26/10/2013

GENESIS 5 E 11

No texto anterior falámos das motivações dos tradutores da LXX para alongar a cronologia bíblica.

Este desejo de alongar a cronologia, de afirmar que existiam culturas muito mais antigas do que a Bíblia afirma, existe desde sempre e continua hoje.

Em 1655, um certo Isaac La Peyrère encontrou uma solução para resolver alguns problemas de cronologia bíblica. Escreveu um livro intitulado Prae-Adamitae, em que alvitra que Adão não era o primeiro homem. Não podia ser. Quem era a mulher de Caim? De onde veio ela, se Adão e Eva só tinham gerado Caim e Abel? A resposta de La Peyrère: ela veio de povos pré-adâmicos. Quando Caim fugiu da presença do Senhor e teve medo de ser morto, se não houvesse mais ninguém no mundo, não havia razão de ter medo. Isto quer dizer que havia pessoas no mundo antes de Adão ter sido criado.

Pode-se facilmente contrapor outros argumentos a esta teoria. Adão gerou Sete quando tinha 130 anos, provavelmente logo depois de Caim ter morto Abel (Gn. 4:25). Quando nasceu Caim? Não sabemos, mas possivelmente dentro de um ano ou dois de Adão e Eva terem sido criados, em obediência ao mandamento “multiplicai-vos”. A Bíblia não diz que Adão teve outros filhos nestes 130 anos, fora Caim e Abel, mas também não diz que não teve. É perfeitamente razoável dizer que Adão e Eva tiveram muitos outros filhos que Caim e Abel ao longo de 130 anos! E mesmo Caim e Abel podem ter tido muitos filhos e filhas nesse espaço de tempo. Não havia restrição em casar com irmãos.
Outra objeção à Bíblia tem a ver com a longevidade das pessoas nas listas genealógicas de Génesis. Adão, 930 anos. Sete, 912. Enos, 905. Cainã, 910. Maalaleel, 895. Jered, 962. Enoque, 365, uma exceção. Matusalém, 969. Lameque, 777. Noé, 950.

Uma longevidade de 900, 800, 700 anos é considerada exagerada para ser histórica ou cientificamente provável. Alega-se geralmente um princípio uniformitarista, assumindo que as leis e processos naturais que operam no universo hoje, sempre operaram no passado, da mesma maneira e com a mesma intensidade, e que são suficientes para explicar todas as mudanças geológicas e físicas – noutras palavras, o presente é a chave para o passado. Noutras palavras, se hoje vivemos em média 80 anos, no passado não terá sido muito diferente, mais anos menos anos, de acordo com as condições de vida melhores ou menos boas.

James Barr afirma que se pode dizer que cronologia bíblica é uma espécie de mito ou lenda. É uma forma de contar histórias, popular no mundo antigo, que procurava traçar um retrato da relação de um povo com o princípio do mundo, de um plano divino atuando na história, ou de uma conceção religiosa do lugar da humanidade no universo. A informação dita “cronológica” neste tipo de histórias não é material histórico ou científico, mas é cronologia lendária (Barr, 1987: p.2).

Mas porque não seria possível esta longevidade? Em Gn 6:3 podemos ler que o Senhor limitou a idade do homem a 120 anos quando viu a maldade multiplicar-se. Verificamos que, depois do dilúvio, as idades começam a diminuir gradualmente. Sem, 660 anos. Arfaxade, 503 anos. Salá, 433. Reú, 239. Serugue, 230. Naor, 148. Abrão, 175. Isaque, 180. Jacob, 147. José, 110 anos.

Segundo outros, as listas de Gn. 5 e 11 não fornecem uma cronologia exata, porque, afirmam, existem falhas (gaps é o termo utilizado em inglês) nas genealogias. Baseiam-se na diferença entre Gn. 11 e Lucas 3:36. Lucas insere um Cainã entre Arfaxade e Salá, mas este Cainã não aparece em Genesis 11 (versão hebraica). Se existe uma falha, alegam, não sabemos quantos nomes terão sido omissos nestas listas genealógicas e quanto tempo falta na realidade. Portanto, as genealogias são seletivas e resultado de um arranjo artificial. Como se pode ver neste caso, há dez nomes em cada uma destas listas, e o último nome tem três filhos.

