23/05/2020

RECONSIDERAR A “SAÍDA DA ORDEM” (Daniel 9:25)


Tenho defendido que foi o decreto de Ciro que dava início (a saída da ordem) às 70 semanas da profecia de Daniel 9. No entanto, queria considerar uma alternativa a esta interpretação, que me parece ser mais correta.

”A saída da ordem para restaurar e edificar Jerusalém” (Dn 9:25) não terá sido o decreto de Ciro, mas a palavra do Senhor falada através dos profetas Ageu e Zacarias no 2º ano de Dario.

Em que está fundamentada esta interpretação?

Dn 9:25 – Desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Messias …

A palavra hebraica usada aqui, e geralmente traduzida “ordem”, é DABAR, que significa simplesmente PALAVRA. DABAR é utilizado numerosas vezes (1439x), traduzido “palavra” ou, em forma de verbo, “falar”, aplicada para palavras de homens e quando se trata da palavra falada por Deus através dos seus profetas. Por exemplo, os 10 “mandamentos” são os 10 DABARIM (plural de DABAR).

Outra palavra usada para os mandados e ordenamentos de Deus, e também para os mandados dos reis é MITZVAH. Esta palavra é frequente em Esdras e em Neemias (Esdras 7:11; 9:10,14;10:3; Neemias 1:5,9; 9:13,14,16,29,34; 10:29,32;11:23).

A palavra em Daniel 9:25 que foi traduzida “ordem” ou “comando” tem sido interpretada como um decreto de um rei. Tem-se procurado nos alegados decretos mencionados nos livros de Esdras e Neemias (nos decretos de Ciro, Dario, Artaxerxes) o ponto de partida da profecia. Já abordei este assunto em anteriores mensagens.

Se a palavra DABAR é utilizada para a Palavra de Deus, também o é para a palavra de um rei. Como podemos ver em alguns casos: Neemias 2:18 – as palavras do rei, que ele me tinha dito; Ester 1:12 – a rainha Vasti recusou vir conforme à palavra (DABAR) do rei; Ester 1:19 – um édito (DABAR) real; Ester 2:8 – o mandado (DABAR) do rei.

Mas será isto fundamento suficiente para interpretar DABAR em Daniel 9:25 como o decreto de um rei, neste caso Ciro?

Que palavras são usadas para os decretos reais de Nabucodonosor, Dario o medo, Ciro, Dario e Artaxerxes nos livros de Daniel, Esdras e Neemias?

Dn 3:4 – o arauto apregoava em alta voz: Ordena-se a vós [da parte de Nabucodonosor], ó povos, nações … O verbo aramaico aqui é AMAR, usado para comandar, falar, declarar (no caso de pessoas).

Nas seguintes passagens, a palavra traduzida como decreto ou ordem é TE’AM:
Dn 3:10, 29; 4:6– tu, ó rei, [Nabucodonosor], fizeste um decreto (TE’AM);
Dn 3:29; 4-6 – Por mim [Nabucodonosor], é feito um decreto
Dn 6:26 – Da minha parte [Dario o medo] é feito um decreto

Em Esdras, 4:19, 21; 5:3, 9,13, 17 “dar ordem” ou “ordenar” é SUM (aramaico).

Em Esdras 5 e 6 é repetidamente feito referência ao decreto ou ordem de Ciro. Sempre é usada a palavra TE’AM (Esdras 5:3, 9, 13, 17; Esdras 6:1), nunca DABAR.

A mesma palavra TE’AM é aplicada para o decreto de Dario no seu 2º ano que autoriza a retoma dos trabalhos (Esdras 6:1, 8, 11, 12).

Esdras 7: 13 e 21 trata dos decretos (TE’AM) no 7º ano do rei Artaxerxes (que é Dario) que autorizam Esdras a levar para Jerusalém sacerdotes e levitas e prata e ouro para ornar o templo. Que é outro dos decretos por vezes apontado para início das 70 semanas.

Neemias 11:23 menciona um mandado (MITZVAH) do rei e Neemias 2:18 refere as palavras (DABARIM) no 20º ano do rei Artaxerxes. Esta última autorização é, por alguns, interpretada como sendo o decreto de Artaxerxes Longimano que dá início às 70 semanas. Mas este rei não emitiu nenhuma ordem, apenas deu algumas cartas de recomendação conforme o pedido de Neemias.

