Este desejo
de alongar a cronologia, de afirmar que existiam culturas muito mais antigas do
que a Bíblia afirma, existe desde sempre e continua hoje.
Em 1655, um
certo Isaac La Peyrère encontrou uma solução para resolver alguns problemas de
cronologia bíblica. Escreveu um livro intitulado Prae-Adamitae, em que alvitra que Adão não era o primeiro homem. Não
podia ser. Quem era a mulher de Caim? De onde veio ela, se Adão e Eva só tinham
gerado Caim e Abel? A resposta de La Peyrère: ela veio de povos pré-adâmicos.
Quando Caim fugiu da presença do Senhor e teve medo de ser morto, se não
houvesse mais ninguém no mundo, não havia razão de ter medo. Isto quer dizer
que havia pessoas no mundo antes de Adão ter sido criado.
Pode-se
facilmente contrapor outros argumentos a esta teoria. Adão gerou Sete quando
tinha 130 anos, provavelmente logo depois de Caim ter morto Abel (Gn. 4:25).
Quando nasceu Caim? Não sabemos, mas possivelmente dentro de um ano ou dois de
Adão e Eva terem sido criados, em obediência ao mandamento “multiplicai-vos”. A
Bíblia não diz que Adão teve outros filhos nestes 130 anos, fora Caim e Abel,
mas também não diz que não teve. É perfeitamente razoável dizer que Adão e Eva
tiveram muitos outros filhos que Caim e Abel ao longo de 130 anos! E mesmo Caim
e Abel podem ter tido muitos filhos e filhas nesse espaço de tempo. Não havia
restrição em casar com irmãos.
Outra objeção à Bíblia tem a ver com a
longevidade das pessoas nas listas genealógicas de Génesis. Adão, 930 anos. Sete,
912. Enos, 905. Cainã, 910. Maalaleel, 895. Jered, 962. Enoque, 365, uma
exceção. Matusalém, 969. Lameque, 777. Noé, 950.
Uma longevidade de 900, 800, 700 anos é
considerada exagerada para ser histórica ou cientificamente provável. Alega-se geralmente
um princípio uniformitarista, assumindo que as leis e processos naturais
que operam no universo hoje, sempre operaram no passado, da mesma maneira e com
a mesma intensidade, e que são suficientes para explicar todas as mudanças
geológicas e físicas – noutras palavras, o presente é a chave para o passado. Noutras
palavras, se hoje vivemos em média 80 anos, no passado não terá sido muito
diferente, mais anos menos anos, de acordo com as condições de vida melhores ou
menos boas.
James Barr afirma que se pode dizer que
cronologia bíblica é uma espécie de mito ou lenda. É uma forma de contar
histórias, popular no mundo antigo, que procurava traçar um retrato da relação
de um povo com o princípio do mundo, de um plano divino atuando na história, ou
de uma conceção religiosa do lugar da humanidade no universo. A informação dita
“cronológica” neste tipo de histórias não é material histórico ou científico,
mas é cronologia lendária (Barr, 1987: p.2).
Mas porque não seria possível esta
longevidade? Em Gn 6:3 podemos ler que o Senhor limitou a idade do homem a 120
anos quando viu a maldade multiplicar-se. Verificamos que, depois do dilúvio,
as idades começam a diminuir gradualmente. Sem, 660 anos. Arfaxade, 503 anos.
Salá, 433. Reú, 239. Serugue, 230. Naor, 148. Abrão, 175. Isaque, 180. Jacob,
147. José, 110 anos.
Segundo outros, as listas de Gn. 5 e 11 não fornecem
uma cronologia exata, porque, afirmam, existem falhas (gaps é o termo utilizado em inglês) nas genealogias. Baseiam-se na
diferença entre Gn. 11 e Lucas 3:36. Lucas insere um Cainã entre Arfaxade e
Salá, mas este Cainã não aparece em Genesis 11 (versão hebraica). Se existe uma
falha, alegam, não sabemos quantos nomes terão sido omissos nestas listas
genealógicas e quanto tempo falta na realidade. Portanto, as genealogias são
seletivas e resultado de um arranjo artificial. Como se pode ver neste caso, há
dez nomes em cada uma destas listas, e o último nome tem três filhos.
