Nas
anteriores mensagens Quem é Jó? e Os amigos de Jó (publicadas em janeiro
2014), defendi que Jó era filho de Issacar (Gn 46:13).
Há
algumas semanas, na procura de entender a que se refere a divisão (PALAG) da
terra nos dias de Pelegue (mensagem Os
dias de Pelegue publicada em julho 2016), encontrei um autor que apresenta
argumentos que Jó seria Jobabe, um dos filhos de Joctã, irmão de Héber (Gn
10:29) (Barry Setterfield in www.setterfield.org):
algumas passagens conteriam indicações de que Jó e seus amigos foram testemunhas
de eventos catastróficos do tipo que teriam sido normais na época em que se
dividiram os continentes, nos dias de Pelegue. Esta tese apoia-se também na
longevidade de Jó (conforme aparece dado na Septuaginta) que na opinião de
Setterfield é consentânea com o tempo de Pelegue.
Vamos
analisar as razões que Barry Setterfield, físico e geólogo, apresenta.
Jó
nos dias de Pelegue?
Se Jó
vivia durante os cerca de 100 a 200 anos em que os continentes se rasgaram ao
longo da fissura meso-atlântica e outras placas tectónicas, teria havido
enormes maremotos, terramotos, atividade volcânica, formação de montanhas e
outros desastres. Setterfield encontra tudo isto no livro de Jó. Alguns
exemplos:
As
catástrofes naturais que sobrevieram às ovelhas e aos filhos de Jó: fogo de
Deus que queimou as ovelhas e um grande vento que fez cair a casa sobre os
filhos (1:16, 19). O aparecimento de gelo no Médio Oriente, causado pela uma
inclinação do eixo da terra no tempo da divisão dos continentes que causou a
idade do gelo sobre a Europa e Médio Oriente (6:15-18; 38:29-30). Terramotos e
movimentos violentos da terra (Jó 9:5-6 – Ele é quem remove os montes, sem que
saibam que na sua ira os transtorna; que move a terra para fora do seu lugar,
cujas colunas estremecem; 14:18-19 - Como o monte que se esboroa e se desfaz e
a rocha que se remove do seu lugar, como as águas gastam as pedras, e as cheias
arrebatam o pó da terra ….). Dias em que o sol não sai de dia e as estrelas não
estão visíveis de noite, o que pode ser causado por cinzas volcânicas no céu (9:7).
Não se trata evidentemente de explicações científicas mas de descrições do que
se observou. Tsunamis: quando o mar o mar se retira para longe, mostrando o
fundo seco e depois a vaga inunda a terra (12:15 – Se retém as águas, elas
secam; se as larga, devastam a terra). Atividade vulcânica (18:15). Jó 28:5-6 –
Da terra procede o pão mas em baixo é revolvida como por fogo. Nas suas pedras
se encontra safira, e há pó que contém ouro. Jó 28:9 – Ele estende a sua mão
contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes. Abre canais nas
pedras, e os seus olhos vêem tudo o que há de mais precioso.
Admitindo
que se possa tratar de eventos do tempo de Pelegue, em que a terra passou por
um ciclo de transformação muito violento, estas passagens parecem simplesmente
descrever situações catastróficas que têm acontecido ao longo dos tempos em
vários lugares do mundo. Este tipo de eventos voltamos a encontrá-los no
período do êxodo.
Baseando-se
na Septuaginta Alexandrina (300 a.C.), onde se afirma que Jó viveu um total de
cerca de 248 anos, Setterfield conclui que a longevidade de Jó é consentânea
com o tempo de Pelegue. Antes de Pelegue, e depois do dilúvio, a longevidade
era cerca de 400/450 anos. Depois de Pelegue vemos uma diminuição rápida da
expectativa de vida: Pelegue 239 anos, Reú 239 anos, Serugue 230 anos, Naor 148
anos.
No
entanto, há muitos indícios no livro de Jó que impedem a identificação de Jó
com o Jobabe de Gn 10:29 e que o situam, no tempo, claramente depois de Abraão.