Podemos, com alguma segurança, dizer que em nenhum destes casos é usada a palavra DABAR para dar uma ordem real, e muito especificamente não no caso de Ciro.

Esdras 5:13 – No primeiro ano de Ciro, rei de Babilónia, o rei Ciro deu ordem (TE’AM) para que esta casa de Deus se edificasse.
Daniel 9:25 – Desde a saída da ordem (DABAR) para restaurar e edificar, até ao Messias …

Os profetas Ageu e Zacarias começaram a profetizar no 2º ano de Dario. A obra do templo, que mal tinha iniciado quando regressaram do cativeiro, estava interrompida há cerca de 16 anos.

A primeira profecia de Ageu, no 6º mês, 1º dia do mês, Deus diz: Subi ao monte, e trazei madeira, e edificai a casa (Ag 1:8), e “Eu sou convosco” (Ag 1:13).

E o Senhor levantou o espírito de Zorobabel, de Jesua e do resto do povo, e trabalharam na casa do Senhor, no 24º dia desse mês.

Quando olhamos para o livro de Esdras e o relato do primeiro e segundo ano do regresso a Jerusalém, lemos que se levantou Jesua, filho de Josadaque, e seus irmãos, os sacerdotes, e Zorobabel … e edificaram o altar e começaram os preparativos para a obra da casa do Senhor (Esd 3:2, 8). Mas não há nenhuma palavra de Deus. E rapidamente perderam alento perante a oposição, e a obra parou.
No 2º ano de Dario, 16 anos depois, foi a primeira vez que Deus disse “Eu sou convosco” desde que Ezequiel viu a glória de Deus sair do templo no 6º ano do cativeiro (equivale ao 5º ano de Zedequias) (Ez 8-9).

No 7º mês (Ag 2:1-9) veio novamente a palavra do Senhor a dizer a Zorobabel e Jesua: Esforça-te. A glória desta última casa será maior do que a da primeira.

No 9º mês, no 24º dia, foi o dia em que se fundou o templo do Senhor (Ag2:18).

As profecias continuam em Zacarias:

No 11º mês do mesmo 2º ano de Dario, há uma pergunta do anjo do Senhor – Ó Senhor dos Exércitos, até quando não terás compaixão de Jerusalém, e das cidades de Judá, contra as quais estiveste irado estes 70 anos? (Zac 1:12). O Senhor respondeu: Voltei-me para Jerusalém com misericórdia; a minha casa nela será edificada (Zac 1:16).

Há vários períodos de 70 anos (com início e fim diferentes) que funcionam como um elo entre o fim da monarquia e o regresso depois do cativeiro de Jerusalém. E que servem para estabelecer a cronologia de modo seguro. Um primeiro período de 70 anos vai do 3º ano de Jeoaquim, quando um primeiro grupo (onde se inclui Daniel) é levado para o cativeiro na Babilónia, ao decreto de Ciro, que assinala o regresso do povo depois do cativeiro.

Aqui em Zacarias 1:12, um segundo período de 70 anos pode ser observado: o fim deste período é o 2º ano de Dario. Mas onde é o inicio? Para datar o início deste período, precisamos de considerar outra situação em Zacarias, que também faz referência a um período de 70 anos:

No 4º ano de Dario, no 9º mês, alguns foram saber junto do profeta Zacarias se tinham de continuar a jejuar no quinto mês (Zc 7:3). Ao que Zacarias respondeu: Quando jejuastes, no 5º e no 7º mês, durante estes 70 anos, jejuastes vós para mim? (Zc 3:5).

O jejum no 5º mês refere-se ao mês em que a cidade de Jerusalém foi destruída (2Rs 25:8-9), e o jejum do 7º mês ao mês em que Gedalias, o governador posto sobre o resto do povo por Nabucodonosor, foi assassinado (2Rs 25:25).

Portanto: o período de 70 anos que chegou ao fim no 4º ano de Dario começou no ano em que Jerusalém foi destruída, no 11º ano do rei Zedequias. E o período de 70 anos que chegou ao fim no 2º ano de Dario, começou quando Nabucodonosor iniciou o cerco de Jerusalém, no 9º ano do rei Zedequias (2Rs 25:1).

