17/09/2013

A preservação do texto - 1


Um primeiro ponto fundamental que convém esclarecer prende-se com o texto bíblico utilizado pelos cronologistas para construírem a sua cronologia. Qual é o texto correto?

Isto é importante porquê?

Porque se verificou que, dependente do texto utilizado (três textos entram em linha de conta: o Texto Massorético, a Septuaginta e o Pentateuco Samaritano), o número de anos decorridos na cronologia será diferente. Um exemplo do livro de Génesis torna isto claro.
Génesis 5 fornece a genealogia de Adão até Noé. Adão tinha 130 anos e gerou Sete. Sete viveu 105 anos e gerou Enos. Enos viveu 90 anos e gerou a Cainã, etc.
Os nomes mencionados nesta genealogia são os dos herdeiros da promessa, a “semente da mulher”. Formam a linhagem através da qual viria o Salvador, Jesus (Lucas 3:23-38). Note-se que o filho gerado aos X anos de idade não é necessariamente o primogénito; e que o herdeiro da promessa não é (geralmente) o primogénito. Adão é o primeiro exemplo, constituindo logo um precedente. Adão já tinha pelo menos dois filhos, Caim e Abel, e filhas, porque quando Caim se retirou da presença do Senhor para a terra de Node, levou a sua mulher. Adão só gerou Sete depois de Caim ter morto Abel (Gn 4:25). Outro exemplo muito conhecido é de Jacó e Esaú, mas há outros.

O seguinte quadro comparativo mostra as diferenças na idade do patriarca quando gerou o herdeiro, segundo que o cronologista utiliza o Texto Massorético hebraico, a Septuaginta grega, ou o Pentateuco Samaritano.

 
Texto hebraico
Septuaginta
Pentateuco
Samaritano
Adão
130
230
130
Sete
105
205
105
Enos
90
190
90
Cainã
70
170
70
Maalaleel
65
165
65
Jered
162
162
62
Enoque
65
165
65
Matusalém
187
167
187
67
Lameque
182
188
53
Noé
(até ao dilúvio)
500
100
 
600
 
600
 
Total de anos até ao dilúvio
 
1655
 
2242
2262
 
1307

Aparecem três valores diferentes. Diferença devida principalmente aos 100 anos que a Septuaginta acrescenta em 6 dos 10 nomes. Jered, Matusalém e Lameque já tinham uma idade elevada, parecida com a dos outros patriarcas, quando geraram o seu filho herdeiro.
Um esquema semelhante é aplicado aos patriarcas pós-diluvianos, até Abraão (ver quadro em Anstey, 1913: p.86). De Sem até ao nascimento de Abraão, o Texto Massorético dá 352 anos, a Septuaginta 942!

Isto resulta então numa cronologia curta (Pentateuco Samaritano e Texto Massorético) e numa cronologia longa (Septuaginta). Isto significa que, quando as datas são traduzidas em datas a.C. (antes de Cristo), a criação do homem e o dilúvio serão mais recuados no tempo, no caso da Septuaginta, ou menos, no caso dos outros.

Três textos. Três cronologias. Qual é a versão correta?

Antes de procurarmos saber um pouco mais sobre estas três versões, e os obstáculos que se erguem em consequência, temos de nos situar como cristãos em relação à Palavra que Ele nos deu.
Em princípio, acreditamos que a Palavra é inerrante, pelo menos na sua versão original, no texto escrito pelo autor inspirado. Mas quando aparecem os “erros de escriba”, “os erros dos copistas”, as “contradições”, as versões revistas e corrigidas… será a Bíblia realmente inerrante? Ainda acreditamos que Ela foi preservada incorrupta?

F. Nolen Jones (2009) – um dos autores cujos textos temos estudado – insiste com muita força, e repetidamente, que temos de acreditar que Deus guardou a Sua promessa de proteger e preservar sem erros, até hoje, as Suas Palavras, que nos dirigiu. Declarar que acreditamos na inerrância da Palavra é uma questão de fé, não de “fé cega”, mas enraizada e ancorada nas promessas de Jesus.