E
outra coisa que nos devemos perguntar é se, nos dias complicados de Pelegue em
que a preocupação se centraria em primeiro lugar na sobrevivência em tempos de
catástrofes naturais, já existiria literatura com a riqueza que se mostra no
livro de Jó? Havia escrita, sim, mas literatura tão complexa, profunda e
pormenorizada?
Depois
de Abraão
- Jó
e seus amigos usam repetidamente (cerca de 40 vezes!) o nome El-Shaddai, ou
Shaddai, para referir-se a Deus. A primeira vez que Deus se apresentou assim
foi a Abrão (Gn 17:1), quando este fez 99 anos, logo antes de Isaque nascer. A
secção de Gn 10:1b a 11:10a é a secção “toledot” transmitida por Sem (Estas são
as gerações de Sem). Naquele tempo, os nomes de Deus usados eram Elohim e Jaweh
(Jehovah).
- Jó
6:19 fala das caravanas de Tema e os viajantes de Sabá. Se podemos encontrar o
nome de Sabá duas vezes em Gn 10: 7, 28, o nome Tema, que significa deserto,
vem do filho de Ismael, filho de Abraão (Gn 25:15; 1Cr 1:30).
- As
personagens que aparecem no livro situam Jó várias gerações depois de Abraão.
Elifaz
o temanita. Em Gn 10, não há qualquer referência a Temã ou Tema. Temanitas
poderiam ser descendentes de Tema, filho de Ismael (Gn 25:15;1Cr 1:30), mas
mais provavelmente de Temã, filho de Elifaz e neto de Esaú (Gn 36:15).
Bildade
o suíta. É descendente de Sua, filho de Abraão com Quetura (Gn 25:2; 1Cro
1:32).
Eliú, filho de Baraquel, o buzita, da família de Rão. Buz é
filho de Naor, irmão de Abraão (Gn 22:21). A família de Rão pode estar
relacionada com um dos filhos de Sem (Gn 10:22), mas também com Arã, filho de
Quemuel, outro filho de Naor, irmão de Abraão. Eliú é um jovem em relação aos
outros amigos, Elifaz, Bildade e Zofar, referindo-se a eles como idosos (Jó
32:5-6).
O quadro seguinte procura situar todos os personagens
envolvidos na história de Jó, cronologicamente e uns em relação aos outros.
Cada faixa de uma cor representa uma geração, aproximadamente.
Abraão
|
Naor
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||||
Isaque
|
Buz
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Quemuel
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|||
Esaú
|
Jacó
|
Sua
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Arã
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Reuel
|
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Elifaz
|
|
*
|
|
|
||
Zerá
|
|
Temã
|
|
Issacar
|
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|||
Jobabe
|
[Elifaz o temanita]
|
Jó
|
Bildade o suíta
|
||
Eliú
|
Nota:
*Esaú casou com 40 anos de idade (Gn 26:34). Reuel e Elifaz, filhos de Esaú,
nasceram em Canaã, antes de os irmãos se separarem. Jacó tinha 77 anos quando
foi para Padam-Aram. Todos os seus filhos, exceto Benjamim, nasceram nos 14
anos seguintes, por isso uma geração depois dos primeiros filhos de Esaú.
Estas
considerações genealógicas não deixam grandes dúvidas quanto ao tempo em que Jó
viveu.
Estes indícios genealógicos são reforçados pela ocorrência repetida
(5 vezes) da palavra ferro, indicando
a existência de utensílios e armas de ferro e a resistência deste metal (19:24;
20:24; 28:2; 40:18; 41:27).
A
referência mais antiga a ferro vem em Gn 4:22, antes do dilúvio. Nesse
contexto, o ferro terá sido ferro meteórico, uma liga de ferro e níquel que tem
origem em meteoritos. Era raro e precioso, e usado muito antes da Idade do
Ferro. Não precisava ser fundido, apenas era moldado. Ainda não se conseguiam
obter temperaturas suficientemente elevadas para derreter o ferro, que requer
mais altas temperatura do que o cobre e o bronze. Não há qualquer outra
referência a ferro no livro de Génesis.
