Lc 2:1-2 –
Naqueles dias foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a
população do império para recensear-se. Este, o primeiro recenseamento, foi
feito quando Quirino era governador da Síria.
Tanto o
evangelho de Lucas como de Mateus afirmam que Jesus nasceu em dias do rei
Herodes. Mas a afirmação em Lucas 2:1-2, que Jesus nasceu por ocasião do primeiro recenseamento, quando Quirino era governador da
Síria, parece colocar um problema cronológico, que até tem desacreditado a
veracidade do evangelho de Lucas. Isto porque é facto provado que Quirino foi
governador da Síria entre 6 e 12 d.C.,
portanto, vários anos depois da data geralmente aceite para o nascimento de
Jesus (ca. 6 ou 3/2 a.C.), além de ser depois da morte de Herodes.
Arquelau,
filho e sucessor de Herodes na Judeia como tetrarca (não rei), fora demitido da
sua tetrarquia e expulso no ano 6 d.C.. Depois da destituição de Arquelau,
a Judeia passou a província romana, dirigida por um procurador. O primeiro
procurador foi Copónio. Na mesma época, Públio Sulpício Quirino foi nomeado
governador da Síria. A Judeia foi
adicionada à província da Síria para liquidar as finanças de Arquelau, e isso
era tarefa de Quirino (Antiguidades dos Judeus, Livro 18, cap.1).
Quando
Quirino era governador da Síria, houve efetivamente um censo, que terá ocorrido
em 6/7 d.C. Flávio Josefo menciona este censo. Segundo Josefo, este recenseamento
foi concluído no 37º ano da vitória de Octaviano (Augusto) sobre Marcos António
em Actium, que aconteceu em 31 a.C., portanto o censo teve lugar em 6 d.C..
Mas 6 d.C.
não é uma data possível para o nascimento de Jesus, porque Jesus nasceu antes
da morte do rei Herodes, que aconteceu em 1 a.C. (ver mensagem anterior).
E Lucas tem
sido acusado de se ter enganado quanto à data do censo e da governação de
Quirino.
Observámos
que Lucas usa de muita precisão e rigor no registo de detalhes históricos,
tanto no Evangelho como no livro de Atos. Ele afirma ter feito uma “acurada
investigação” antes de por tudo por escrito (Lc 1:3).
O facto de
não se terem encontrado, ainda, outras evidências históricas ou provas
arqueológicas corroborando o “primeiro” censo mencionado por Lucas não
significa que Lucas esteja errado. O silêncio, ou seja, a ausência de prova
arqueológica, não é um argumento. Os textos bíblicos são fontes históricas tão
válidas quanto outras fontes documentais e arqueológicas, contrariamente ao que
muitos querem dar a entender.
Da nossa
parte, acreditamos que a Bíblia tem razão e que há uma explicação para esta
aparente anomalia. O que também dá mais crédito a Lucas é que ele viveu mais
perto dos acontecimentos do que historiadores posteriores, tendo por isso acesso
a informação mais contemporânea, mesmo fornecida por testemunhas oculares.
Vários
autores têm procurado justificar a possibilidade de Quirino ter tido poderes de
governação especiais na região da Judeia (embora não sendo efetivamente
governador na Síria) no período em questão, tendo em consideração o
funcionamento administrativo e político do Império romano. Conclui-se que é uma
hipótese razoável, mas nenhum facto concreto tem sido apresentado. Encontrei
apenas um autor que apresenta uma solução concreta, interessante, que me parece
viável e bem fundamentada, e que merece ser aprofundada. Trata-se de Ernest
Martin, The Star of Bethlehem: The Star
that Astonished the World (1996).
Mas antes de
passar à proposta de Martin, temos que dar uma vista de olhos ao que dizem as fontes,
bíblicas e históricas.
O problema cronológico está centrado
na realização de um recenseamento (apografe em Grego) algum tempo antes da
morte de Herodes, e na associação de Quirino
com o recenseamento.
O que dizem
as fontes históricas (Tácito, Josefo, Tertuliano, Lapis Venetus) e Lucas?
- Sulpício
Quirino foi cônsul em Roma em 12 a.C. juntamente com Messala.
- Entre 12
a.C. e 1 d.C., esteve em serviço ativo em várias regiões no Médio Oriente,
nomeadamente na região da Galácia vizinha da Síria, e travou uma guerra na
Cilícia.
