30/11/2013

A DISPERSÃO PELA TERRA


Em Génesis 10 são registadas as gerações dos filhos de Noé, que formam as 70 nações disseminadas depois do dilúvio.
Geralmente é presumido que a confusão de linguagem gerada em Babel foi o motivo da dispersão dos descendentes de Noé por toda a superfície da terra. Antes disto, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar (Gn 11:1). E que esta dispersão se deu nos dias de Pelegue (Gn 10:25).

Contudo, temos várias razões para crer que a dispersão das nações pelas terras e ilhas é anterior a (ou pelo menos começou mais cedo), e não consequência, da confusão de Babel. E que a história da torre de Babel tem outro significado.
Tentemos uma reconstrução cronológica dos factos:

Depois do dilúvio, Deus ordenou a Noé e seus filhos: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra (Gn9:1). É improvável que todos os filhos e descendentes de Noé tenham desobedecido ao mandamento do Senhor, ficando por mais de 100 anos em um só lugar (do dilúvio ao nascimento de Pelegue são 101 anos), na terra de Sinear, de onde só saíram quando Deus confundiu a sua linguagem.
Gn 10:4-5 - Os [filhos] de Javã [que é filho de Jafé] são: Elisá, Társis, Quitim e Dodanim. Estes repartiram entre si as ilhas nas nações (lit. as ilhas dos goyim = gentios) nas suas terras, cada qual segundo a sua língua, segundo as suas famílias, em suas nações.

Os filhos de Javã são contemporâneos de Nimrode. A repartição das ilhas das nações entre os filhos de Javã (Gn 10:4-5) parece ocorrer pelo menos uma geração antes da confusão de Babel. É natural que, com o crescimento da população, as famílias começassem a espalhar-se e as línguas a diversificarem-se pela distância e afastamento.

Gn 10:8-12 – Cuxe, filho de Cão, gerou Nimrode… O princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear. Daquela terra saiu ele para a Assíria e edificou Nínive, Reobote-Ir e Calá…
Babel é o início do reino de Nimrode. Todas as famílias descendentes de Noé não ficaram no mesmo lugar, senão seriam todos súbditos de Nimrode. Foram todos os descendentes de Sem, Jafé e Cão súbditos de Nimrode? Improvável.

Mas então quem são “eles” que partiram do oriente e deram com uma planície na terra de Sinear e habitaram ali (Gn 11:2)?
Gn 10:25 – A Héber nasceram dois filhos: um teve por nome Pelegue, porquanto em seus dias se repartiu a terra; e o nome do seu irmão foi Joctã.

Gn 10:26-30 – … Os filhos de Joctã habitaram desde Messa, indo para Sefar, montanha do Oriente.
Gn 11:1-2 – Ora em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar. Sucedeu que, partindo eles do oriente, deram com uma planície na terra de Sinear; e habitaram ali.

“Eles” terão sido os filhos de Joctã, que habitaram desde Messa, indo para Sefar, montanha do oriente (Gn 10:30)? E que depois partiram do oriente para irem habitar em Sinear? E que se juntaram aos descendentes de Nimrode em Babel na rebeldia contra Deus? Para que não fossem espalhados por toda a terra (Gn 11:4) em vez de encherem toda a terra?
Héber tinha dois filhos, Pelegue e Joctã. A linha de Joctã aliou-se a Nimrode, e apostatou, enquanto a linha de Pelegue conduziu a Abrão.

O mundo foi dividido nos dias de Pelegue e Joctã. É neste contexto que deve ser lido o incidente de Babel. Porém, o incidente de Babel tem um significado diferente do contexto de Gn 10:5, 20 e 31, baseado no uso de palavras hebraicas diferentes para língua, linguagem, que se encontram traduzidas em português com a mesma palavra ‘língua’ ou ‘linguagem’.
Referimos aqui muito resumidamente a interpretação de James Jordan (2007).The handwriting on the wall. A commentary on the book of Daniel. Powder Springs, GA: American Vision, pp. 88-101)

Em Gn 10:5, 20 e 31, a palavra traduzida ‘língua’ ou ‘linguagem’ é LASHON, significando língua (o órgão do corpo) e língua, idioma.
Em Gn 11:1 – em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar – aqui ‘linguagem’ é tradução de SAPHAH (lábio) e ‘maneira de falar’ usa a palavra DABAR (palavra).

A palavra SAPHAH, literalmente 'lábio' (1 Sam 1:13), refere-se ao conteúdo do que se fala (por ex. Ex 6:12, 30), não à forma ou idioma. ‘Uma maneira de falar’ refere-se ao vocabulário, mas “um lábio” refere-se à religião.
LASHON é empregado por exemplo em Dt 28:49, Ne 13:24, Ester 1:22,3:12, Is 28:11 onde se refere às línguas faladas pelos diferentes povos.

