Por outro lado, através de 2 Crónicas 36, fica claro que os setenta anos de repouso da terra equivalem aos 70 anos de domínio babilónico profetizado por Jeremias, sendo imediatamente seguidos pela libertação do povo judeu através do decreto de Ciro no primeiro ano do seu reinado.
"Os que escaparam da espada a esses levou ele [Nabucodonosor] para Babilónia, onde se tornaram seus servos e de seus filhos, até ao tempo do reino da Pérsia; para que se cumprisse a palavra do Senhor por boca de Jeremias, […] todos os dias da desolação [a terra] repousou até que os setenta anos se cumpriram. Porém, no primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra do Senhor por boca de Jeremias, despertou o SENHOR o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito, dizendo: Assim diz Ciro, rei da Pérsia: O SENHOR, Deus dos céus, me deu todos os reinos da terra, e me encarregou de lhe edificar uma casa em Jerusalém, que está em Judá; quem entre vós e de todo o seu povo, que suba, e o SENHOR seu Deus seja com ele". (2Cr 36:20-23; ver também Esdras 1:1-4).
Portanto, biblicamente, de acordo com estas passagens, não parece existir nenhum lapso de tempo relevante entre o fim do domínio babilónico (tomada de Babilónia por Dario o medo) e o decreto de Ciro, emitido no seu primeiro ano.
Quem é então este Dario, filho de Assuero, da linhagem dos medos, que foi constituído rei sobre o reino dos caldeus, e em cujo primeiro ano Daniel entendeu que os 70 anos tinham chegado ao seu fim (Dn 9:1-2)?
Várias hipóteses têm sido avançadas. Mas, primeiro, convém saber um
pouco da história dos medos e dos persas.
Muito antes de Nabucodonosor subir ao palco da história, a queda do seu
império e quem o destruiria já tinha sido profetizado, como podemos ler nos
capítulos Isaías 13 e 14 e Jeremias 50 e 51. São os reis dos medos que Deus
despertaria contra a Babilónia.
Eis que eu despertarei contra eles [Babilónia] os medos … (Is 13:17)
O SENHOR despertou o espírito dos reis dos medos, porque o seu intento contra
Babilónia é para a destruir (Jr 51:11)
Consagrai contra ela [Babilónia] as nações, os reis
dos medos, os seus governadores,
todos os seus vice-reis (Jr 51:28)
O capítulo 5 de Daniel descreve o banquete dado pelo rei Belsazar na
noite anterior à tomada da Babilónia (que foi tomada de surpresa, sem batalha).
Uma das palavras que uns dedos de mão de homem escreveram na parede do palácio
real foi peres, que Daniel
interpretou assim:
Dividido foi o teu reino, e dado aos medos e aos persas […] Naquela mesma
noite foi morto Belsazar, rei dos caldeus. E Dario, o medo, com cerca de
sessenta e dois anos, se apoderou do reino (Dn 5:28, 30-31).
Aqui, os medos e os persas aparecem juntos, como povos aos quais o reino
da Babilónia fora dado.Pouco tempo antes da morte de Belsazar, Daniel tivera uma visão onde viu a continuação da história depois da Babilónia (Dn 8).
Eis que um carneiro estava diante do rio, o qual
tinha dois chifres, e os dois chifres eram altos, mas um mais alto do que o
outro, e o mais alto subiu por último (Dn 8:3)
Aquele carneiro que viste com dois chifres são os
reis da Média e da Pérsia (Dn 8:20).
O carneiro, que representa a Média e a Pérsia juntos, destruiu e
engrandeceu-se sobre os poderes (simbolizados por animais) que existiam antes
dele (v.4), portanto, Babilónia e as nações que integravam o império. Este novo
domínio equivale ao reino de prata no sonho da estátua de Nabucodonosor (Dn
2:31-39).
Os dois chifres na cabeça do carneiro são os reinos da Média e da Pérsia, como duas forças dentro de
um mesmo reino. No tempo de Isaías, a Média já era um grande poder. A Pérsia
não existia e, por isso, este nome não era conhecido, nem podia ter sido
utilizado pelo profeta. A região da Pérsia era, anteriormente, conhecida como
Elão. Em Isaías 21:2, a Média está associada a Elão, subindo ambas contra a
Babilónia (v.9). A antiga Elão tinha a sua capital em Susã, que mais tarde
passou a ser a capital do Império Persa. Os Aqueménidas (dinastia a que
pertencia Ciro) terminaram com a existência do Elão como poder político
independente.Os medos eram mais antigos e culturalmente dominantes. Os persas eram inicialmente tributários dos medos mas, com Ciro, a Pérsia tornou-se dominante. A Pérsia é o chifre mais alto que subiu por último. Com Ciro, persas e medos passam a formar um só reino.