É verdade que, em alguns casos, as genealogias são seletivas. Também, na Bíblia, a expressão “filho de” nem sempre se refere à relação direta filho-pai, mas pode referir-se a um antepassado. Jesus é chamado filho de David, por exemplo. E há nomes que aparecem em certas genealogias, mas são omissos noutras. Por exemplo, na genealogia de Jesus em Mateus 1 são omissos vários nomes de reis, cujas histórias são narradas nos livros de Reis e Crónicas. Há razões teológicas que explicam estas omissões (Jones, p.36-46, dá vários exemplos. Ainda haverá ocasião de voltar a este assunto).

Porém, mesmo que os nomes na genealogia sejam seletivos, nada disto altera a cronologia e a duração do tempo. Vejamos.

Sete viveu 105 anos e gerou a Enos… Enos viveu 90 anos e gerou a Cainã ….Cainã viveu 70 anos e gerou Maalaleel … Maalaleel viveu 65 anos e gerou a Jerede ….  (Gn 5)

O tempo é medido pelo número de anos entre um evento e outro evento. O texto dá a idade de um patriarca quando o próximo nasce. Assim, entre o nascimento de Enos e o nascimento de Cainã, há 90 anos. Entre o de Cainã e o de Maalaleel, 70 anos. E entre o de Maalaleel e Jerede, 65 anos. Etc. É só adicionar para saber quantos anos passaram. Este procedimento fixa as vidas de dois homens um em relação ao outro, e fornece assim uma cronologia contínua e exata.

Mas, dirão alguns, se é acrescentado um nome, como aconteceu com Cainã na LXX, aumenta-se o número de anos.

Mas isto não se aplica aqui, se aceitamos o TM como texto verdadeiro, bem como o texto recebido do Novo Testamento.

O Novo Testamento, em Judas 14, confirma que não há inserção de nomes adicionais na lista de Gn 5 ao dizer que Enoque é o sétimo depois de Adão, exatamente na posição onde aparece no Velho Testamento. Por isso, mesmo que noutro texto do TM ou do Novo Testamento, um nome adicional venha referido numa qualquer genealogia, nada disto altera a relação temporal entre um patriarca e o seguinte.

Assim, a inserção, em Lucas 3:36, de Salá entre Cainã e Arfaxade não altera nada à relação temporal entre Salá e Arfaxade: Viveu Arfaxade 35 anos e gerou a Salá …. Viveu Salá 30 anos e gerou a Héber …. (Gn 11). Entre Arfaxade e Salá haverá sempre 35 anos.

A possibilidade de faltarem nomes nas genealogias registadas não alteraria a duração do período. Independentemente de nomes ou descendentes terem sido omissos entre dois nomes, as vidas de dois patriarcas são matematicamente interligadas e existe uma relação fixa. Não falta tempo, embora possam faltar nomes.

Além disso, a relação Matusalém-Noé no período de Adão ao dilúvio demonstra o rigor do cálculo e os princípios matemáticos na base da cronologia. O cálculo é feito por anos inteiros.

Está escrito que Matusalém tinha 969 anos quando morreu (Gn 5:27), mas na realidade ele não completou estes 969 anos, tendo morrido no ano do dilúvio, que começou no ano 600 da vida de Noé, no dia 17 do segundo mês (Gn 7:11), do ano 1656 a contar desde o princípio/criação do homem. (ver quadro na mensagem anterior).

O primeiro ano da vida de Adão é o Anno Hominis (AH) 1. O ano em que morreu é AH 930.

Portanto, viveu 929 anos inteiros e um número desconhecido de meses e dias. Partes de um ano são contadas como um ano inteiro. Não é sugerido que todos nasceram no mesmo dia ou mês do ano, mas os anos são integrais. O 131º ano de Adão é o 1º da vida de Sete. Daí podemos concluir, diz Anstey, que Noé tem 600 anos no princípio e não no fim do seu 600º ano.

Os valores nesta lista genealógica são precisos. Isto ainda é confirmado pelo facto de que desde o bispo Ussher (Annals of the World, 1650), nenhum cronologista que utilizou os números do texto hebraico como base do seu cálculo falhou em fixar o dilúvio no ano 1656 AH.