‘Lábio’ (SAPHAH) está associado à confissão religiosa. Darei lábios puros aos povos (Sof 3:9); o que proferiram os teus lábios, isto guardarás (Dt 23:23); nunca os meus lábios falarão injustiça (Jó 27:4); as minhas razões provam a sinceridade do meu coração, e os meus lábios proferem o puro saber (Jó 33:3); proclamei as boas novas de justiça na grande congregação, jamais cerrei os lábios (Sl 40:9); sou homem de lábios impuros (Is 6:5); …
O que aconteceu em Babel não foi em primeiro lugar e apenas uma divisão de línguas mas uma divisão em termos de religião.

Os Semitas foram estabelecidos como representantes sacerdotais em Gn 9:26-27. O pecado de um ramo do povo sacerdotal afetou toda a humanidade – toda a terra (Gn 11;1 e 11:9) – em termos de língua e religião, embora toda a humanidade não estivesse presente em Babel.

04/11/2013

SEM, CÃO, JAFÉ e CANAÃ

O primeiro período da história da humanidade, de Adão até ao dilúvio, não traz qualquer dificuldade no cálculo da cronologia.

Entre Noé, Sem e Arfaxade (que se seguem na linhagem de Jesus), há uma aparente descontinuidade.
Gn 5:32 diz que Noé era da idade de 500 anos quando gerou Sem, Cão e Jafé.

Trata-se de trigémeos? Ou consta apenas o ano de nascimento do primogénito?
Gn 7:6 diz que Noé tinha 600 anos (isto é, no ano 600 da vida de Noé) quando as águas do dilúvio inundaram a terra.

Gn 8:13 - No ano 601 da vida de Noé, no primeiro dia do primeiro mês secaram as águas e Noé removeu a cobertura.
Gn 11:10 – Sem era da idade de 100 anos quando gerou a Arfaxade, 2 anos depois do dilúvio.

Portanto, se o dilúvio teve lugar no ano 1656, Arfaxade nasceu 2 anos depois, portanto em 1658.
Como Gn 5:32 menciona Sem em primeiro lugar, estaríamos inclinados a dizer que Sem é o primogénito. Mas se isto fosse o caso Sem devia ter 100 anos quando o dilúvio começou e não 2 anos depois do dilúvio. Sabemos, porém, que Sem está incluído na linhagem da semente redentora que levará até Jesus, por isso ele é mencionado primeiro. Mas não é o primogénito.

Isto leva-nos ao tema do primogénito.
A história de Caim, Abel e Sete já nos revelou que ser o primogénito não significa necessariamente ser um elo na linhagem que garante a continuação da promessa de Gn 3:15, ou seja na linhagem genealógica de Jesus.

Caim era o primogénito. Mas Abel seria o herdeiro, se não tivesse sido morto, pelo que Eva disse quando deu à luz Sete: Deus me concedeu outro descendente em lugar de Abel (Gn 4:25).
Sem também não era o primogénito, mas era o herdeiro. Quem era o primogénito? Cão ou Jafé?

A maioria defende que Jafé era o mais velho e Cão o mais novo, baseado em Gn 9:24 que diz que Noé soube o que lhe fizera o filho mais moço, que por sua vez remete ao v.22 que diz que Cão, tendo entrado na tenda do pai, viu a sua nudez. Além disso, baseiam-se em Gn 10:21 (King James Bible) onde diz que Jafé é o irmão mais velho de Sem.
Aparentemente, não há que se enganar.
No entanto, relativamente a este último versículo, várias traduções (entre outras a que usamos de João Ferreira de Almeida) dizem que Sem é irmão mais velho de Jafé. Neste caso, Jafé será o mais novo e Cão o mais velho. Mas então o que fazer de Gn 9:24 que parece indicar que Cão era o mais novo?

Há prós e contras para as duas interpretações.

Proponho a seguinte hipótese:
- Cão é o mais velho, e perdeu o direito de primogenitura a favor de Sem, o segundo filho, o irmão do meio. Do modo como, provavelmente, Caim perdeu a primogenitura para Abel.

- Jafé é o mais novo. Nada é dito dele que lhe tivesse feito perder o seu direito de primogénito se ele fosse o mais velho.

- Canaã, filho mais velho e herdeiro de Cão, é o mais novo a que se refere Gn 9:24. Possivelmente foi adotado por Noé, tal como Jacó adotou como seus os filhos de José, Efraim e Manassés. Canaã é amaldiçoado porque Cão perdeu o seu direito de primogénito e, por conseguinte, foi excluído da linhagem da semente da mulher.