- Foi
enviado como governador para Síria em 6 d.C. depois da morte de Arquelau, até
12 d.C.
- Conduziu
um censo em 6 d.C.
- Quirino é
mencionado numa lápide tumular, conhecida como Lapis Venetus. A lápide regista
a carreira de um oficial romano chamado Aemelius Secundus, e diz que este
oficial fora encarregado por P. Sulpicius Quirinus, Legatus Caesaris Syriae, de realizar um censo na cidade de Apameia.
Apameia é uma antiga cidade na Síria, a cerca de 50km da atual Haman.
- Por volta
do ano 200 da nossa era, Tertuliano, em Contra Márcio, afirma que o
recenseamento mencionado por Lucas foi feito na Judeia quando Saturnino era governador da Síria.
- A
realização de censos regulares por Roma nas províncias do Império é uma prática
bem documentada.
Mesmo no
Novo Testamento (Mt 22:17-21; Mc 12:14-17) encontramos provas indiretas de que os
Judeus, no tempo de Jesus, pagavam tributo (kensos)
a Roma.
Tácito
(Anais 2:42), por exemplo, relata que uma delegação judia e uma delegação da
Síria empreenderam juntamente uma viagem a Roma para protestar contra os
impostos excessivos que estavam a ser cobrados pelos governadores romanos e
pedir uma redução do tributo (ano de censo 20/21, ano de tributo 21/22 d.C.).
A condução de
um censo era responsabilidade de um governador de província que, por sua vez,
delegava a subordinados e órgãos locais.
No Egipto, havia
um ciclo regular 14 anos entre um censo e seguinte, pelo menos a partir de
33/34 d.C. até 257/8, e possivelmente a partir de 19/20 d.C. Recentes
descobertas comprovam que antes desta data, os ciclos eram de 7 anos, com a
realização de censos no 20º ano de Augusto (contado desde a batalha de Actium
em 31 a.C., portanto em 11/10 a.C.), no 27º ano (4/3 a.C.), no 34º ano (4/5
d.C.), e no 41º ano (11/12 d.C.)[1] (CLAYTOR
& BAGNALL, 2015). Estas evidências são referentes ao Egipto,
especificamente. Não se sabe a que intervalos eram feitos os censos na Síria e
na Judeia.
- O
recenseamento de que Lucas fala não é um recenseamento provincial, mas toda
a população do império foi convocada para recensear-se por decreto de
César Augusto (Lc 2:1). Lucas não explica qual a razão do recenseamento.
- Lucas dá a
entender que houve pelo menos dois recenseamentos na Judeia. Em Lucas 2:1, ele
fala do primeiro recenseamento,
decretado por César Augusto, por ocasião do qual José e Maria se deslocaram a
Belém. Atos 5:37 fala de outro recenseamento – Depois desse [Teudas]
levantou-se Judas, o galileu, nos dias do
recenseamento, e levou muitos consigo. A ênfase no adjetivo “primeiro” (protn) distingue-o do outro, mais tarde
e provavelmente mais memorável, o qual Gamaliel recorda, e que é o mesmo que
Josefo menciona. O censo de 6 d.C.. Sabemos isso porque Josefo fala da revolta
contra o censo, liderada por Judas o galileu.
- Lc 2:1,3,5
– recensear (verbo apógrafo); Lc 2:2
- recenseamento (substantivo apografe):
registar, listar, inscrever num registo contendo nomes, idades e outra
informação identificativa de todo o agregado familiar e dos seus rendimentos e
posses, (Thayer's Greek Lexicon).
O porquê do
recenseamento
Ernest
Martin explica porque houve, ca. 3/2 a.C., uma razão para César Augusto convocar
toda a população do Império para recensear-se. Esse ano era um dos mais
importantes e gloriosos na carreira de Augusto: era o Jubileu de prata do seu
governo supremo sobre todo o Império (em 27 a.C. Augusto recebera plena e
absoluta confiança do Senado) e nesse ano o Senado conferiu-lhe o mais alto
título de “Pater Patriae” (Pai da Nação).