MEDOS PERSAS
Ciaxares I (dinastia Aqueménida)
|
Astíages Ciro I
| | |
Ciaxares II Mandana (=irmã de Ciaxares II) X Cambises
I
|
Ciro II (é o Ciro da Bíblia)
Quem tomou Babilónia, de acordo com todos os registos históricos e
arqueológicos, foi Ciro, também conhecido como Ciro II, da dinastia Aqueménida
da Pérsia. Ciro tinha também ascendência meda, pelo lado materno. Era neto de
Astíages, rei dos medos. Segundo Heródoto, Ciro revoltou-se contra Astíages,
provocando uma guerra, da qual saiu vitorioso e se tornou soberano dos reinos
unidos dos medos e dos persas. Por isso, os dois poderes continuam a ser
mencionados juntos. Primeiro, fala-se em medos
e persas (Dn 5:28; 6:8, 12, 15), mais tarde em persas e medos (Ester 1:19), o que ilustra muito bem o crescimento
do segundo chifre em detrimento do primeiro (Dn 8:3).
Antes de apresentar as várias propostas para a identidade de Dario o
medo, ainda é preciso ter em atenção um aspecto que é a questão dos nomes. Dario, tal como Xerxes, Artaxerxes e Assuero não são nomes próprios, nem
cognomes, mas nomes de trono, títulos honoríficos, com um significado
descritivo. Não há consenso sobre o que significam exactamente estes nomes, mas
os historiadores não põem em causa que os reis na antiguidade costumavam usar
mais do que um nome ou título. Documentos da época confirmam isto. Visto que os
judeus viviam então na proximidade da cultura persa dominante, era natural que
usassem estes nomes de trono da maneira como os persas faziam e não os nomes
gregos (que foram dados posteriormente) e que nós usamos hoje como se de nomes
próprios se tratasse.
Dario, em hebraico Dar’yavesh,
palavra de origem persa, significaria simplesmente “senhor” ou “detentor do
ceptro”. Assim, o nome Dario não oferece qualquer ajuda na identificação desta
personagem de Dario o medo.
De acordo com alguns, Dario o medo seria Astíages (avô materno de Ciro),
ou Ciaxares II (cunhado de Ciro), que teria sido colocado temporariamente no
trono da Babilónia por Ciro após a conquista e Ciro só ocuparia o trono cerca
de três anos mais tarde. Esta teoria apoia-se em algumas versões que traduzem
que Dario o medo recebeu o reino, e
não, como noutras traduções, apoderou-se do
reino (Dn 5:31). O verbo aramaico quebal pode
querer dizer tanto receber como tomar[1]. A diferença
está na forma do verbo: a forma usada é Pael,
que é uma forma intensiva do verbo e corresponde ao hebraico Piel que exprime geralmente uma acção
intensiva ou intencional. A tradução apoderou-se
do reino ou tomou o reino seria
mais apropriada do que recebeu o reino.
Outra hipótese é que Dario seria Cambises, filho de Ciro. Era habitual
os monarcas estabelecerem um dos seus filhos como co-regente durante as suas ausências,
e isto foi efectivamente o caso de Cambises e Ciro. Várias tabletas foram
encontradas[2]
que mencionam Cambises como “rei da Babilónia”, enquanto Ciro é designado como
“rei de nações (terras) ”. Cambises foi
efectivamente co-regente com Ciro. Porém, é pouco provável que Cambises seja
Dario o medo, pela idade de 62 anos (Dn 5:31) que tinha no momento da tomada de
Babilónia.
A hipótese que, provavelmente, tem mais apoiantes é que Dario seria
Gubaru, governador de Gutium, uma região da Média, e oficial de Ciro. Como
comandante do exército de Ciro, Gubaru tomou Babilónia sem qualquer batalha, de
acordo com a Crónica de Nabónido. Depois, Ciro nomeou-o governador da
Babilónia. Morreu ainda no mesmo ano ou no ano seguinte, de acordo com as
crónicas. Embora possamos pôr em questão o facto de um governador usar o título
de “rei”, estes elementos enquadram-se relativamente bem no relato bíblico, se
não fosse pelo episódio de Daniel na cova dos leões (Dn 6). Este episódio tem
lugar no princípio do reino de Dario. O decreto que o rei Dario emitiu depois
que Daniel saiu ileso da cova dos leões, um decreto dirigido aos povos, nações e homens de todas as
línguas, que habitam em toda a terra (Dn 6:25-28) não é da mão de um mero
governador de uma província, mas do rei de toda a nação.
