Ele confirmará a aliança com muitos por uma
semana.
Em primeiro lugar
convém dar a tradução correta do verbo empregado nesta frase, porque várias
versões têm traduzido “ele firmará um
concerto”, induzindo em erro quanto ao seu significado. A tradução correta
do verbo GABAR não é firmar no
sentido de assinar ou de fazer ou cortar uma aliança, mas “confirmar” ou “fazer
prevalecer”[1]
um concerto. É a única vez na Bíblia que é dito que uma aliança prevalece.
Quem é o “ele” que
confirma a aliança?
Uma vista de olhos
à estrutura (ABCD ABCD) dos versículos 26 e 27 facilitará a compreensão:
A. Depois das sessenta e duas semanas será morto o Ungido
B. E já não estará
C. O povo de um príncipe que há de vir destruirá a cidade e o santuário
D. O seu fim será num dilúvio, até ao fim haverá guerra; desolações são
determinadas.
A. Ele fará firme aliança com muitos por uma semana
B. Na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oferta
C. Sobre a asa das abominações virá o assolador,
D. Até que a destruição, que está determinada, se derrame sobre ele.
As frases A e B dos
vs.26 e 27 dizem respeito ao Ungido. E dentro do contexto da profecia, tudo
indica que quem confirma a aliança só pode ser o Ungido, o Príncipe. Não
devemos esquecer que é o Messias a personagem proeminente e central desta
profecia! Ele é manifestado no princípio da 70ª semana e no meio da semana é
morto, fazendo cessar o sacrifício e a oferta. Tendo sido “cortado” (KARATH) ele “confirmou” a aliança. E
confirmando a aliança no meio da semana, fez cessar o sacrifício e a oferta de
manjares.
O “ele” do v.27
que confirma a aliança não pode ser o príncipe do povo que vem destruir a
cidade do versículo anterior, como afirmam certas interpretações. Na frase C do
v.26, a cláusula principal não é o príncipe, mas o povo, e então seria o povo a
confirmar a aliança. A frase A do v.27 vai buscar o seu sujeito à frase A do
v.26: o Ungido.
A aliança prevalece. É uma nota de esperança: a
aliança prevalece, apesar de a transgressão do povo conduzir novamente à
destruição de Jerusalém, e apesar da “eliminação” do Ungido que fica
aparentemente sem descendência.
Deus fez
sucessivas alianças com Israel, mas todas tinham em vista o cumprimento da sua
promessa a Abraão que ele seria pai de muitas nações e que na sua semente
seriam abençoadas todas as nações da terra. Isto é a promessa de ser herdeiro
do mundo, como diz Paulo em Romanos 4:13.
Quem são os
“muitos” com quem ele veio confirmar a aliança?
No entendimento de
Daniel, os “muitos” seriam provavelmente os que estavam incluídos na aliança
abraâmica através da circuncisão, visto também que a oração de Daniel dizia
respeito especificamente ao seu povo, os judeus. E como profetizou Simeão
quando Jesus foi levado ao templo pelos seus pais para ser apresentado ao
Senhor: Eis que este menino está
destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel (Lc
2:34). Os judeus no tempo de Jesus, mesmo os discípulos, tardaram em
compreender o alargamento da aliança aos gentios.
Por outro lado, é
perfeitamente bíblico declarar que Jesus morreu por muitos, não apenas judeus. … o meu Servo, o Justo… justificará a
muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si (Is 53:11-12). O filho
do homem veio dar a sua vida em resgate por muitos (Mt 20:28). Isto é o meu sangue da aliança derramado em
favor de muitos (Mt 26:28). Jesus morreu por todos, mas nem todos recebem
os benefícios da sua salvação. Assim, o seu sangue foi derramado para “muitos”.
