Para fazer isto, um bom ponto de partida parece-me ser um estudo
de Immanuel Velikovsky (1897-1979), «Ages in chaos», publicado pela primeira vez
em 1952. Ele propôs uma cronologia revista para o antigo Egipto, Grécia, Israel
e outras culturas do antigo Médio Oriente, no sentido de reconciliar a história
bíblica e a arqueologia e cronologia egípcia convencional.
Em geral, as teorias de Velikovsky têm sido vigorosamente
rejeitadas ou ignoradas pela comunidade académica. No entanto, os seus livros
têm lançado o debate sobre a questão e outros autores (como Donovan Courville,
Peter James e David Rohl) inspiraram-se em Velikovsky e desenvolveram as suas
próprias propostas de revisão cronológica.
Velikovsky não foi o primeiro a apresentar alternativas à
cronologia tradicional aceite no meio académico, baseada nas listas dinásticas
de Maneto. Depois de Isaac Newton, alguns espíritos
independentes se levantaram, nos séculos XIX e XX, para criticar as fraquezas da cronologia recebida
para o Egipto e, através desta, a cronologia de todo o Médio Oriente, que se
guia pela história do Egipto.
No século XIX: EW. Hengstenberg, Ernest Havet, J.Lieblin, Cecil Torr.
No século
XX: A.S. Yahouda, Donovan Courville, John Dayton, Peter James, David Rohl,
Roger Henry (ver resumos em BERTHOUD, 2006).
Mais informação sobre a questão da revisão da história, ver
também CROWE, John (2007), The revision of ancient history. A perspective (http://www.sis-group.org.uk/ancient.htm).
Velikovsky estabeleceu concordâncias entre a história do
antigo Egipto e a histórica bíblica de Israel. Mas as suas conclusões não são
resultado de uma aplicação direta da cronologia bíblica à história do Egipto,
porque este método não se adaptava ao seu objetivo, visto que os dados
cronológicos de um e outro não são concordantes (como já vimos). Velikovsky considerou
os documentos bíblicos como documentos históricos (o que não é o caso da maior
parte dos historiadores). Ele tentou encontrar na história conhecida do Egipto
eventos que correspondessem aos que nos relatam os anais de Israel, porém sem
ter em consideração o esquema cronológico convencionalmente utilizado. Encontrou
concordâncias, em grande número e bastante espetaculares.
Em «Ages in chaos», Velikovsky fornece os resultados das
suas investigações sobre a sincronização entre a história bíblica do povo de
Israel e a do antigo Egipto. Lamentavelmente, em 1952, ele não explicou
claramente os mecanismos corretivos que permitiram que ele chegasse a uma
restruturação da cronologia. Só 20 anos depois, em 1973, com o volume seguinte
«Peoples of the sea», ele explicou como tão grandes erros cronológicos puderam
introduzir-se na história oficial do antigo Médio-Oriente. Entretanto,
Velikovsky foi altamente criticado e desacreditado.
«Ages in chaos» inicia com o livro do Êxodo e a procura de
registos egípcios que contêm a mesma informação.
O êxodo do Egipto é uma das memórias fundamentais do povo de
Israel. Nas Escrituras é repetidamente feito menção deste acontecimento (por
exemplo, nos Salmos 77, 78, 105, 106).
Por outro lado, os anais do Egipto, segundo afirmam, não
preservaram qualquer registo da estadia dos israelitas ou da sua partida. Não
se sabe quando aconteceu o êxodo, se
na verdade aconteceu. Para muitos historiadores, esta história é um mito, tese
que parece ser corroborada pela ausência de testemunhos arqueológicos, em
monumentos egípcios e em papiros. O êxodo terá sido um evento menor, sem
importância, na história do Egipto. A descrição das pragas, da morte dos
primogénitos, da passagem pelo mar e morte do exército egípcio seria apenas uma
narrativa metafórica.
Mas Velikovsky considerou que, sendo o êxodo um evento tão
importante na história de um povo, alguma base de verdade tinha que ter. Das
várias passagens bíblicas que falam do êxodo, e de tradições rabínicas,
concluiu que o que aconteceu foi na realidade uma catástrofe natural, com
atividade sísmica e vulcânica, de grande magnitude. A terra do Egipto ficou
destruída. Não haveria nenhum registo nos anais do Egipto?
Velikovsky encontrou um documento, em escrita hierática, conhecido
como o Papiro Ipuwer. Em 1828, o documento foi adquirido pelo Museu de Leiden,
onde ainda se encontra. Faltam partes do texto. Em 1909, foi traduzido por Alan
Gardiner e designado como «The admonitions of an Egyptian Sage». Gardiner
defendeu que as evidências internas do documento apontavam para o caráter
histórico da situação nele descrito. O Egipto estava em aperto, o seu sistema
social desorganizado e a violência enchia o país. A população indefesa caiu nas
mãos de invasores cruéis. Os ricos perderam tudo e dormiam ao relento e os
pobres apoderaram-se das suas riquezas. Não se tratava de um mero distúrbio
local mas de um desastre nacional de grandes proporções. O papiro contém
lamentações e uma descrição de ruina e horror. As palavras são de Ipuwer, que
se dirige no seu discurso a um rei. Perdeu-se a introdução do texto, pelo que não
se sabe o nome do rei a quem Ipuwer se dirigiu.