Isto leva-nos à tese que se nos apresenta como a mais provável. O rei de
toda a nação, de todo o império era Ciro, pelo que Dario o medo não será outro
que o próprio Ciro, o persa. Isto é corroborado por uma adição deuterocanónica
ao livro de Daniel (como capítulo 14): a história de Bel e o Dragão, uma
variante da história de Daniel na cova dos leões, na qual o rei é identificado
pelo nome de Ciro, não Dario.
Só Ciro, como “rei de nações”, podia emitir um decreto que abrangesse
todo o seu império (ver situação semelhante em Dn 4:1). Do ponto de vista
bíblico, Ciro é aquele a quem Deus deu o reino, como anteriormente o dera a
Nabucodonosor (Dn 2:37-38). Assim diz
Ciro, rei da Pérsia: O Senhor Deus dos céus me deu todos os reinos da terra
(2 Cr 36:22; Ed 1:2). Ciro é o verdadeiro sucessor do poder babilónico, cuja
cabeça era Nabucodonosor. Ciro é o cabeça do segundo reino, de prata, da
estátua de Daniel 2. Dario é um título que lhe assenta.
Ciro é conhecido como “o persa” mas, como neto de Astíages, também era
“medo”, podendo ser chamado filho de
Assuero (Dn 9:1). Assuero é uma
forma grega de Ahashverosh, que é uma hebraização de Ciaxares, que por sua vez
é uma corruptela do persa Uwxshstra[3].
Em Esdras 6:1-3 lemos que, no segundo ano do rei Dario (este é Dario
Histaspes, sucessor de Cambises), foi encontrado em Acmeta, na província da Média, um memorial escrito com as
palavras de um decreto baixado por Ciro no seu primeiro ano relativamente à
edificação do templo em Jerusalém. Isto indica que Ciro poderá ter estado na
Média quando baixou o seu decreto.
Provavelmente, a razão porque Daniel fala aqui em Dario o medo e não em
Ciro o persa é para fazer a ligação com as profecias de Isaías e Jeremias, que
falavam dos medos como povo que derrubaria Babilónia. Assim seria perceptível
para os judeus. Quando Ciro conquistou a Babilónia foi na qualidade de Dario o
medo, em cumprimento das profecias e porque ainda não tinha sido feito a
transição da predominância meda para a predominância persa. Daniel 10-12
recorda a última visão de Daniel no
terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia (Dn 10:1). Agora já aparece com o nome
Ciro.
Ainda, a personagem de Dario em Daniel 6 enquadra-se bem na descrição
que Heródoto dá de Ciro: um chefe de montanha, simples, ousado, vigoroso, com
uma grande ambição e génio militar, mas também um monarca paternal, amável,
clemente, educado e familiar com o seu povo (Citado por Anstey, The Romance of Bible Chronology, p. 267.).
Assim não há nada de estranho em Daniel 6:28 que diz que Daniel prosperou
no reinado de Dario, e no reinado de
Ciro, o persa, a palavra “e” devendo ser lido como “a saber” ou “isto é”[4].
A favor da identificação de Dario o medo com Ciro é certamente o facto
de não haver qualquer interrupção da cronologia entre o fim dos 70 anos de
domínio babilónico e o começo do domínio persa e, simultaneamente, a libertação
dos judeus que se segue aos 70 anos de cativeiro, no primeiro ano de Ciro. Não
faz qualquer sentido existir um interregno de cerca de três anos com “outro”
Dario o medo. Não faz sentido, também, à luz da oração de Daniel. Daniel orou
ao lembrar-se das profecias de Jeremias que falavam de 70 anos. Logo
que se cumprirem para Babilónia setenta anos atentarei para vós e cumprirei
para convosco a minha boa palavra, tornando a trazer-vos para este lugar,
profetizara Jeremias (Jr 29:10). O
que também é corroborado por 2 Crónicas 36:21: … até que a terra se agradasse dos seus sábados;
todos os dias da desolação repousou, até que os setenta anos se cumpriram.
Porém, no primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra
do Senhor por boca de Jeremias, despertou o Senhor o espírito de Ciro, rei da
Pérsia … (2Cr 36:21-22).
[1] Informações sobre palavras hebraicas retiradas
do Léxico de Gesenius, Hebrew and Chaldee
Lexicon to the Old Testament Scriptures, edição de P. Tregelles, 1847,
acessível em www.blueletterbible.org.
[3] William H. Shea. Darius the Mede; An Update. Andrews University Seminary Studies 20 (1982):
229-247, e Darius the Mede in his
Persian-Babylonian Setting. Andrews University Seminary Studies 29 (1991):
235-257, referida por James B. Jordan, Daniel: Historical and chronological comments V, Biblical Chronology, 7.4 (1995).
[4] Ver James M. Bulman, The identification of Darius the Mede, Westminster Theological
Journal 35 (1973), 247-267.