Na história bíblica pós-dilúvio, as primeiras referências a
ferro aparecem em Levítico, Números e Deuteronómio, na época em que os
Israelitas saíram do Egipto. Isto coincide sensivelmente com o começo da Idade
do Ferro no antigo Médio Oriente, com o desenvolvimento de técnicas de fundição
e metalurgia.
Calculámos
(ver Os amigos de Jó) que Jó terá
morrido alguns anos antes do nascimento de Moisés. Penso que pode ser mais uma
prova a favor da localização de Jó durante o tempo em que Israel estava no
Egipto.
Como
já temos definido quando Jó viveu, isto também simplifica a questão do número
de anos que ele viveu ao todo.
A longevidade
de Jó
Qual
foi o número de anos que Jó viveu ao todo? 140? ou mais?
A
versão da Septuaginta que encontrei diz que Jó viveu depois da aflição, 170
anos, e no total 240. And Job
lived after his affliction a hundred and seventy years: and
all the years he lived were two hundred and forty (Compiled from the Translation by
Sir Lancelot C. L. Brenton 1851. http://ecmarsh.com/lxx/index.htm)
Bíblia
João Ferreira de Almeida: Jó 42:16 – E, depois disto, viveu Jó 140 anos.
A
partir deste versículo alguns entendem que Jó tinha 70 anos quando a desgraça
lhe sobreveio, e que depois viveu ainda 140 anos, o dobro do que já tinha
vivido, num total de 210. O que o colocaria numa época anterior a Abraão
(quando a longevidade era superior a 200 anos), no tempo de Terá, que viveu 205
anos. O que não é o caso, como já vimos, pelo que parece mais correto entender Jó
42:16 como dizendo que Jó viveu até aos 140 anos, no todo. É assim que o
interpreta, por exemplo, Matthew Henry.
Eliú
era mais novo do que Jó e seus amigos. Ele diz que são idosos (32:5-6), e o
eram do ponto de vista dele. Mas também, se a provação de Jó começou quando ele
tinha 70 anos, e se tivesse vivido mais o dobro 140, dificilmente se poderá
dizer que aos 70 Jó era idoso.
Jó =
Jobabe?
Resta
a questão se Jó é Jobabe, rei edomita, descendente de Esaú (Gn 36:33-34). Toda
esta discussão em volta da identidade de Jó parece ser consequência de um
comentário ou nota editorial na Septuaginta. Se esta nota não existisse, talvez
a discussão não existiria também. Visto que este comentário não pertence ao
próprio texto bíblico, consideramos esta nota um acréscimo não autêntico. Temos, contudo, que analisar a questão.
This man is
described in the Syriac book as living in the land of Ausis,
on the borders of Idumea and Arabia: and his name before was Jobab; and
having taken an Arabian wife, he begot a son whose name was Ennon. And he
himself was the son of his father Zare, one of the sons of Esau, and of his
mother Bosorrha, so that he was the fifth from Abraam. And these were the kings
who reigned in Edom, which country he also ruled over: first, Balac, the son of
Beor, and the name of his city was Dennaba: but after Balac, Jobab, who is
called Job, and after him Asom, who was governor out of the country of Thaeman:
and after him Adad, the son of Barad, who destroyed Madiam in the plain of
Moab; and the name of his city was Gethaim. And his friends
who came to him were Eliphaz, of the children of Esau, king of the Thaemanites,
Baldad sovereign the Sauchaeans, Sophar king of the Minaeans. http://ecmarsh.com/lxx/Job/index.htm
- A
nota da Septuaginta diz que Jobabe era filho de Zera, um dos filhos de Esaú e
sua mãe Bozra. Era o 5º depois de Abrão. Reinou em Edom, depois de Balaque
(Bela?), filho de Beor.