Isto não explica a razão por que o segundo Cainã foi omisso em Genesis 11, ou acrescentado em Lucas 3. Várias hipóteses são oferecidas por diversos autores, mas a questão de quem foi Cainã não se nos apresenta como relevante aqui (Jones, pp.34-35, apresenta vários cenários possíveis. Ver também JORDAN, J. The Second Cainan Question. Biblical Chronology Newsletter, Volume II, No. 4, April 1990)

Parece-me poder concluir com Anstey (p.66-67) que o objetivo do autor destas genealogias era, de facto, cronológico, o que pode ser inferido do cuidado, da precisão e da forma cronológica das declarações relativas às idades dos patriarcas.

Contra os críticos a esta posição perguntamos: Se Deus deu estes números tão precisos e esta cuidadosa interligação entre dois nomes, não terá sido o Seu propósito datar estes eventos? Permitir que leitores posteriores dos escritos bíblicos possam contar o tempo?

Se o tempo é lendário ou mitológico, como afirma James Barr, porquê valores pormenorizados? Porque não números redondos e elevados como dados por Berosus ou na Lista de Reis Sumérios? Porquê sequer mencionar números?

Aliás, gostava de fazer uma breve referência a James Barr (1987), como exemplo de uma interpretação que procura um compromisso entre a Bíblia e a cronologia secular académica.

A Bíblia fornece uma cronologia da criação até à cruz. É o que defendem cronologistas como Anstey, Jones, Jordan e muitos outros. E é o que estamos a analisar neste blogue. Mas esta cronologia bíblica não tem qualquer ponto de sincronia com a cronologia que está a ser usada no meio académico. Parecem duas histórias diferentes. O problema está principalmente na história do antigo Médio Oriente. A cronologia secular baseia-se numa cronologia do Egipto compilada por Maneto (300 d.C.) que apresenta uma duração muito longa para o período egípcio. A cronologia bíblica não é considerada aceitável por ser demasiado curta. O dilúvio a ocorrer cerca de 2350 a.C. não permite dizer que a civilização egípcia nasceu cerca de 4000 a.C. como defendem os historiadores académicos que se baseiam em Maneto.

Portanto, há, no meio cristão, não podendo ou querendo contrariar a cronologia secular, quem procure soluções de compromisso.

Diz Barr que há, na Bíblia, material que se parece muito com datas históricas (por ex. 1Rs 15:1), e é possível que o sejam. Mas há outras datas que, se não forem de natureza mitológica, podem ser uma construção esquemática e teórica. É o caso, segundo Barr, de 1Rs 6:1, onde está escrito que Salomão começou a construção do templo no ano 480 depois do êxodo do povo do Egipto. Um número demasiado redondo para poder ser real. Barr apresenta uma explicação muito estranha quanto à cronologia bíblica:

Barr faz distinção entre a intenção literal do autor e a verdade histórica e científica. Os números não são, para ele, historicamente, cientificamente ou factualmente verdade, isto é, alguns são de natureza mítica ou lendária. Mas em fornecer estes números, a intenção do autor era literal. Os autores bíblicos pensavam que estes números correspondiam ao facto. Do ponto de vista do autor bíblico e seu público, no que diz respeito a dados cronológicos, estes eram intencionados como cientificamente verdade. As datas e números não teriam qualquer uso ou significado se esta não fosse a intenção.

Citamos:

 “The figures do not correspond with actual fact, that is, they or some of them are legendary or mythical in character, but the biblical writers in overwhelming probability did think that they corresponded to actual fact”… “from the point of view of the biblical writers and their public, as far as concerns the chronological data, it was intended as scientifically true, and the dates and figures do not have any use or any meaning if they were not so intended” (Barr, 1987: p.5).

Uma interpretação no mínimo estranha… e que põe em causa a verdade bíblica.

2 comentários:

  1. Anne.. por acaso você tem a bibliografia destas citações? Se vc pudesse postar seria legal.

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    1. As citações referem-se à bibliografia no separador, em cima, que diz Bibliografia.

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