Augusto escreve
assim no seu Res Gestae Divi Augusti
(um relato dos principais acontecimentos da sua vida escrito pelo próprio): “Quando estava
administrando o meu 13º ano de consulado, o senado, a ordem equestre e todo o
povo Romano deram-me o título de Pater Patriae”. Esse ano era 2 a.C., a
data 5 de fevereiro.
Josefo (Antiguidades
17) menciona que Augusto pediu um juramento de lealdade cerca de doze a quinze
meses antes da morte de Herodes. Um registo de juramentos (onde as pessoas
escreviam o seu nome) era uma lista, um apografe
de pessoas, uma espécie de “recolha de assinaturas” como é feito hoje para
juntar pessoas a subscrever a uma ação ou opinião. Nesse caso seria para
declarar a sua lealdade ao Imperador.
O juramento
mencionado por Josefo e o alistamento de Lucas podem muito bem ser a mesma
coisa. Que diz Josefo? Que a inteira nação Judaica fez um juramento de ser leal a
César. Mas também diz que mais de 6.000 fariseus se recusaram ao
juramento, porque acreditavam que o Messias estava a chegar. Eles foram
multados e alguns foram mortos por Herodes.
Como se faz
um juramento de lealdade? Podia perfeitamente ser através da inscrição numa
lista. De outro modo, como podia Josefo saber que mais de 6000 fariseus se
recusaram a fazer o juramento a não ser que tivesse havido um registo dos seus
nomes e números?
Se o
juramento de lealdade mencionado por Josefo foi o que levou José e Maria a Belém,
então faz sentido que Maria acompanhou José. Num censo regular, Maria não teria
necessidade de acompanhar José, nem José teria que viajar de Nazaré a Belém.
A razão por
que José e Maria foram a Belém é, diz Lucas, “por ser ele da casa e família de David”
(Lc 2:4). Eles eram de descendência real e provavelmente por causa de
implicações políticas tinham que ir registar-se em Belém. E como tal teriam
sido chamados especialmente para jurarem lealdade ao imperador. Além disso, seria
importante para Herodes saber quem eram todos os eventuais pretendentes ao
trono de David para garantir a sua própria sobrevivência e da sua dinastia,
especialmente naquele tempo porque havia uma grande expectativa messiânica
entre os Judeus. E visto que as mulheres entre os Judeus podiam dar um
descendente ao trono, também Maria teve que ir registar-se pessoalmente.
O censo foi
realizado em todo o Império. E existem provas e fontes históricas que se
referem a este mesmo censo / juramento de lealdade, em vários lugares do
Império:
Uma
inscrição encontrada na província romana da Paflagónia (no centro-norte da Ásia
Menor, era o nome de uma região da costa do Mar Negro no norte da Anatólia) datada 3 a.C. regista um juramento de obediência de toda a
população, de cidadãos romanos bem como de não-cidadãos, a ser feito nos
templos de Augusto nos vários distritos da província.
O
historiador arménio Moisés de Corene (que viveu no início do século V) diz que
fontes nativas a que teve acesso mostram que no segundo ano de Abgar, rei da
Arménia no século 3 a.C., o recenseamento mencionado por Lucas trouxe oficiais
romanos à Arménia, com a imagem de Augusto César, que colocaram em todos os
templos. Está implícito que as pessoas deviam ir aos templos para se registarem
no ano 3 a.C.
Também Orósio
(385-420), historiador, teólogo e apologista cristão reconhece o facto de o
censo mencionado por Lucas ter sido realizado em todo o Império. Ele devia ter
acesso a fontes que hoje já não existem e que substanciaram a sua afirmação. Ele
escreveu “[Augustus] ordenou que um censo fosse tomado em cada província
em todo o lugar para que todos as pessoas fossem inscritas ... Este é o mais
antigo e mais famoso reconhecimento público que distinguiu César como o
primeiro de todos os homens e os Romanos como senhores do mundo, uma lista
publicada de todas as pessoas registadas individualmente... Este primeiro e
maior censo foi realizado, que neste único nome de César todos os povos das grandes
nações fizeram juramento, e ao mesmo tempo, através da participação no censo, foram
feitos parte de uma sociedade”.