Penso que a solução pode ser encontrada no significado da terra de Canaã, a terra prometida, a terra da herança. De quem é a posse? A terra que pertence ao filho mais novo (considerando Cão o mais novo) passaria a ser a terra que Deus prometeu a Abraão? Logicamente, não deveria ser a terra do filho primogénito que passasse a ser a terra prometida, a terra que mana leite e mel, duplamente abençoada? E esta terra passaria a ser herança daquele que substitui o primogénito?
Olhemos para dois exemplos onde se trata de primogenitura: 1) Jacó e Esaú, e 2) a situação de Ruben, Judá e José.

Esaú vendeu o seu direito de primogenitura a Jacó (Gn 25:27-34). Mais tarde, Jacó engana Isaque e recebe a bênção do primogénito (Gn 27:35), que teria sido de Esaú se este não tivesse vendido o direito. Esaú ficou sem bênção alguma (Gn 27:36-37; Hb 12:16-17).
Ruben, primogénito de Jacó, perdeu o direito e a bênção porque se deitou com a concubina de seu pai (Gn 35:22; 49:3-4). Em 1 Crónicas 5:1-2 lemos que Ruben não foi contado como primogénito e que a sua primogenitura foi dada aos filhos de José. De Judá veio o príncipe, porém o direito da primogenitura foi de José.

Depreendemos destes dois exemplos que o direito de primogenitura não era inalienável. O primogénito de facto podia perder este direito, por pecado, até mesmo vendê-lo.
Em que consistia esse direito de primogenitura e a bênção associada?

- Deus te dê do orvalho do céu e da exuberância da terra, e fartura de trigo e de mosto (Gn27:28) = prosperidade vinda da terra, porção dobrada (Dt 21:17)
- Sirvam-te povos, e nações te reverenciem: sê senhor de teus irmãos e os filhos de tua mãe se encurvem a ti (Gn 27:29) = autoridade, domínio, precedência (2 Cro 21:3)

- Maldito seja o que te amaldiçoar, e abençoado o que te abençoar. (Gn27:29)
Esaú viveria longe dos lugares férteis da terra, sem orvalho que cai do alto. Viveria da espada e serviria a seu irmão (Gn 27:40).

Ruben perdeu o direito. Simeaõ e Levi também não entraram em linha de conta pela violência que fizeram (Gn 49:5-7). A autoridade, o domínio, o cetro passou a pertencer a Judá, quarto filho de Lia (Gn 49:8-12). A bênção do primogénito - a porção dobrada - foi para José, filho mais velho de Raquel (os filhos das concubinas de Jacó não entraram em linha de conta), através de Efraim e Manassés, filhos de José.
Depois de Jacó, o direito de primogenitura é repartido por dois. José recebeu o direito de primogenitura – a bênção da porção dobrada –, mas quem está na linhagem de Jesus é Judá, não José. Judá é o príncipe, que terá o domínio, de onde virá a dinastia de David, o rei.

Esta transmissão da primogenitura de Jacó para um filho de Lia e um filho de Raquel está em concordância com Deuteronómio 21:15-17: Se um homem tiver duas mulheres, uma a quem ama e outra a quem aborrece, e uma e outra lhe derem filhos, e o primogénito for da aborrecida, no dia em que fizer herdar a seus filhos aquilo que possuir não poderá dar a primogenitura ao filho da amada, preferindo-o ao filho da aborrecida, que é o primogénito. Mas ao filho da aborrecida reconhecerá por primogénito, dando-lhe dobrada porção de tudo quanto possuir; porquanto é o primogénito do seu vigor: o direito da primogenitura é dele.
Isto também dá a entender que o direito de primogenitura não pode ser alienada pelo pai por capricho. Embora José fosse o filho mais amado de Jacó (Gn 37:3), Jacó não o podia privilegiar sobre os filhos de Lia (Ruben, Simeão, Levi e Judá).

O que me leva a concluir que Jafé, nada tendo feito para desmerecer o direito de primogénito, não terá sido por Noé (por Deus) preterido a favor de Sem. Cão, sendo o mais velho, sim, perdeu o direito de primogenitura pelo seu comportamento.

Quem considera Jafé o mais velho (é o caso de Jordan), não tem explicação para a preferência de Sem sobre Jafé. Diz apenas que em todo o livro de Génesis, o filho primogénito é posto de lado a favor de um filho mais novo, indicando assim a necessidade de um segundo Adão (JORDAN, J. The sin of Ham and the curse of Canaan. An Exposition of Genesis 9:20-27. Part 1 & 2. Biblical Horizons Newsletter, nº 96, 97, 98. 1997).
Mas tiraria o Senhor a primogenitura a alguém sem uma razão válida, para simbolicamente ilustrar a necessidade de um segundo Adão, filho mais novo?