O que é que a Bíblia diz a este respeito? (1)

Jesus disse:
"Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão” (Mc. 13:31).
Deus não prometeu preservar aquela tábua, aquele rolo, ou aquele pergaminho ou pedaço de papel sobre o qual foram escritas as suas Palavras. A promessa estende-se apenas às palavras, ou seja – ao próprio texto. Sabemos que as tábuas de pedra dos Dez Mandamentos originais não foram preservadas (Ex. 32:15-19; Dt. 10:1-5). Uma grande parte do livro “original” de Jeremias, escrito nos primeiros 23 anos do seu ministério, foi destruído pelo rei Jeoaquim no fogo do braseiro (Jr. 36; 25:1-3). A promessa requer que ainda temos connosco as Palavras de Deus, e que continuem acessíveis.
"A palavra do Senhor, porém, permanece eternamente” (I Pe. 1:25).
Esta é uma citação direta de Isaías 40:8. Assim, com base nas promessas seguras de Deus, declaramos que temos a Palavra Viva e absolutamente infalível de Deus – que Ele prometeu preservar como revelado através das Escrituras.

Em Mateus 5:18, Jesus diz
“Até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra”.
Jesus estava a falar especificamente do Velho Testamento. Um ”yod” (traduzido i na versão portuguesa) é a letra mais pequena do alfabeto hebraico; não é mais que um acento. A palavra “til” em Português é traduzida “keraia” em Grego. Significa pequeno corno, extremidade, traço, usado para designar acentos e pontos diacríticos, e refere-se aos pequenos traços que distinguem umas de outras certas letras hebraicas muito semelhantes (2).

Hoje ouve-se de diversos quadrantes que o Velho Testamento (Texto Massorético) não é inteiramente fiel - que está cheio de contradições, erros de escribas, etc. mas Jesus disse que nem a mais pequenina letra, ou mesmo um tracinho de uma letra, passaria. Estava Jesus a falar dos “originais” quando disse isso? Não, já naquele tempo não tinham acesso aos originais. Tinham cópias de cópias dos originais, e mesmo assim Jesus disse que nem a mais pequena letra tinha sido alterada. Na sinagoga de Nazaré, Jesus leu no livro do profeta Isaías, certamente apenas uma cópia, e não declinou a sua autoridade. Se Deus tivesse prometido que apenas os originais eram puros, então Jesus errou na sua avaliação das Escrituras. Se estas declarações de Jesus nas Escrituras são incorretas, então Ele não é Senhor, não é omnisciente, não é Deus. Por isso, trata-se de uma questão sobremodo grave.

A fé na preservação do texto é uma doutrina bíblica básica.
Além disso, o contexto destas promessas não é que a Palavra de Deus esteja preservada algures, num vaso numa caverna ou no deserto, perdida há centenas de anos e esperando ser encontrada por arqueólogos e restaurado ao remanescente crente da Igreja…
“Toda escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tim. 3:16-17)
Aqui o contexto é claro. A Palavra inspirada foi dada por Deus como um depósito ao Corpo de Cristo para que “o homem de Deus seja perfeito”. Por isso, para Deus poder cumprir o Seu propósito, a Sua Palavra deve permanecer acessível através do tempo para os discípulos do Senhor Jesus Cristo.

Se Deus preservou a Sua Palavra absolutamente e totalmente livre de qualquer corrupção ao longo de cerca de 1.500 anos, de Moisés a Jesus, seria lógico e razoável dizer que depois teria deixado de velar sobre a sua Palavra? A avaliação de Jesus é:
“É mais fácil passar o céu e a terra, do que cair um til sequer da lei” (Lc. 16:17)

 
Em jeito de conclusão, outra referencia a Jones (2009: p.10), a chamar a atenção para esta questão da fé na preservação da Palavra:

Se o cronologista não está seguro na fé de que Deus tem guardado as Suas promessas de preservar a Sua Palavra, ele pode facilmente gravitar para a posição atualmente aceite e em voga em círculos académicos, de crítica textual e seminários. Esta posição é a de que as Escrituras foram corrompidas ao longo do tempo e que estão atualmente no processo de serem “restauradas” à sua forma pristina original pelos críticos textuais – em vez de acreditarem que Deus sempre as “preservou providencialmente” dentro e pela Igreja crente através da história.
Até que a questão esteja resolvida a favor da “preservação”, aquele que trabalha com o texto terá sempre uma Bíblia “incerta”. O “restauracionista” ficará sempre na dúvida se alguma nova descoberta arqueológica ou nuance gramatical do Grego ou Hebraico não alterará os seus dados brutos, continuando assim com a máxima incerteza quanto à precisão do seu produto final.


Isto leva-nos à pergunta inicial, qual é o texto preservado? Onde estão depositadas as palavras originalmente faladas?


(1) O que segue foi adaptado de Jones, Floyd Nolen (2000/1989). The Septuagint: a critical analysis. Texas: Kingsword Press (6ª edição), pp.48-49
(2) Referências ao Hebraico e ao Grego são retiradas do site www.blueletterbible.org  

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