Ainda no mesmo episódio no 4º ano de Dario, o Senhor diz: O jejum do 4º mês (2Rs 25:3-7), e o jejum do 5º, e o jejum do 7º, e o jejum do 10º mês será para a casa de Judá gozo, alegria, e festividades solenes (Zac 8:19).

Isto significa que entre o 2º e o 4º ano de Dario, chegou finalmente o fim completo das assolações de Jerusalém! E por isso, apresenta-se-me como um momento adequado para iniciar uma nova era com o período de 70 semanas da profecia de Daniel 9. Mais adequado, tenho que admitir, do que o decreto de Ciro.

No 1º ano de Dario o medo (Dn 9.1-2), Daniel entendeu o significado dos 70 anos da profecia de Jeremias: Acontecerá, quando se cumprirem os 70 anos, visitarei o rei de Babilónia e esta nação (Jr 25:11-12) e Certamente que, passados 70 anos, em Babilónia, vos visitarei (Jer 29:10). Este período terminaria no 1º ano de Ciro com o decreto de Ciro.

Penso que é mais correto ser a PALAVRA de Deus em Daniel 9:25 “a saída da palavra (DABAR) para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Messias”, palavra falada através dos profetas Ageu e Zacarias no 2º ano de Dario, do que o decreto de Ciro ou qualquer outra palavra falada por um homem.

Por outro lado, isto não resolve o mistério da duração das “70 semanas”. Com o 2º ano de Dario em aproximadamente 519 a.C., os alegados 490 anos da profecia também não chegam ao tempo de Jesus, como é caso do decreto de Ciro.

Continuo convicta de que as “70 semanas” contêm efetivamente uma chave cronológica. Mas, como já disse, nenhuma solução satisfatória foi ainda apresentada.

Qualquer interpretação já entrou num automatismo de considerar que se trata de semanas de anos. E se não fossem semanas de anos? Pelo menos não anos na nossa compreensão atual de 365 dias. Naquele tempo, em Israel, não se usava este nosso calendário solar que vem dos romanos, mas um calendário lunissolar em que todos os anos tinham uma duração diferente. Como doze meses lunares são apenas 354 dias, mais ou menos a cada três anos tinha que se introduzir um 13º mês para acertar.

Além disso, esta interpretação deita naturalmente por terra a hipótese que coloquei em anteriores mensagens de que as primeiras 7 semanas da profecia correspondiam aos 49 anos desde o decreto de Ciro até ao 32º ano de Artaxerxes/Dario com a dedicação do muro.

7 comentários:

  1. Muito interessante! Eu já quebrei a cabeça pra tentar achar esse bendito ponto de partida, mas confesso que,assim como você, eu não cheguei em nenhuma conclusão satisfatória. Mas nunca havia pensado por esse lado que voc~e mencionou aqui. Creio que talvez você tenha achado o fio da meada.

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  2. Nosso Deus dá Ele mesmo a resposta em Is 44:28

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    1. De certo modo, sim. Mas a obra do templo mal iniciou quando parou durante muitos anos. Efetivamente, a construção só recomeçou ou mesmo começou com a palavra de Deus falada através das profecias de Ageu e Zacarias- Ageu 1:8 Subi ao monte, e trazei madeira, e edificai a casa. E Ageu 2:18 diz em que dia se fundou o templo do Senhor, o 24º dia do mês nono do 2º ano de Dario.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. Anne, só tentando ajudar, a interpretação de EGW em Profetas e Reis p. 698, 699 (se não me engano) a respeito de Dn 9:24-27 resolve tranquilamente essa cronologia (a referência pode ser acessada até na internet) e as datas fornecidas por ela estão comprovadamente bem estabelecidas tanto na História, como na equivalência cronológica bíblica. Unindo sua interpretação com alguns trechos bíblicos, incluindo Lc 3:23, e a equivalência cronológica bíblica, descobrimos out, 4 a.C. como o mês e ano do nascimento de Jesus.

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  3. Muito bom! Gostaria de saber sua linha de interpretação: Idealista,historicista,preterista, futurista ou eclética???
    Agradeço pelo estudo !

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  4. Anne, já considerou o caminho inverso dos 490 anos? Sendo o fim em 70 dC e sua origem no profeta Malaquias?

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