Dentro do contexto
da profecia, contudo, faz mais sentido identificar os “muitos” com os judeus
(os da circuncisão). E assim já podemos compreender como Jesus fez efetivamente
“prevalecer” esta aliança com os judeus por
uma semana. O ministério de Jesus durou três anos e meio, o que corresponde
à primeira metade da 70ª semana, assumindo que tenha começado com o batismo de
Jesus. A pregação de Jesus e o anúncio da proximidade do reino de Deus
destinava-se primeiramente aos judeus. Jesus afirmou: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt
15:21-28). Quando enviou os seus doze
discípulos, deu-lhes as seguintes instruções: Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas,
de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10:5-6).
Uma especial paciência foi conferida aos judeus: o viticultor que havia três
anos vinha procurar fruto na figueira, mas não achou, quis, porém, dar mais um
ano para que a árvore desse fruto. Se depois não desse fruto, cortá-la-ia (Lc
13:6-9).
Ainda na segunda
metade da semana, isto é durante os três anos e meio a seguir à morte de Jesus,
os discípulos dirigiam-se sempre em primeiro lugar e quase exclusivamente aos
judeus. No dia de Pentecostes, Pedro dirigiu-se aos varões judeus e todos os habitantes de Jerusalém (At 2:14), aos varões israelitas (At 2:22), e por
ocasião da cura do coxo, aos israelitas
(At 3:12). Também Estêvão falou assim antes de ser apedrejado: Varões irmãos e pais, ouvi (At 7:1).
Não há nenhum
evento específico na profecia de Daniel que identifique o fim da 70ª semana,
mas é possível que esteja relacionado com a completa abertura do evangelho aos
gentios. Poderá coincidir com a morte de Estêvão e a primeira grande
perseguição aos seguidores de Jesus, em consequência da qual os judeus
convertidos saíram de Jerusalém e começaram a anunciar o evangelho nas regiões
da Judeia e Samaria (At 8:1, 4, 14-17), e a conversão de Saulo que ocorreu na
mesma altura e que fora escolhido para levar o nome de Deus perante gentios e
reis, bem como perante os filhos de Israel (At 9:15). Da mesma época data
também o episódio da visita de Pedro à casa do centurião Cornélio (At 10), onde
pela primeira vez o dom do Espírito Santo foi derramado sobre os gentios. E os fiéis que eram da circuncisão, que
vieram com Pedro, admiraram-se, porque também sobre os gentios foi derramado o
dom do Espírito Santo (At 10:45; 11:1).
“Confirmar”
subentende que esse concerto já existe, e que os seus termos e condições se
tornam agora efetivos. “Confirmar” é fazer prevalecer os termos de uma aliança
previamente concedida.
Ele confirmou a
aliança prometida, duplamente, como está na lei (Lv 26 e Dt 28): com a bênção e
com a maldição. Primeiro, ele fez cessar o sacrifício e a oferta, assegurando o
perdão e uma nova aliança para os eleitos de Israel.
O Messias confirmou, no seu sangue, a Nova Aliança
há muito anunciada e prometida (Jr 31:31; Ez 11:19-20; 36:25-27).
Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de
Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no
dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egipto; porquanto eles anularam
a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor. Porque esta
é a aliança que farei (KARATH) com a
casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor. Na mente lhes imprimirei as
minhas leis, também no coração lhas inscreverei: eu serei o seu Deus, e eles
serão o meu povo (Jr 31:31-33).
Por outro lado, a
maldição também estava inscrita na lei e Jesus disse assim: não cuideis que vim destruir a lei ou os
profetas; não vim abrogar, mas cumprir […] até que o céu e a terra passem, nem um
jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo seja cumprido (Mt 5:17-18).
E o povo do príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário, e
o seu fim será como uma inundação; e até ao fim haverá guerra; estão
determinadas assolações (v.26b).
[1] Alguns exemplos da ocorrência de GABAR: Gn 7:18 (as águas prevalecem
sobre a terra); Ex 17:11; 1 Sm 2:9; Is 42:13 (prevalecer contra o inimigo). GIBBOR (guerreiro, homem forte) vem da
mesma raiz.