É verdade que, em alguns casos, as genealogias
são seletivas. Também, na Bíblia, a expressão “filho de” nem sempre se refere à
relação direta filho-pai, mas pode referir-se a um antepassado. Jesus é chamado
filho de David, por exemplo. E há nomes que aparecem em certas genealogias, mas
são omissos noutras. Por exemplo, na genealogia de Jesus em Mateus 1 são
omissos vários nomes de reis, cujas histórias são narradas nos livros de Reis e
Crónicas. Há razões teológicas que explicam estas omissões (Jones, p.36-46, dá
vários exemplos. Ainda haverá ocasião de voltar a este assunto).
Porém, mesmo que os nomes na genealogia
sejam seletivos, nada disto altera a cronologia e a duração do tempo. Vejamos.
Sete
viveu 105 anos e gerou a Enos… Enos viveu 90 anos e gerou a Cainã ….Cainã
viveu 70 anos e gerou Maalaleel … Maalaleel viveu 65 anos e gerou a Jerede ….
(Gn 5)
O tempo é medido pelo número de anos entre
um evento e outro evento. O texto dá a idade de um patriarca quando o próximo
nasce. Assim, entre o nascimento de Enos e o nascimento de Cainã, há 90 anos. Entre
o de Cainã e o de Maalaleel, 70 anos. E entre o de Maalaleel e Jerede, 65 anos.
Etc. É só adicionar para saber quantos anos passaram. Este procedimento fixa as
vidas de dois homens um em relação ao outro, e fornece assim uma cronologia
contínua e exata.
Mas, dirão alguns, se é acrescentado um
nome, como aconteceu com Cainã na LXX, aumenta-se o número de anos.
Mas isto não se aplica aqui, se aceitamos o
TM como texto verdadeiro, bem como o texto recebido do Novo Testamento.
O Novo Testamento, em Judas 14, confirma que
não há inserção de nomes adicionais na lista de Gn 5 ao dizer que Enoque é o
sétimo depois de Adão, exatamente na posição onde aparece no Velho Testamento.
Por isso, mesmo que noutro texto do TM ou do Novo Testamento, um nome adicional
venha referido numa qualquer genealogia, nada disto altera a relação temporal
entre um patriarca e o seguinte.
Assim, a inserção, em Lucas 3:36, de Salá
entre Cainã e Arfaxade não altera nada à relação temporal entre Salá e
Arfaxade: Viveu Arfaxade 35 anos e gerou
a Salá …. Viveu Salá 30 anos e gerou a Héber …. (Gn 11). Entre Arfaxade e
Salá haverá sempre 35 anos.
A possibilidade de faltarem nomes nas
genealogias registadas não alteraria a duração do período. Independentemente de
nomes ou descendentes terem sido omissos entre dois nomes, as vidas de dois patriarcas
são matematicamente interligadas e existe uma relação fixa. Não falta tempo,
embora possam faltar nomes.
Além disso, a relação Matusalém-Noé no
período de Adão ao dilúvio demonstra o rigor do cálculo e os princípios
matemáticos na base da cronologia. O cálculo é feito por anos inteiros.
Está escrito que Matusalém tinha 969 anos
quando morreu (Gn 5:27), mas na realidade ele não completou estes 969 anos, tendo
morrido no ano do dilúvio, que começou no ano 600 da vida de Noé, no dia 17 do
segundo mês (Gn 7:11), do ano 1656 a contar desde o princípio/criação do homem.
(ver quadro na mensagem anterior).
O primeiro ano da vida de Adão é o Anno
Hominis (AH) 1. O ano em que morreu é AH 930.
Portanto, viveu 929 anos inteiros e um
número desconhecido de meses e dias. Partes de um ano são contadas como um ano
inteiro. Não é sugerido que todos nasceram no mesmo dia ou mês do ano, mas os
anos são integrais. O 131º ano de Adão é o 1º da vida de Sete. Daí podemos
concluir, diz Anstey, que Noé tem 600 anos no princípio e não no fim do seu
600º ano.
