tempo em que será a presença de Hadassah (murta) na corte do rei da Pérsia a garantir que os judeus fiquem salvos e o futuro de Jerusalém assegurado.

Ester seria o nome persa de Hadassah. Observamos na Bíblia que é comum os judeus adotarem, ou serem dado outro nome na cultura onde passam a estar inseridos. É o caso de Daniel, chamado Belteshazar e dos seus amigos Hananias, Misael e Azarias respetivamente Sadrach, Mesach e Abed-nego.

A interpretação mais antiga e corrente é que Ester significaria estrela, do persa ‘stara’, usado para designar o planeta Venus. Ou teria origem em Ishtar, uma divindade assiro-babilónica, associada ao amor e à guerra.

Ou ainda, ao dizer “Hadassah, que é Ester” implicaria simplesmente que Ester é o equivalente na língua persa (ou na língua meda, ASTRA) do hebraico Hadassah, significando igualmente murta [3].

Outra interpretação interessante é que se pode reconhecer em Ester a raiz hebraica de três letras S-T-R (סתר‎) que significa esconder-se, ocultar-se, estar escondido, ser protegido [4]. Isto aplica-se porque Ester ficou de certo modo escondida, não revelando a sua origem, o seu povo, a pedido de Mardoqueu.

Se Ester e Hadassah significam ambos ‘murta’, o caminho fica aberto para Hadassah/Ester ter recebido outro nome. E explicaria porque o nome de Ester não aparece em nenhum outro documento que a Bíblia.

Quanto ao nome Artístone: será a transliteração grega de um nome persa feminino, Irtasduna. A forma grega é conhecido apenas em Heródoto. O elamita Ir-taš-du-na ou Ir-da-iš-du-na reflete o antigo persa Rtastuna, pilar de Rta, significando algo como pilar da verdade [5].

Mas o que me intriga é que todos estes nomes – Ester, Artístone, Irtasduna – têm as três letras (consoantes) principais em comum, embora não na mesma ordem: S-T-R / R-T-S / R-T-S. Não poderiam ser todas formas do mesmo nome nas línguas diferentes?

 

Ester é Irtasduna dos arquivos de Persépolis?

Encontramos na história de Ester na Bíblia elementos que se coadunam com a sua identificação com Irtasduna/Artístone.

Heródoto escreveu que Artístone era a mulher favorita de Dario. Ester 2:17 diz que o rei amou a Ester mais do que a todas as mulheres, e ela alcançou perante ele graça e benevolência.

Irtasduna, na sua qualidade de rainha, recebia convidados e organizava banquetes, tendo acesso a recursos significativos. Estes banquetes traziam o rei à corte da rainha, como se vê nos arquivos de Persépolis. Na bíblia, vemos Ester fazer pelo menos dois banquetes para o rei, convidando além do rei também Haman (5:8; 7:2).

As propriedades de Irtasduna e a fábrica de tapeçaria proporcionavam-lhe um rendimento próprio que lhe permitia ser economicamente independente do rei. O palácio em Kuganaka fortalece o seu poder real, aliada ao rei mas não necessariamente subserviente.

Ester recebeu de Dario a casa de Haman (Ester 8:1). Com “casa” entende-se, certamente, não apenas uma casa de habitação, mas toda o seu património, seus bens. Ester pôs Mardoqueu sobre a casa de Haman. Ester passou a ter propriedades próprias, como Irtasduna.

Irtasduna emitiu cartas e dispensava bens “em nome do rei”. Assuero autorizou Ester a escrever cartas em nome do rei, e de selá-las com o anel do rei (8:8).

Numa monografia recente sobre Mulheres na Antiga Pérsia (1996), M. BROSIUS analisou todas as fontes gregas sobre a influência das mulheres persas. Sua conclusão é clara: se as mulheres exerciam sua influência, era sempre no interesse dos familiares, não por sede de sangue ou interesse pessoal. Nas palavras de Brosius: “A principal motivação para a ação era o bem-estar de sua família, para salvar a vida de um membro da família ou para garantir a continuidade de sua família. As mulheres podiam agir dentro de limites bem definidos, mas não podiam fazer justiça com as próprias mãos. Elas precisavam de consultar o rei e obter o seu consentimento; se elas ignorassem sua autoridade e simplesmente agissem por si mesmas, também ficariam sujeitas à punição do rei ” [6].

Esta conclusão numa investigação histórica moderna condiz exatamente com aquilo que Ester fez e o modo como ela teve de o fazer. Ela exerceu a sua influência para defender o seu povo. Mas precisou para isto de obter o consentimento do rei, não podendo agir por si própria.

Por outro lado, Heródoto escreve que Artístone era filha de Ciro, e virgem. Ester 2.2 corrobora a última afirmação. Mas será um facto histórico que Irtasduna era filha de Ciro? Não há uma fonte primária inequívoca e Heródoto não era uma testemunha contemporânea.

 

Conclusão:

Sem podermos provar que Ester era efetivamente a Irtasduna dos arquivos de Persépolis, é certamente uma boa candidata.



[1] Josefo é incoerente com a informação que fornece sobre Dario, Xerxes e Artaxerxes. Ester 1.1 diz que Assuero reinou desde Índia a Etiópia, sobre 127 províncias. Josefo diz o mesmo de Dario (Ant 11.33) e de Artaxerxes (Ant.11.186). Ele situa Esdras e Neemias no tempo de Xerxes, mas refere ocorrências relativas a Neemias no ano 25 e no ano 28 de Xerxes (Ant 11.168, 179), o que não é possível porque Xerxes só reinou 20 anos.

 [2] Ussher situa a ação de Esdras e Neemias no tempo de Artaxerxes, sucessor de Xerxes.

 [3] Yahuda, A. (1946). The Meaning of the Name Esther. Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, (2), 174-178. Retrieved December 7, 2020, from http://www.jstor.org/stable/25222106 justifica esta interpretação do ponto de vista linguístico.

 [4] Brown, Francis (2012). The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon. Boston MA: Houghton, Mifflin and Company

[5] https://iranicaonline.org/articles/artystone-persian-female

[6] Maria Brosius, Women in Ancient Persia, 559-331 B.C., Oxford: Claredon, 1998, citada por Ronayne, Jack (2018). The Influence of Irtashduna’s Power on the Royal Court of Achaemenid Persia


Bibliografia

GARRISON, M.B. Seals and the Elite at Persepolis: Some Observations on Early Achaemenid Persian Art. Ars Orientalis, Vol. 21 (1991), pp. 1-29

HENKELMAN, Wouter. "Gebiederesse van dit land ... " Vrouwen in Achaimenidisch Perzie, UNlVERSITEIT UTRECHT (Academia.edu)

RONAYNE, Jack (2018). The Influence of Irtashduna’s Power on the Royal Court of Achaemenid Persia