O papiro Ipuwer contém evidências de um cataclismo natural
acompanhado de tremores de terra.
Papiro 2:8 – A terra gira como a roda de um oleiro
2:11 – As cidades são destruídas. O
Alto Egipto tornou-se seco.3:13 – Tudo é ruinas.
4:2 - … anos de ruído. Não há fim ao ruído.
6:1 – Oh, se a terra pudesse cessar do ruído, e não haver mais tumulto.
7:4 – A residência caiu num minuto
Explica Velikovsky que, em hebraico, a palavra ‘raash’
significa ruído, comoção, bem como terramoto. Terramotos são geralmente
acompanhados de um fenómeno acústico, barulhos subterrâneos. Aparentemente o
abalo teve muitas réplicas, e o país ficou em ruinas. O barulho e tumulto eram
produzidos pela terra. A residência real foi destruída num minuto, o que só
podia acontecer com um grande tremor de terra.
Antes da publicação de Velikovsky em 1952, nunca tinha sido
estabelecida uma comparação entre este documento e a Bíblia. Velikovsky aponta
paralelos entre o papiro de Ipuwer e as pragas no livro do Êxodo. Vejamos:
Papiro 2:5-6 – A terra está coberta de feridas. Há sangue
por todo o lado.
Ex 7:21 – Houve sangue por toda a terra do Egipto.
Papiro 2:10 – O rio está em sangue.Ex 7:20 – Toda a água do rio se tornou em sangue.
A água estava suja e as pessoas não a podiam beber.
Papiro 2:10 – os homens recusaram provar – os seres humanos,
e tinham sede.
Ex 7:24 – Todos os egípcios cavaram junto ao rio para
encontrar água que beber; pois das águas do rio não podiam beber.
No rio, os peixes morriam, mas os insetos e répteis
multiplicaram-se.
Ex 7:21 – O rio cheiro mal.
Papiro 3:10-13 – eis nossa água! Eis nossa felicidade! O que
vamos fazer? Tudo está em ruinas! »Ambos os textos falam da destruição dos campos:
Ex. 9:25 – A chuva de pedras feriu tudo quanto havia no
campo … homens … animais … árvores.
Papiro 4:14 – As árvores estão quebradas.Papiro 6:1 – Não se encontra nem fruta, nem hortaliças …
Fogo acompanhava a chuva de pedras.
Ex 9:23-24 – Fogo desceu sobre a terra … fogo misturado com
a chuva de pedras.Papiro 2:10 – Na verdade, portas, colunas e muros foram consumidos pelo fogo.
O fogo que consumia a terra não era aceso por mão humana mas
caiu do céu e continuou a sua destruição.
Ex 9:31 – O linho e a cevada foram feridos, pois a cevada já
estava na espiga, e o linho em flor. Porém o trigo e o centeio não sofreram
dano.
Mas foi a praga seguinte que provocou a total aridez dos
campos. Segundo o Papiro Ipuwer e o livro do Êxodo (9.31-32 e 10.15), foi
impossível fornecer ao rei o tributo de trigo e centeio. Também morreram os
peixes (Ex 7:21).
Papiro 10:3-6 – O Baixo Egipto chora. O palácio está sem
rendimentos. Trigo, centeio, gansos e peixes a que tem direito.
Os campos estão inteiramente devastados:
Ex 10:15 – Não restou nada verde nas árvores, nem na erva do
campo.Papiro 6:3 – Na verdade, a sementeira pereceu em todo o lado.
Papiro 5:12 – Tudo o que ontem ainda era visível pereceu. A terra está tão desnudada como depois do corte do linho.
Uma devastação tão repentina não podia ter sido resultado de
seca, mas de granizo, ou gafanhotos. A erva e o fruto dos campos são devorados
pelos gafanhotos (Sl 105:34-35).
Papiro 6:1 – Não se encontra fruta nem erva … fome
Também o gado foi atingido.
Ex 9:3 – Eis que a mão do Senhor será sobre o teu rebanho
que está no campo … com pestilência gravíssima …Papiro 9:3 –Todos os animais, os seus corações choram. O gado geme …
A nona praga cobriu o Egipto de trevas espessas (Ex10:22).
Papiro 9:11 – O país é sem luz.
Velikovsky foi criticado por tirar muitas das palavras do
seu contexto e colocá-las ao lado de versículos bíblicos como paralelos
contemporâneos. No entanto, uma análise de Henry Zecher, “The Papyrus Ipuwer,
Egyptian Version of the Plagues – A New Perspective,” publicado em The Velikovskian (1997), desafiou a
opinião de Velikovsky de que o papiro era uma versão egípcia das pragas, mas
não invalidou o sincronismo. Zecher propôs que o relato de Ipuwer era a Parte 2
de uma história em duas partes, da qual Moisés escreveu Parte 1. Parte 1 é a
fuga dos israelitas e Parte 2 descreve a invasão do Egipto pelos Hicsos logo a
seguir ao êxodo e a devastação do país. Velikovsky identificou os Hicsos como
os amalequitas da Bíblia (Ex 17:8-16), com quem Israel pelejou em Refidim
depois de ter atravessado o mar.
Velikovsky descobriu outros documentos e que apoiam esta concordância
cronológica entre o Papiro Ipuwer e a história do êxodo. De que trataremos nas próximas mensagens.