Os valores nesta lista genealógica são
precisos. Isto ainda é confirmado pelo facto de que desde o bispo Ussher (Annals of the World, 1650), nenhum
cronologista que utilizou os números do texto hebraico como base do seu cálculo
falhou em fixar o dilúvio no ano 1656 AH.
Isto não explica a razão por que o segundo
Cainã foi omisso em Genesis 11, ou acrescentado em Lucas 3. Várias hipóteses
são oferecidas por diversos autores, mas a questão de quem foi Cainã não se nos
apresenta como relevante aqui (Jones, pp.34-35, apresenta vários cenários
possíveis. Ver também JORDAN, J. The Second Cainan Question. Biblical
Chronology Newsletter, Volume II, No. 4, April 1990)
Parece-me poder concluir com Anstey (p.66-67)
que o objetivo do autor destas genealogias era, de facto, cronológico, o que
pode ser inferido do cuidado, da precisão e da forma cronológica das
declarações relativas às idades dos patriarcas.
Contra os críticos a esta posição
perguntamos: Se Deus deu estes números tão precisos e esta cuidadosa interligação
entre dois nomes, não terá sido o Seu propósito datar estes eventos? Permitir
que leitores posteriores dos escritos bíblicos possam contar o tempo?
Se o tempo é lendário ou mitológico, como
afirma James Barr, porquê valores pormenorizados? Porque não números redondos e
elevados como dados por Berosus ou na Lista de Reis Sumérios? Porquê sequer
mencionar números?
Aliás, gostava de fazer uma breve referência
a James Barr (1987), como exemplo de uma interpretação que procura um
compromisso entre a Bíblia e a cronologia secular académica.
A Bíblia fornece uma cronologia da criação
até à cruz. É o que defendem cronologistas como Anstey, Jones, Jordan e muitos
outros. E é o que estamos a analisar neste blogue. Mas esta cronologia bíblica não
tem qualquer ponto de sincronia com a cronologia que está a ser usada no meio académico.
Parecem duas histórias diferentes. O problema está principalmente na história
do antigo Médio Oriente. A cronologia secular baseia-se numa cronologia do
Egipto compilada por Maneto (300 d.C.) que apresenta uma duração muito longa
para o período egípcio. A cronologia bíblica não é considerada aceitável por
ser demasiado curta. O dilúvio a ocorrer cerca de 2350 a.C. não permite dizer
que a civilização egípcia nasceu cerca de 4000 a.C. como defendem os historiadores
académicos que se baseiam em Maneto.
Portanto, há, no meio cristão, não podendo
ou querendo contrariar a cronologia secular, quem procure soluções de
compromisso.
Diz Barr que
há, na Bíblia, material que se parece muito com datas históricas (por ex. 1Rs
15:1), e é possível que o sejam. Mas há outras datas que, se não forem de
natureza mitológica, podem ser uma construção esquemática e teórica. É o caso,
segundo Barr, de 1Rs 6:1, onde está escrito que Salomão começou a construção do
templo no ano 480 depois do êxodo do povo do Egipto. Um número demasiado
redondo para poder ser real. Barr apresenta uma explicação muito estranha
quanto à cronologia bíblica:
Barr faz
distinção entre a intenção literal do autor e a verdade histórica e científica.
Os números não são, para ele, historicamente, cientificamente ou factualmente
verdade, isto é, alguns são de natureza mítica ou lendária. Mas em fornecer
estes números, a intenção do autor era literal. Os autores bíblicos pensavam
que estes números correspondiam ao facto. Do ponto de vista do autor bíblico e
seu público, no que diz respeito a dados cronológicos, estes eram intencionados
como cientificamente verdade. As datas e números não teriam qualquer uso ou
significado se esta não fosse a intenção.
Citamos:
“The
figures do not correspond with actual fact, that is, they or some of them are
legendary or mythical in character, but the biblical writers in overwhelming
probability did think that they corresponded to actual fact”… “from the point of view of the biblical
writers and their public, as far as concerns the chronological data, it was
intended as scientifically true, and the dates and figures do not have any use
or any meaning if they were not so intended” (Barr, 1987: p.5).
Uma
interpretação no mínimo estranha… e que põe em causa a verdade bíblica.