Que
diz a Bíblia deste Jobabe?
De Esaú x Basemate, filha de Elom, heteu (Gn 26:34), nasce Reuel (Gn 36:13). Zerá, príncipe dos filhos de Esaú (Gn 36:17), é filho de Reuel. Entre
os reis que reinaram na terra de Edom, aparece Jobabe, filho de Zerá de Bozra (Gn 36:33; 1Cr 1:44), depois de
Bela, filho de Beor, cuja cidade era Dinabá.
Não é totalmente inequívoco que Jobabe seja sequer filho de Zera,
filho de Reuel.
A nota da Septuaginta diz que Bozra era a mãe de Jobabe. Mas
isto não tem qualquer apoio bíblico. Na lista dos reis de Edom (Gn 36:31-39),
estes reis estão sempre associados a um lugar, não ao nome da mãe. Bozra, que
quer dizer curral de ovelhas (Miq 2:12), aparece com maior frequência nos
profetas como uma cidade, sempre em
conexão com a execução de um juízo sobre Edom (Is 34:6; 63:1; Jr 49:13; Amós
1:12). Jobabe, e o pai dele Zera, estão ligados à cidade de Bozra. Não faz
qualquer sentido ligar Jó a este Jobabe, rei de Edom.
- A
questão Jó-Jobabe tem sido abordada a partir da grafia e significado destes
nomes. Porém, é confuso e não parece conclusivo.
Jó,
filho de Issacar
Podemos
apresentar argumentos a favor da identificação de Jó como filho de Issacar?
- A
única pessoa com o nome de Jó fora do livro de Jó é um filho de Issacar (Gn
46:13). Jó, em Gn 46:13, é chamado Jasube em Num 26:23 e 1 Cro 7:1, o que
significa “ele voltará”. A figura e história de Jó coaduna-se com o nome de
Jasube (ele voltará). Jó entrou no Egipto juntamente com o seu pai Issacar e o
restante da família de Jacó (Gn 46:13). Mais tarde, adulto, Jó, por alguma
razão que desconhecemos, terá deixado a sua família no Egipto, instalando-se na
terra de Uz.
- Todas
as personagens no livro de Jó são identificados pelo parentesco: temanita,
suíta, naamatita, buzita. Jó é apenas Jó. O livro de Jó faz parte de um
conjunto de livros que contam a história do povo de Israel: os livros da lei,
os profetas, livros de sabedoria, os livros históricos. Neste contexto, não há
necessidade de identificar Jó como Jó, “o israelita”. Isto está subentendido.
Se ele fosse edomita, sim, essa identificação se tornaria necessária.
- Jó é descrito como “homem íntegro e reto, temente a Deus,
e que se desviava do mal” (1:1), muito ao modo como Jó é descrito como “homem
justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus” (Gn 6:9). A
sua maneira de viver parece mais própria no quadro do povo de Israel do que dos
descendentes de Esaú e certamente de um rei. Esaú perdeu a bênção, os seus
filhos são chamados príncipes e adquiram poder pela espada (Gn 27:40).
Jó é
mencionado em Ezequiel 14:14,20, juntamente com Noé e Daniel. Em lugar algum, é
mencionado como sendo gentio. Deus chama “meu servo Jó”.
Jó
também é mencionado em Tiago 5:10-11
“Irmãos,
tomai por modelo no sofrimento e na paciência os profetas, os quais falaram em
nome do Senhor. Eis que temos por felizes aos que perseveraram firmes. Tendes
ouvido da paciência de Jó, e vistes que fim o Senhor lhe deu; porque o senhor é
cheio de terna misericórdia, e compassivo.”
- E,
por fim, penso que não podemos ignorar o que diz Romanos 3:3, que afirma que
“aos judeus foram confiados os oráculos de Deus”. Perante esta afirmação, podemos
atribuir a autoria deste livro e a sua personagem principal a alguém que não
pertencia ao povo de Israel?