O que apoia
esta tese é que o recenseamento de Lucas não podia ter por finalidade a coleta
de impostos. Quando Herodes reinava na Judeia, os Judeus não pagavam impostos a
Roma, mas a Herodes. Isto fica claro pelos acontecimentos que se seguem
imediatamente à morte de Herodes, relatados por Josefo (Guerra, Livro 2). Os
Judeus pedem a Arquelau, sucessor de Herodes, para reduzir os impostos
excessivos, e ele desejando conquistar o povo, assentiu prontamente a estes
pedidos. Se os judeus pagassem impostos diretamente a Roma (na sequência do
censo de Quirino) este pedido não faria sentido, nem a resposta de Arquelau.
De 36 a 47
a.C. Judeia fazia parte da província da Síria e pagava tributo diretamente a
Roma. De 47 a 40 a.C. Hircano era “governador de uma república livre”, mas os
judeus ainda pagavam impostos diretamente a Roma. Quando Herodes se tornou rei,
o tributo a Roma cessou e Herodes recebia os impostos. Isto continuou até 6/7
d.C. quando novamente foi imposto a Judeia, que passou a ser uma província, um
imposto direto.
Considerando a
universalidade deste juramento, bem como o ano da sua condução, é muito
razoável deduzir que o recenseamento mencionado por Lucas seja o mesmo juramento
de lealdade referido por Josefo, Orósio, Moisés de Corene e a inscrição da
Paflagónia, e coincidindo com a informação de Augusto no seu Res Gestae sobre o título de Pater Patriae.
Quirino
Embora
esteja resolvida a questão do recenseamento, a questão da relação de Quirino com
o juramento de 3/2 a.C. permanece não solucionada.
No entanto,
A palavra
grega em Lc 2:2 traduzida “quando Quirino era governador” é hegemoneuontos, a forma do
particípio presente ativo do verbo ‘hegemoneo’.
O sentido literal é “quando Quirino
estava governando na Síria”. A
forma grega aqui não se refere especificamente à posição ou ofício da pessoa mas
denota simplesmente governo, chefia, comando ou liderança em geral.
A narrativa de
Lucas não identifica o cargo específico ocupado por Quirino quando estava
desempenhando as suas tarefas oficiais, neste caso a condução do recenseamento.
Resumindo, evitaria talvez alguma confusão se o texto fosse traduzido mais
literalmente “quando Quirino estava
governando na Síria”.
Quirino pode
ter sido enviado para o Médio Oriente com poderes especiais, diferentes do
governador residente, para conduzir o recenseamento nesta secção do Império. Lucas
3:1 refere-se a Pilatos com a mesma palavra e mesma estrutura gramatical e sabe-se
que Pilatos era Praefectus Judaeae, e
não Legatus (governador de província).
Justino Mártir (100-165) afirma que Quirino era Procurator especial de Augusto. A Cambridge Ancient History, vol.
X, p.216 (citado por Ernest Martin) tem uma nota sobre o papel de um Procurator romano. Cada província tem o
seu procurador equestre que, aos olhos dos provinciais, era quase tão
importante como o próprio governador. Estes procuradores eram nomeados pelo Imperador
independentemente do Legatus, e as
relações entre os dois nem sempre eram muito amigáveis. Se Justino diz que
Quirino era Procurator, isto
demonstra concordância com Tertuliano quando este diz que o censo foi conduzido
quando Saturnino era o governador da Síria.
As
explicações dadas por Ernest Martin são, em meu ver, muito razoáveis, simples e
claras e resolvem a questão porque harmonizam as informações históricas
disponíveis com o evangelho de Lucas. Parece que “o censo de Quirino”
mencionado por Lucas foi encontrado.
Quanto à
cronologia do nascimento de Jesus.
Se Augusto
foi condecorado Pater Patriae em
fevereiro do ano 2 a.C., o recenseamento, feito a nível de todo o Império, deve
ter sido decretado em 3 a.C. para dar o tempo necessário (cerca de um ano) de
recolher todos os juramentos. Assim, o nascimento de Jesus deve situar-se entre
finais do ano 3 e princípio do ano 2 a.C.
Mas poderá
também ser que Augusto decretou o recenseamento na altura da, ou a seguir à
condecoração, pelo que terá decorrido durante o ano 2 a.C.
[1] CLAYTOR, W. Graham, and BAGNALL, Roger S. The Beginnings of the Roman Provincial Census: A New Declaration from 3 BCE. Greek, Roman, and Byzantine Studies 55 (2015) 637–653